ENVIADA ESPECIAL A EL PASO E CIUDAD JUAREZ - À primeira vista, o único vestígio dos imigrantes eram os cobertores, as roupas e os sapatos esquecidos na areia. O muro e a cerca de arame farpado se impunham na paisagem. As poucas pessoas ali, divididas em pequenos grupos, buscavam abrigo para o sol forte no meio da vegetação. E esperavam.
Kelvin, um imigrante da Nicarágua, estava acampado às margens do Rio Grande desde a noite anterior. Ele e os colegas que fez no caminho buscavam cruzar a fronteira ilegalmente para se entregar às autoridades americanas como requerentes de asilo, mas precisaram recuar na primeira tentativa.
“Falhamos por causa do gás de pimenta. Não aguentamos, não conseguíamos respirar. Então voltamos. Ficamos de 9h da noite às 5h da manhã tentando entrar. A patrulha fica de frente para você”, relatava ele, enquanto um pequeno grupo de imigrantes recém chegados parava para pedir informações.
Mais à frente, um casal de colombianos se preparava para a terceira tentativa de cruzar a fronteira com o filho de 11 meses. Havia ainda um grupo de venezuelanos, todos da mesma família, alguns repórteres, e o ambulante, que vendia refrescos no clima desértico, com a caixa térmica acoplada à bicicleta.
A Puerta 36, um dos pontos mais conhecidos pelos imigrantes que tentam chegar aos Estados Unidos, nem parecia o mesmo lugar de meses antes, quando multidões avançavam sobre a fronteira. Às vezes, entrando em confronto com as tropas de prontidão do outro lado, em El Paso, no Texas.
Quando as travessias atingiram a máxima histórica, no fim do ano passado, as autoridades precisaram desmentir que a Puerta 36 estaria aberta para os imigrantes. A informação falsa circulava em vídeos nas redes sociais, como esse, que dão a dimensão da movimentação na fronteira naquele período.
De lá para cá, os números estão em queda e atingiram o patamar mais baixo desde 2020, quando Donald Trump ainda estava no comando dos EUA. O republicano, por outro lado, insiste que o país seria alvo de uma “invasão” e escala a retórica contra imigrantes à medida que a eleição se aproxima.
“Nossos criminosos são bebês comparados com essas pessoas. Esses criminosos são as pessoas mais violentas na terra”, disse recentemente no Colorado, que era considerado um Estado-pêndulo de inclinações republicanas, mas votou com os democratas nas últimas eleições.
Quem acompanha discursos de Trump, como esse, pode imaginar que a situação na fronteira está fora de controle. “Kamala importou um exército de gangues de estrangeiros ilegais e criminosos migrantes das masmorras do terceiro mundo”, seguiu, dizendo que os imigrantes sairiam de prisões e instituições psiquiátricas para “atacar cidadãos americanos inocentes.”
A retórica, contudo, esbarra nos dados da realidade. Registros do FBI mostram que os crimes violentos estão em declínio nos Estados Unidos. No caso dos homicídios, a queda do último ano (12%) foi a mais significativa em duas décadas.
E diferentes estudos refutam a tese de que a imigração leve ao aumento da violência. Uma análise dos registros criminais no Texas descobriu que a taxa de delitos cometidos por imigrantes ilegais era substancialmente menor que a registrada entre os cidadãos que nasceram nos EUA.
Os nascidos americanos tinham probabilidade 2 vezes maior de serem presos por crimes violentos. O padrão se repetia para os crimes relacionados a drogas (2,5 vezes) e contra propriedade (4 vezes). A pesquisa, conduzida por Michael Light, da Universidade de Wisconsin-Madison, foi revisada por pares e publicado pela Academia Nacional de Ciências dos EUA.
Nas ruas da pacata El Paso, uma das principais portas de entrada para os imigrantes que chegam ao Texas, os moradores costumam responder orgulhosos sempre que perguntados sobre a violência: “essa é uma das cidades mais seguras dos Estados Unidos.”
El Paso — uma cidade jovem, com cerca de 680 mil habitantes, que falam mais espanhol que inglês — é reduto democrata no republicano Estado do Texas. Por lá, muitos tem uma posição mais acolhedora sobre os imigrantes.
O reverendo Rafael Garcia, da Igreja do Sagrado Coração, abriu o pátio anexo à paróquia para recebê-los quando percebeu que os abrigos estavam ficando sem capacidade para atender ao fluxo crescente de venezuelanos que chegava à cidade. Era dezembro de 2022.
A igreja — que tem sua origem enraizada na primeira geração de imigrantes mexicanos ― acolheu uma média de 120 pessoas por dia com a ajuda de voluntários da comunidade local. Com a queda na demanda, o serviço foi continuado no mês passado.
“A migração forçada, das pessoas que precisam deixar os seus países por razões muito sérias, tem sido politizada. Alguns veículos da imprensa descrevem como uma crise, uma invasão, e alguns políticos usam esses termos mas, realmente, esse não é o caso”, disse em entrevista Estadão.
“Os Estados Unidos são um país rico, com muito espaço, muitos recursos e que precisa de trabalhadores. Não acho que (essa politização) seja útil.”
Mas nem todo mundo pensa como o padre. É o caso de Angél Gallegos, estudante de 22 anos. Ele é nascido em Ciudad Juarez, do lado mexicano da fronteira, mas tem cidadania americana e decidiu se mudar este ano para El Paso, onde tem família.
O jovem se incomoda com a forma que Trump fala dos imigrantes. “É horrível, são seres humanos”, diz ele. Contudo, defende políticas mais rigorosas para fronteira. “As pessoas querem o caminho mais fácil, mas a forma (que entram aqui) não é correta”, justificou.
Nesse momento, sentiu dificuldades com o inglês e a entrevista passou a ser feita em espanhol. “Não é fácil assim. Entendo que queiram uma vida melhor, realmente entendo isso, mas as coisas não podem ser dadas tão facilmente.”
Hector, filho de mexicanos, que chegou a El Paso aos cinco anos de idade, acredita que os imigrantes que chegam aos EUA atualmente vem em busca de benefícios do governo. “Não são como a geração do meu pai, que veio para trabalhar”. Ele pretendia votar em Trump nessas eleições.
O motorista se enquadra nos 45% dos homens latinos que declararam voto no candidato do Partido Republicano, segundo pesquisa New York Times/Siena College, que aponta as dificuldades de Kamala Harris numa parcela do eleitorado que pode ser decisiva.
A retórica de Trump, cada vez mas agressiva, não consolidou o voto latino em torno de Kamala, que aparece com desempenho abaixo de Joe Biden e Hillary Clinton no seguimento.
Entre os que nasceram em solo americano, 67% disseram que não se sentem diretamente atacados quando o republicano dispara contra imigração. A percepção é compartilhada por metade dos que chegaram aos EUA vindos de outro país.
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Diferentes pesquisas têm indicado que, cada vez mais, os americanos veem a imigração como um problema. E até o controvertido plano de Donald Trump para deportação em massa tem ganhado adesão, com apoio de metade dos eleitores, apesar dos desafios logísticos para colocá-lo em prática e do impacto econômico que teria.
Para Brad Jones, professor de ciência política e integrante do Centro de Migração Global da Universidade da Califórnia, em Davis, o discurso surte o efeito de apelar para o medo. Contribui ainda para mobilizar a base republicana, que considera a imigração e a economia pautas prioritárias.
“A narrativa de que os Estados Unidos estão sendo invadidos não se sustenta. O número de solicitantes de asilo está muito baixo, o número de travessias na fronteira está muito baixo e, ainda assim, Trump lidera substancialmente as pesquisas que dizem respeito à imigração”, afirma.
Democratas sinalizam com políticas mais rígidas
A tendência de queda, verificada a partir de janeiro, se intensificou depois que o presidente Joe Biden assinou a ordem executiva com medidas mais rígidas contra imigração. Isso inclui limitações aos pedidos de asilo, direito protegido pela lei interacional. A regra prevê o fechamento da fronteira sempre que a média de travessias chegar a 2,5 mil por dia no período de uma semana.
“O governo Biden tem um aplicativo em que as pessoas podem fazer agendamentos para entrar legalmente com o pedido de asilo. Só que a fila é muito grande”, explica o advogado Marcelo Gondim, integrante da American Immigration Lawyers Association e fundador da Gondim Law Corp.
A ideia é que os imigrantes acessem o aplicativo do México e aguardem a entrevista por lá — o que costuma levar semanas, até meses. Os que decidem não esperar tem cruzado a fronteira ilegalmente para se entregar às autoridades como requerentes de asilo. Nesse caso, explica Gondin, eles são autorizados a permanecer nos EUA, em liberdade condicional, enquanto esperam o processo.
É esse o foco da restrição ao asilo imposta durante o governo democrata. A medida, criticada por organizações que atuam no acolhimento aos imigrantes, reflete o esforço do partido para atacar uma de suas maiores vulnerabilidades: a imigração.
O tema, central na campanha, é especialmente incômodo para Kamala Harris. Ainda no começo do governo, a vice-presidente ficou encarregada da imigração e precisou responder, numa entrevista desastrosa, porque não tinha pisado na fronteira, seis meses depois da posse. “E eu nunca fui para Europa (risos)”, respondeu.
Apelidada por Donald Trump de “czar da fronteira”, Kamala tem sinalizado que estaria disposta em adotar políticas migratórias mais à direita.
Ao visitar a fronteira com o México, no mês passado, ela propôs restringir ainda mais os pedidos de asilo. E prometeu avançar com o projeto bipartidário de segurança nas fronteiras “mais rigoroso em décadas” — proposta que naufragou no Congresso por resistência dos republicanos, pressionados por Trump.
Essa é uma mudança significativa para a democrata que prometeu tratamento mais humanitário para os imigrantes e defendeu que as travessias ilegais fossem descriminalizadas quando disputou as primárias do partido na última eleição. “Embora possamos pensar em Kamala Harris como progressista, suas posições sobre imigração não estão muito distantes de algumas das posições de Trump”, avalia Brad Jones.