Opinião|Por que a Europa está prestes a se afogar no rio da direita radical?


Lapso de representatividade e falhas do bloco ao lidar com problemas cotidianos abre espaço para os radicais nas eleições para o Parlamento Europeu

Por Lea Ypi
Atualização:

A Europa está inundada de preocupações. Diante de uma eleição parlamentar com ampla expectativa de produzir avanços para a extrema direita, os líderes europeus mal conseguem disfarçar sua ansiedade. Em um discurso pronunciado no fim de abril, o presidente da França, Emmanuel Macron, capturou o humor que predomina. Após alertar eloquentemente contra as ameaças ao continente, ele expressou a necessidade de uma Europa poderosa outra vez, uma “potência europeia”.

Conforme acompanhava o discurso, recordei-me dos comentários de Nicolau Maquiavel nas primeiras páginas de “O Príncipe”, o tratado seminal do filósofo do século 16 sobre poder político. Em sua obra dedicada a Lourenço de Médici, soberano da República Florentina, Maquiavel sugeriu que, de muitas maneiras, a política é como a arte.

Da mesma forma que pintores de paisagens imaginam-se a si mesmos em planícies para observar montanhas e no topo de montanhas para estudar planícies, governantes também deveriam habitar seus domínios. “Para conhecer bem a natureza do povo, é necessário ser príncipe”, escreveu Maquiavel, “e para conhecer bem a natureza dos príncipes, é necessário ser do povo”.

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Eis um político engalfinhando-se com a primeira parte da oração de Maquiavel, um incumbente tentando compreender como funcionam as coisas. O que é poder na Europa contemporânea? E como o poder deve ser exercido na União Europeia? Macron respondeu de forma principesca, mostrando-se ciente tanto da natureza finita de cada comunidade política — a Europa é “mortal”, disse ele — quanto de sua vulnerabilidade cíclica à crise. Concluiu com uma defesa apaixonada da “civilização” europeia e conclamou a criação de um paradigma para ressuscitá-la.

Presidente da França, Emmanuel Macron, discursa em inauguração de centro de treinamento e inovação, Marcelha, França, 8 de maio de 2024. Foto: Ludovic Marin/Reuters
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Mas, apesar de todas as suas aspirações, Macron negligenciou a segunda metade da oração de Maquiavel: o povo também forma visões sobre seus governantes, o que os governantes ignoram por sua própria conta e risco.

Macron deixou de lado os muitos europeus que sentem o bloco como um ente distante e inacessível, definindo seu desencanto como resultado de “falsos argumentos”. Esse escanteamento não é de nenhum modo uma aberração. Por décadas, os líderes europeus têm negligenciado o povo nas planícies, impedindo qualquer participação política significativa dos cidadãos do continente. Essa exclusão mudou os contornos da paisagem europeia, abrindo caminho para a direita radical.

Quando refletiu sobre as crises de seu tempo — entre elas, conflitos entre grandes potências europeias, descontentamentos com autoridades públicas e o colapso da legitimidade da Igreja Católica — Maquiavel voltou-se à República Romana em busca de inspiração.

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Quando há ceticismo em relação a valores, escreveu ele, a história é o único guia que nos resta. O segredo para a liberdade romana, explicou ele nos “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio”, não era boa sorte, nem tampouco seu poderio militar. Em vez disso, ela residia na capacidade dos romanos de mediar conflitos entre as elites abastadas e a vasta maioria da população — ou, como ele coloca, “i grandi” (os grandes) e “il popolo” (o povo).

Enquanto a tendência inerente aos grandes, argumentou Maquiavel, é acumular riqueza e poder para governar os demais, o desejo inerente do povo é evitar ficar à mercê das elites. A luta entre esses grupos geralmente produzia políticas em direções opostas. Mas a República Romana tinha instituições, como o tribuno da plebe, que buscavam dar poder ao povo e conter as elites. Somente direcionando esse conflito, em vez de suprimi-lo, segundo Maquiavel, a liberdade cívica pode ser preservada.

Banner em frente ao Parlamento Europeu divulga eleições marcadas para junho. Foto: Virginia Mayo/Associated Press
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A Europa não ouviu seu conselho. Apesar de toda retórica democrática, a União Europeia é mais parecida com uma instituição oligárquica. Supervisionado por um organismo não eleito de tecnocratas na Comissão Europeia, o bloco não permite consultas populares sobre políticas nem participação. Suas regras fiscais, que impõem limites rígidos sobre os orçamentos dos países-membros, oferecem proteção para os ricos ao mesmo tempo que impõem austeridade aos pobres. De cima para baixo, a Europa é dominada pelos interesses da minoria rica, que restringe a liberdade da maioria.

O dilema europeu, evidentemente, não é singular. Empresas, instituições financeiras, agências de nota de crédito e poderosos grupos de interesse dão as cartas em toda parte, tolhendo severamente o poder dos políticos. E a União Europeia está longe de ser a pior violadora. Ainda assim, em Estados-nação, a aparência de participação democrática pode ser sustentada por meio do compromisso com uma Constituição comum. Na União Europeia, cujo mito fundador é o livre-mercado, é muito mais difícil sustentar esse argumento.

Supõe-se com frequência que seu carácter transnacional está por trás da antipatia dos europeus em relação ao bloco. Mas quem resiste à atual União Europeia não o faz porque o bloco é cosmopolita demais. De maneira muito simples — e com razão — eles resistem porque o bloco não os representa.

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O Parlamento que os europeus elegerão no próximo mês, usando um exemplo gritante da falta de democracia no bloco, tem pouco poder legislativo por si só: tende a meramente anuir às decisões tomadas pela comissão. E esse lapso representativo está sendo suprido pela direita radical, transformando o problema em simples binariedades — nós ou eles, Estado ou Europa, trabalhador branco ou imigrante.

Apoiadora do partido francês de extrema direita Rassemblement National veste camisa em que se lê "Famílias estão em perigo", 7 de maio de 2024.  Foto: Jean-christophe Verhaegen/AFP

Talvez surpreenda que o déficit democrático do bloco tenha virado um grito de união para a direita radical, mas isso explica grande parte de seu sucesso. Uma pesquisa recente, por exemplo, mostrou que os cidadãos europeus preocupam-se muito mais com pobreza, empregos, padrão de vida e mudança climática do que imigração.

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Isso sugere que o apelo da direita radical decorre menos de sua hostilidade obsessiva em relação a imigrantes e mais de sua crítica aos fracassos do bloco em responder às preocupações cotidianas das pessoas. Políticos europeus poderiam buscar remediar essa situação mudando instituições e melhorando o poder de barganha da população, fazendo as pessoas se sentirem ouvidas. Mas, em vez disso, preferem dar palestras sisudas.

A direita radical pode estar em ascensão na Europa, mas não tem de ser assim. A política sempre estará à mercê da sorte. Mas a sorte, como enfatizou Maquiavel em “O Príncipe”, é como um rio, cuja cheia pode ser evitada construindo diques e represas. Se os políticos europeus ficam cada vez mais presos a gestão de emergências, isso ocorre porque eles fracassaram na primeira tarefa política digna dessa categoria: diagnosticar as causas das crises, explicar quem é representado e quem é excluído e defender pessoas cuja liberdade esteja em perigo.

A política do povo apresentada pela direita radical pode ser estritamente etnocêntrica, mas é a única que dialoga diretamente com as desilusões das pessoas. Nossos príncipes modernos podem preferir desviar o olhar. Mas enquanto a direita radical continuar a dominar os termos do debate público, enquanto suas raízes históricas forem discretamente ignoradas, nenhum apelo a valores europeus conterá o rio no qual todos nós estamos prestes a nos afogar./TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

A Europa está inundada de preocupações. Diante de uma eleição parlamentar com ampla expectativa de produzir avanços para a extrema direita, os líderes europeus mal conseguem disfarçar sua ansiedade. Em um discurso pronunciado no fim de abril, o presidente da França, Emmanuel Macron, capturou o humor que predomina. Após alertar eloquentemente contra as ameaças ao continente, ele expressou a necessidade de uma Europa poderosa outra vez, uma “potência europeia”.

Conforme acompanhava o discurso, recordei-me dos comentários de Nicolau Maquiavel nas primeiras páginas de “O Príncipe”, o tratado seminal do filósofo do século 16 sobre poder político. Em sua obra dedicada a Lourenço de Médici, soberano da República Florentina, Maquiavel sugeriu que, de muitas maneiras, a política é como a arte.

Da mesma forma que pintores de paisagens imaginam-se a si mesmos em planícies para observar montanhas e no topo de montanhas para estudar planícies, governantes também deveriam habitar seus domínios. “Para conhecer bem a natureza do povo, é necessário ser príncipe”, escreveu Maquiavel, “e para conhecer bem a natureza dos príncipes, é necessário ser do povo”.

Eis um político engalfinhando-se com a primeira parte da oração de Maquiavel, um incumbente tentando compreender como funcionam as coisas. O que é poder na Europa contemporânea? E como o poder deve ser exercido na União Europeia? Macron respondeu de forma principesca, mostrando-se ciente tanto da natureza finita de cada comunidade política — a Europa é “mortal”, disse ele — quanto de sua vulnerabilidade cíclica à crise. Concluiu com uma defesa apaixonada da “civilização” europeia e conclamou a criação de um paradigma para ressuscitá-la.

Presidente da França, Emmanuel Macron, discursa em inauguração de centro de treinamento e inovação, Marcelha, França, 8 de maio de 2024. Foto: Ludovic Marin/Reuters

Mas, apesar de todas as suas aspirações, Macron negligenciou a segunda metade da oração de Maquiavel: o povo também forma visões sobre seus governantes, o que os governantes ignoram por sua própria conta e risco.

Macron deixou de lado os muitos europeus que sentem o bloco como um ente distante e inacessível, definindo seu desencanto como resultado de “falsos argumentos”. Esse escanteamento não é de nenhum modo uma aberração. Por décadas, os líderes europeus têm negligenciado o povo nas planícies, impedindo qualquer participação política significativa dos cidadãos do continente. Essa exclusão mudou os contornos da paisagem europeia, abrindo caminho para a direita radical.

Quando refletiu sobre as crises de seu tempo — entre elas, conflitos entre grandes potências europeias, descontentamentos com autoridades públicas e o colapso da legitimidade da Igreja Católica — Maquiavel voltou-se à República Romana em busca de inspiração.

Quando há ceticismo em relação a valores, escreveu ele, a história é o único guia que nos resta. O segredo para a liberdade romana, explicou ele nos “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio”, não era boa sorte, nem tampouco seu poderio militar. Em vez disso, ela residia na capacidade dos romanos de mediar conflitos entre as elites abastadas e a vasta maioria da população — ou, como ele coloca, “i grandi” (os grandes) e “il popolo” (o povo).

Enquanto a tendência inerente aos grandes, argumentou Maquiavel, é acumular riqueza e poder para governar os demais, o desejo inerente do povo é evitar ficar à mercê das elites. A luta entre esses grupos geralmente produzia políticas em direções opostas. Mas a República Romana tinha instituições, como o tribuno da plebe, que buscavam dar poder ao povo e conter as elites. Somente direcionando esse conflito, em vez de suprimi-lo, segundo Maquiavel, a liberdade cívica pode ser preservada.

Banner em frente ao Parlamento Europeu divulga eleições marcadas para junho. Foto: Virginia Mayo/Associated Press

A Europa não ouviu seu conselho. Apesar de toda retórica democrática, a União Europeia é mais parecida com uma instituição oligárquica. Supervisionado por um organismo não eleito de tecnocratas na Comissão Europeia, o bloco não permite consultas populares sobre políticas nem participação. Suas regras fiscais, que impõem limites rígidos sobre os orçamentos dos países-membros, oferecem proteção para os ricos ao mesmo tempo que impõem austeridade aos pobres. De cima para baixo, a Europa é dominada pelos interesses da minoria rica, que restringe a liberdade da maioria.

O dilema europeu, evidentemente, não é singular. Empresas, instituições financeiras, agências de nota de crédito e poderosos grupos de interesse dão as cartas em toda parte, tolhendo severamente o poder dos políticos. E a União Europeia está longe de ser a pior violadora. Ainda assim, em Estados-nação, a aparência de participação democrática pode ser sustentada por meio do compromisso com uma Constituição comum. Na União Europeia, cujo mito fundador é o livre-mercado, é muito mais difícil sustentar esse argumento.

Supõe-se com frequência que seu carácter transnacional está por trás da antipatia dos europeus em relação ao bloco. Mas quem resiste à atual União Europeia não o faz porque o bloco é cosmopolita demais. De maneira muito simples — e com razão — eles resistem porque o bloco não os representa.

O Parlamento que os europeus elegerão no próximo mês, usando um exemplo gritante da falta de democracia no bloco, tem pouco poder legislativo por si só: tende a meramente anuir às decisões tomadas pela comissão. E esse lapso representativo está sendo suprido pela direita radical, transformando o problema em simples binariedades — nós ou eles, Estado ou Europa, trabalhador branco ou imigrante.

Apoiadora do partido francês de extrema direita Rassemblement National veste camisa em que se lê "Famílias estão em perigo", 7 de maio de 2024.  Foto: Jean-christophe Verhaegen/AFP

Talvez surpreenda que o déficit democrático do bloco tenha virado um grito de união para a direita radical, mas isso explica grande parte de seu sucesso. Uma pesquisa recente, por exemplo, mostrou que os cidadãos europeus preocupam-se muito mais com pobreza, empregos, padrão de vida e mudança climática do que imigração.

Isso sugere que o apelo da direita radical decorre menos de sua hostilidade obsessiva em relação a imigrantes e mais de sua crítica aos fracassos do bloco em responder às preocupações cotidianas das pessoas. Políticos europeus poderiam buscar remediar essa situação mudando instituições e melhorando o poder de barganha da população, fazendo as pessoas se sentirem ouvidas. Mas, em vez disso, preferem dar palestras sisudas.

A direita radical pode estar em ascensão na Europa, mas não tem de ser assim. A política sempre estará à mercê da sorte. Mas a sorte, como enfatizou Maquiavel em “O Príncipe”, é como um rio, cuja cheia pode ser evitada construindo diques e represas. Se os políticos europeus ficam cada vez mais presos a gestão de emergências, isso ocorre porque eles fracassaram na primeira tarefa política digna dessa categoria: diagnosticar as causas das crises, explicar quem é representado e quem é excluído e defender pessoas cuja liberdade esteja em perigo.

A política do povo apresentada pela direita radical pode ser estritamente etnocêntrica, mas é a única que dialoga diretamente com as desilusões das pessoas. Nossos príncipes modernos podem preferir desviar o olhar. Mas enquanto a direita radical continuar a dominar os termos do debate público, enquanto suas raízes históricas forem discretamente ignoradas, nenhum apelo a valores europeus conterá o rio no qual todos nós estamos prestes a nos afogar./TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

A Europa está inundada de preocupações. Diante de uma eleição parlamentar com ampla expectativa de produzir avanços para a extrema direita, os líderes europeus mal conseguem disfarçar sua ansiedade. Em um discurso pronunciado no fim de abril, o presidente da França, Emmanuel Macron, capturou o humor que predomina. Após alertar eloquentemente contra as ameaças ao continente, ele expressou a necessidade de uma Europa poderosa outra vez, uma “potência europeia”.

Conforme acompanhava o discurso, recordei-me dos comentários de Nicolau Maquiavel nas primeiras páginas de “O Príncipe”, o tratado seminal do filósofo do século 16 sobre poder político. Em sua obra dedicada a Lourenço de Médici, soberano da República Florentina, Maquiavel sugeriu que, de muitas maneiras, a política é como a arte.

Da mesma forma que pintores de paisagens imaginam-se a si mesmos em planícies para observar montanhas e no topo de montanhas para estudar planícies, governantes também deveriam habitar seus domínios. “Para conhecer bem a natureza do povo, é necessário ser príncipe”, escreveu Maquiavel, “e para conhecer bem a natureza dos príncipes, é necessário ser do povo”.

Eis um político engalfinhando-se com a primeira parte da oração de Maquiavel, um incumbente tentando compreender como funcionam as coisas. O que é poder na Europa contemporânea? E como o poder deve ser exercido na União Europeia? Macron respondeu de forma principesca, mostrando-se ciente tanto da natureza finita de cada comunidade política — a Europa é “mortal”, disse ele — quanto de sua vulnerabilidade cíclica à crise. Concluiu com uma defesa apaixonada da “civilização” europeia e conclamou a criação de um paradigma para ressuscitá-la.

Presidente da França, Emmanuel Macron, discursa em inauguração de centro de treinamento e inovação, Marcelha, França, 8 de maio de 2024. Foto: Ludovic Marin/Reuters

Mas, apesar de todas as suas aspirações, Macron negligenciou a segunda metade da oração de Maquiavel: o povo também forma visões sobre seus governantes, o que os governantes ignoram por sua própria conta e risco.

Macron deixou de lado os muitos europeus que sentem o bloco como um ente distante e inacessível, definindo seu desencanto como resultado de “falsos argumentos”. Esse escanteamento não é de nenhum modo uma aberração. Por décadas, os líderes europeus têm negligenciado o povo nas planícies, impedindo qualquer participação política significativa dos cidadãos do continente. Essa exclusão mudou os contornos da paisagem europeia, abrindo caminho para a direita radical.

Quando refletiu sobre as crises de seu tempo — entre elas, conflitos entre grandes potências europeias, descontentamentos com autoridades públicas e o colapso da legitimidade da Igreja Católica — Maquiavel voltou-se à República Romana em busca de inspiração.

Quando há ceticismo em relação a valores, escreveu ele, a história é o único guia que nos resta. O segredo para a liberdade romana, explicou ele nos “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio”, não era boa sorte, nem tampouco seu poderio militar. Em vez disso, ela residia na capacidade dos romanos de mediar conflitos entre as elites abastadas e a vasta maioria da população — ou, como ele coloca, “i grandi” (os grandes) e “il popolo” (o povo).

Enquanto a tendência inerente aos grandes, argumentou Maquiavel, é acumular riqueza e poder para governar os demais, o desejo inerente do povo é evitar ficar à mercê das elites. A luta entre esses grupos geralmente produzia políticas em direções opostas. Mas a República Romana tinha instituições, como o tribuno da plebe, que buscavam dar poder ao povo e conter as elites. Somente direcionando esse conflito, em vez de suprimi-lo, segundo Maquiavel, a liberdade cívica pode ser preservada.

Banner em frente ao Parlamento Europeu divulga eleições marcadas para junho. Foto: Virginia Mayo/Associated Press

A Europa não ouviu seu conselho. Apesar de toda retórica democrática, a União Europeia é mais parecida com uma instituição oligárquica. Supervisionado por um organismo não eleito de tecnocratas na Comissão Europeia, o bloco não permite consultas populares sobre políticas nem participação. Suas regras fiscais, que impõem limites rígidos sobre os orçamentos dos países-membros, oferecem proteção para os ricos ao mesmo tempo que impõem austeridade aos pobres. De cima para baixo, a Europa é dominada pelos interesses da minoria rica, que restringe a liberdade da maioria.

O dilema europeu, evidentemente, não é singular. Empresas, instituições financeiras, agências de nota de crédito e poderosos grupos de interesse dão as cartas em toda parte, tolhendo severamente o poder dos políticos. E a União Europeia está longe de ser a pior violadora. Ainda assim, em Estados-nação, a aparência de participação democrática pode ser sustentada por meio do compromisso com uma Constituição comum. Na União Europeia, cujo mito fundador é o livre-mercado, é muito mais difícil sustentar esse argumento.

Supõe-se com frequência que seu carácter transnacional está por trás da antipatia dos europeus em relação ao bloco. Mas quem resiste à atual União Europeia não o faz porque o bloco é cosmopolita demais. De maneira muito simples — e com razão — eles resistem porque o bloco não os representa.

O Parlamento que os europeus elegerão no próximo mês, usando um exemplo gritante da falta de democracia no bloco, tem pouco poder legislativo por si só: tende a meramente anuir às decisões tomadas pela comissão. E esse lapso representativo está sendo suprido pela direita radical, transformando o problema em simples binariedades — nós ou eles, Estado ou Europa, trabalhador branco ou imigrante.

Apoiadora do partido francês de extrema direita Rassemblement National veste camisa em que se lê "Famílias estão em perigo", 7 de maio de 2024.  Foto: Jean-christophe Verhaegen/AFP

Talvez surpreenda que o déficit democrático do bloco tenha virado um grito de união para a direita radical, mas isso explica grande parte de seu sucesso. Uma pesquisa recente, por exemplo, mostrou que os cidadãos europeus preocupam-se muito mais com pobreza, empregos, padrão de vida e mudança climática do que imigração.

Isso sugere que o apelo da direita radical decorre menos de sua hostilidade obsessiva em relação a imigrantes e mais de sua crítica aos fracassos do bloco em responder às preocupações cotidianas das pessoas. Políticos europeus poderiam buscar remediar essa situação mudando instituições e melhorando o poder de barganha da população, fazendo as pessoas se sentirem ouvidas. Mas, em vez disso, preferem dar palestras sisudas.

A direita radical pode estar em ascensão na Europa, mas não tem de ser assim. A política sempre estará à mercê da sorte. Mas a sorte, como enfatizou Maquiavel em “O Príncipe”, é como um rio, cuja cheia pode ser evitada construindo diques e represas. Se os políticos europeus ficam cada vez mais presos a gestão de emergências, isso ocorre porque eles fracassaram na primeira tarefa política digna dessa categoria: diagnosticar as causas das crises, explicar quem é representado e quem é excluído e defender pessoas cuja liberdade esteja em perigo.

A política do povo apresentada pela direita radical pode ser estritamente etnocêntrica, mas é a única que dialoga diretamente com as desilusões das pessoas. Nossos príncipes modernos podem preferir desviar o olhar. Mas enquanto a direita radical continuar a dominar os termos do debate público, enquanto suas raízes históricas forem discretamente ignoradas, nenhum apelo a valores europeus conterá o rio no qual todos nós estamos prestes a nos afogar./TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

A Europa está inundada de preocupações. Diante de uma eleição parlamentar com ampla expectativa de produzir avanços para a extrema direita, os líderes europeus mal conseguem disfarçar sua ansiedade. Em um discurso pronunciado no fim de abril, o presidente da França, Emmanuel Macron, capturou o humor que predomina. Após alertar eloquentemente contra as ameaças ao continente, ele expressou a necessidade de uma Europa poderosa outra vez, uma “potência europeia”.

Conforme acompanhava o discurso, recordei-me dos comentários de Nicolau Maquiavel nas primeiras páginas de “O Príncipe”, o tratado seminal do filósofo do século 16 sobre poder político. Em sua obra dedicada a Lourenço de Médici, soberano da República Florentina, Maquiavel sugeriu que, de muitas maneiras, a política é como a arte.

Da mesma forma que pintores de paisagens imaginam-se a si mesmos em planícies para observar montanhas e no topo de montanhas para estudar planícies, governantes também deveriam habitar seus domínios. “Para conhecer bem a natureza do povo, é necessário ser príncipe”, escreveu Maquiavel, “e para conhecer bem a natureza dos príncipes, é necessário ser do povo”.

Eis um político engalfinhando-se com a primeira parte da oração de Maquiavel, um incumbente tentando compreender como funcionam as coisas. O que é poder na Europa contemporânea? E como o poder deve ser exercido na União Europeia? Macron respondeu de forma principesca, mostrando-se ciente tanto da natureza finita de cada comunidade política — a Europa é “mortal”, disse ele — quanto de sua vulnerabilidade cíclica à crise. Concluiu com uma defesa apaixonada da “civilização” europeia e conclamou a criação de um paradigma para ressuscitá-la.

Presidente da França, Emmanuel Macron, discursa em inauguração de centro de treinamento e inovação, Marcelha, França, 8 de maio de 2024. Foto: Ludovic Marin/Reuters

Mas, apesar de todas as suas aspirações, Macron negligenciou a segunda metade da oração de Maquiavel: o povo também forma visões sobre seus governantes, o que os governantes ignoram por sua própria conta e risco.

Macron deixou de lado os muitos europeus que sentem o bloco como um ente distante e inacessível, definindo seu desencanto como resultado de “falsos argumentos”. Esse escanteamento não é de nenhum modo uma aberração. Por décadas, os líderes europeus têm negligenciado o povo nas planícies, impedindo qualquer participação política significativa dos cidadãos do continente. Essa exclusão mudou os contornos da paisagem europeia, abrindo caminho para a direita radical.

Quando refletiu sobre as crises de seu tempo — entre elas, conflitos entre grandes potências europeias, descontentamentos com autoridades públicas e o colapso da legitimidade da Igreja Católica — Maquiavel voltou-se à República Romana em busca de inspiração.

Quando há ceticismo em relação a valores, escreveu ele, a história é o único guia que nos resta. O segredo para a liberdade romana, explicou ele nos “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio”, não era boa sorte, nem tampouco seu poderio militar. Em vez disso, ela residia na capacidade dos romanos de mediar conflitos entre as elites abastadas e a vasta maioria da população — ou, como ele coloca, “i grandi” (os grandes) e “il popolo” (o povo).

Enquanto a tendência inerente aos grandes, argumentou Maquiavel, é acumular riqueza e poder para governar os demais, o desejo inerente do povo é evitar ficar à mercê das elites. A luta entre esses grupos geralmente produzia políticas em direções opostas. Mas a República Romana tinha instituições, como o tribuno da plebe, que buscavam dar poder ao povo e conter as elites. Somente direcionando esse conflito, em vez de suprimi-lo, segundo Maquiavel, a liberdade cívica pode ser preservada.

Banner em frente ao Parlamento Europeu divulga eleições marcadas para junho. Foto: Virginia Mayo/Associated Press

A Europa não ouviu seu conselho. Apesar de toda retórica democrática, a União Europeia é mais parecida com uma instituição oligárquica. Supervisionado por um organismo não eleito de tecnocratas na Comissão Europeia, o bloco não permite consultas populares sobre políticas nem participação. Suas regras fiscais, que impõem limites rígidos sobre os orçamentos dos países-membros, oferecem proteção para os ricos ao mesmo tempo que impõem austeridade aos pobres. De cima para baixo, a Europa é dominada pelos interesses da minoria rica, que restringe a liberdade da maioria.

O dilema europeu, evidentemente, não é singular. Empresas, instituições financeiras, agências de nota de crédito e poderosos grupos de interesse dão as cartas em toda parte, tolhendo severamente o poder dos políticos. E a União Europeia está longe de ser a pior violadora. Ainda assim, em Estados-nação, a aparência de participação democrática pode ser sustentada por meio do compromisso com uma Constituição comum. Na União Europeia, cujo mito fundador é o livre-mercado, é muito mais difícil sustentar esse argumento.

Supõe-se com frequência que seu carácter transnacional está por trás da antipatia dos europeus em relação ao bloco. Mas quem resiste à atual União Europeia não o faz porque o bloco é cosmopolita demais. De maneira muito simples — e com razão — eles resistem porque o bloco não os representa.

O Parlamento que os europeus elegerão no próximo mês, usando um exemplo gritante da falta de democracia no bloco, tem pouco poder legislativo por si só: tende a meramente anuir às decisões tomadas pela comissão. E esse lapso representativo está sendo suprido pela direita radical, transformando o problema em simples binariedades — nós ou eles, Estado ou Europa, trabalhador branco ou imigrante.

Apoiadora do partido francês de extrema direita Rassemblement National veste camisa em que se lê "Famílias estão em perigo", 7 de maio de 2024.  Foto: Jean-christophe Verhaegen/AFP

Talvez surpreenda que o déficit democrático do bloco tenha virado um grito de união para a direita radical, mas isso explica grande parte de seu sucesso. Uma pesquisa recente, por exemplo, mostrou que os cidadãos europeus preocupam-se muito mais com pobreza, empregos, padrão de vida e mudança climática do que imigração.

Isso sugere que o apelo da direita radical decorre menos de sua hostilidade obsessiva em relação a imigrantes e mais de sua crítica aos fracassos do bloco em responder às preocupações cotidianas das pessoas. Políticos europeus poderiam buscar remediar essa situação mudando instituições e melhorando o poder de barganha da população, fazendo as pessoas se sentirem ouvidas. Mas, em vez disso, preferem dar palestras sisudas.

A direita radical pode estar em ascensão na Europa, mas não tem de ser assim. A política sempre estará à mercê da sorte. Mas a sorte, como enfatizou Maquiavel em “O Príncipe”, é como um rio, cuja cheia pode ser evitada construindo diques e represas. Se os políticos europeus ficam cada vez mais presos a gestão de emergências, isso ocorre porque eles fracassaram na primeira tarefa política digna dessa categoria: diagnosticar as causas das crises, explicar quem é representado e quem é excluído e defender pessoas cuja liberdade esteja em perigo.

A política do povo apresentada pela direita radical pode ser estritamente etnocêntrica, mas é a única que dialoga diretamente com as desilusões das pessoas. Nossos príncipes modernos podem preferir desviar o olhar. Mas enquanto a direita radical continuar a dominar os termos do debate público, enquanto suas raízes históricas forem discretamente ignoradas, nenhum apelo a valores europeus conterá o rio no qual todos nós estamos prestes a nos afogar./TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

A Europa está inundada de preocupações. Diante de uma eleição parlamentar com ampla expectativa de produzir avanços para a extrema direita, os líderes europeus mal conseguem disfarçar sua ansiedade. Em um discurso pronunciado no fim de abril, o presidente da França, Emmanuel Macron, capturou o humor que predomina. Após alertar eloquentemente contra as ameaças ao continente, ele expressou a necessidade de uma Europa poderosa outra vez, uma “potência europeia”.

Conforme acompanhava o discurso, recordei-me dos comentários de Nicolau Maquiavel nas primeiras páginas de “O Príncipe”, o tratado seminal do filósofo do século 16 sobre poder político. Em sua obra dedicada a Lourenço de Médici, soberano da República Florentina, Maquiavel sugeriu que, de muitas maneiras, a política é como a arte.

Da mesma forma que pintores de paisagens imaginam-se a si mesmos em planícies para observar montanhas e no topo de montanhas para estudar planícies, governantes também deveriam habitar seus domínios. “Para conhecer bem a natureza do povo, é necessário ser príncipe”, escreveu Maquiavel, “e para conhecer bem a natureza dos príncipes, é necessário ser do povo”.

Eis um político engalfinhando-se com a primeira parte da oração de Maquiavel, um incumbente tentando compreender como funcionam as coisas. O que é poder na Europa contemporânea? E como o poder deve ser exercido na União Europeia? Macron respondeu de forma principesca, mostrando-se ciente tanto da natureza finita de cada comunidade política — a Europa é “mortal”, disse ele — quanto de sua vulnerabilidade cíclica à crise. Concluiu com uma defesa apaixonada da “civilização” europeia e conclamou a criação de um paradigma para ressuscitá-la.

Presidente da França, Emmanuel Macron, discursa em inauguração de centro de treinamento e inovação, Marcelha, França, 8 de maio de 2024. Foto: Ludovic Marin/Reuters

Mas, apesar de todas as suas aspirações, Macron negligenciou a segunda metade da oração de Maquiavel: o povo também forma visões sobre seus governantes, o que os governantes ignoram por sua própria conta e risco.

Macron deixou de lado os muitos europeus que sentem o bloco como um ente distante e inacessível, definindo seu desencanto como resultado de “falsos argumentos”. Esse escanteamento não é de nenhum modo uma aberração. Por décadas, os líderes europeus têm negligenciado o povo nas planícies, impedindo qualquer participação política significativa dos cidadãos do continente. Essa exclusão mudou os contornos da paisagem europeia, abrindo caminho para a direita radical.

Quando refletiu sobre as crises de seu tempo — entre elas, conflitos entre grandes potências europeias, descontentamentos com autoridades públicas e o colapso da legitimidade da Igreja Católica — Maquiavel voltou-se à República Romana em busca de inspiração.

Quando há ceticismo em relação a valores, escreveu ele, a história é o único guia que nos resta. O segredo para a liberdade romana, explicou ele nos “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio”, não era boa sorte, nem tampouco seu poderio militar. Em vez disso, ela residia na capacidade dos romanos de mediar conflitos entre as elites abastadas e a vasta maioria da população — ou, como ele coloca, “i grandi” (os grandes) e “il popolo” (o povo).

Enquanto a tendência inerente aos grandes, argumentou Maquiavel, é acumular riqueza e poder para governar os demais, o desejo inerente do povo é evitar ficar à mercê das elites. A luta entre esses grupos geralmente produzia políticas em direções opostas. Mas a República Romana tinha instituições, como o tribuno da plebe, que buscavam dar poder ao povo e conter as elites. Somente direcionando esse conflito, em vez de suprimi-lo, segundo Maquiavel, a liberdade cívica pode ser preservada.

Banner em frente ao Parlamento Europeu divulga eleições marcadas para junho. Foto: Virginia Mayo/Associated Press

A Europa não ouviu seu conselho. Apesar de toda retórica democrática, a União Europeia é mais parecida com uma instituição oligárquica. Supervisionado por um organismo não eleito de tecnocratas na Comissão Europeia, o bloco não permite consultas populares sobre políticas nem participação. Suas regras fiscais, que impõem limites rígidos sobre os orçamentos dos países-membros, oferecem proteção para os ricos ao mesmo tempo que impõem austeridade aos pobres. De cima para baixo, a Europa é dominada pelos interesses da minoria rica, que restringe a liberdade da maioria.

O dilema europeu, evidentemente, não é singular. Empresas, instituições financeiras, agências de nota de crédito e poderosos grupos de interesse dão as cartas em toda parte, tolhendo severamente o poder dos políticos. E a União Europeia está longe de ser a pior violadora. Ainda assim, em Estados-nação, a aparência de participação democrática pode ser sustentada por meio do compromisso com uma Constituição comum. Na União Europeia, cujo mito fundador é o livre-mercado, é muito mais difícil sustentar esse argumento.

Supõe-se com frequência que seu carácter transnacional está por trás da antipatia dos europeus em relação ao bloco. Mas quem resiste à atual União Europeia não o faz porque o bloco é cosmopolita demais. De maneira muito simples — e com razão — eles resistem porque o bloco não os representa.

O Parlamento que os europeus elegerão no próximo mês, usando um exemplo gritante da falta de democracia no bloco, tem pouco poder legislativo por si só: tende a meramente anuir às decisões tomadas pela comissão. E esse lapso representativo está sendo suprido pela direita radical, transformando o problema em simples binariedades — nós ou eles, Estado ou Europa, trabalhador branco ou imigrante.

Apoiadora do partido francês de extrema direita Rassemblement National veste camisa em que se lê "Famílias estão em perigo", 7 de maio de 2024.  Foto: Jean-christophe Verhaegen/AFP

Talvez surpreenda que o déficit democrático do bloco tenha virado um grito de união para a direita radical, mas isso explica grande parte de seu sucesso. Uma pesquisa recente, por exemplo, mostrou que os cidadãos europeus preocupam-se muito mais com pobreza, empregos, padrão de vida e mudança climática do que imigração.

Isso sugere que o apelo da direita radical decorre menos de sua hostilidade obsessiva em relação a imigrantes e mais de sua crítica aos fracassos do bloco em responder às preocupações cotidianas das pessoas. Políticos europeus poderiam buscar remediar essa situação mudando instituições e melhorando o poder de barganha da população, fazendo as pessoas se sentirem ouvidas. Mas, em vez disso, preferem dar palestras sisudas.

A direita radical pode estar em ascensão na Europa, mas não tem de ser assim. A política sempre estará à mercê da sorte. Mas a sorte, como enfatizou Maquiavel em “O Príncipe”, é como um rio, cuja cheia pode ser evitada construindo diques e represas. Se os políticos europeus ficam cada vez mais presos a gestão de emergências, isso ocorre porque eles fracassaram na primeira tarefa política digna dessa categoria: diagnosticar as causas das crises, explicar quem é representado e quem é excluído e defender pessoas cuja liberdade esteja em perigo.

A política do povo apresentada pela direita radical pode ser estritamente etnocêntrica, mas é a única que dialoga diretamente com as desilusões das pessoas. Nossos príncipes modernos podem preferir desviar o olhar. Mas enquanto a direita radical continuar a dominar os termos do debate público, enquanto suas raízes históricas forem discretamente ignoradas, nenhum apelo a valores europeus conterá o rio no qual todos nós estamos prestes a nos afogar./TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Opinião por Lea Ypi

Lea Ypi (@lea_ypi) é professora de teoria política da London School of Economics e autora de “Livre”.

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