Opinião|Por que a inteligência artificial pode não ser tão ruim para a América Latina quanto você pensa


Novo relatório do FMI corrobora uma percepção de que a América Latina pode perder menos com a revolução da IA do que estimado anteriormente — apesar da falta de preparo da região

Por Eduardo Levy Yeyati*

BUENOS AIRES — “É difícil fazer previsões, especialmente sobre o futuro.” Esta afirmação, com frequência atribuída ao físico ganhador do Nobel Niels Bohr, nunca foi tão válida quanto no atual debate a respeito da inteligência artificial e os mercados de trabalho.

Alguns anos atrás, o consenso era claro. A automação provavelmente substituiria os trabalhadores medianamente capacitados, baixaria os salários dos profissionais de baixa capacitação em razão da competição com os trabalhadores de capacitação mediana e aumentaria a remuneração com base em qualificações. Essa tendência foi exacerbada pelo declínio das atividades profissionais que exigem contato pessoal e da ascensão do trabalho remoto e do comércio eletrônico durante a pandemia de covid-19. Como resultado, países de renda baixa e média, incluindo latino-americanos, com forças de trabalho menos qualificadas, eram considerados os mais vulneráveis à substituição pela tecnologia — onde a vulnerabilidade era medida enquanto probabilidade de uma atividade ou tarefa ser automatizada.

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A educação, especialmente o aprendizado superior e oriundo da experiência, era vista como um elemento crucial para se adaptar à automação. Até maio de 2023, especialistas acreditavam que o índice de emprego em economias de alta renda seguiria estável ou até se elevaria à medida que a automação criasse tantos postos de trabalho quanto destruísse.

Uma mulher caminha por uma rua do bairro Paris, no município de Bello, em Medellín, Colômbia Foto: Jaime Saldarriaga/AFP

Mas acelerando a fita para os dias de hoje essas previsões já não se sustentam. Na realidade, os desfechos mais prováveis podem ser o oposto — com grandes consequências para as economias latino-americanas.

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Primeiramente, a IA generativa reduz a quantidade de qualificação humana necessária para a realização de determinadas tarefas: substituiu conhecimentos e habilidades. Ao minar as vantagens da educação e da experiência, a IA generativa estreita as possibilidades de emprego para trabalhadores altamente qualificados — num “efeito Robin Hood” que equalizaria os salários por baixo e ao mesmo tempo reduziria ainda mais a participação do trabalho no lucro. Apesar da noção dos programadores serem os trabalhadores braçais de hoje não ser novidade, a IA generativa mostra que sozinha a educação não é capaz de competir com a tecnologia em avanço num sentido muito mais amplo. Além disso, questiona estimativas de exposição à automação: no momento em que alcançarmos a inteligência artificial geral (IAG), o que, segundo preveem especialistas, pode ocorrer em 20 anos, nenhuma atividade será imune à substituição pela tecnologia. Consequentemente, são os países de alta renda, com grande capital humano a se perder para a automação, que estão atualmente mais expostos à substituição pela tecnologia no futuro próximo.

O fator humano

Há mais, porém, a se considerar. Criticamente, nós temos de fazer distinção entre substituição potencial, conduzida por capacidades tecnológicas, e substituição de fato, influenciada por limites impostos por usuários e consumidores.

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Conforme argumentamos em um novo livro, a fronteira de substituição provavelmente não será tecnológica. Enquanto no lado da oferta do mercado da automação pode não haver nenhuma restrição tecnológica para a substituição do trabalho humano, limitações culturais, sociais, legais ou morais no lado da demanda desempenharão uma função crítica.

Por exemplo, em 2016, pesquisadores lançaram a Máquina Moral, uma plataforma destinada a “coletar a perspectiva humana em relação às decisões morais feitas pela inteligência das máquinas”. Um cenário apresenta o dilema do bonde da perspectiva de um carro autônomo: como um veículo autônomo deveria reagir a uma decisão de vida ou morte? Além de lançar discussões morais fascinantes, esses exercícios evidenciam um problema jurídico: ainda que possamos aceitar uma reação humana imperfeita causando um acidente, uma decisão de um carro autônomo responsabilizaria seu fabricante — um possível obstáculo para a adoção universal de carros completamente autônomos, apesar de sua aptidão técnica.

Outro exemplo é o Perfil de Gerenciamento de Infratores Correcionais para Sanções Alternativas (COMPAS), um algoritmo usado por juízes em muitos Estados americanos para analisar riscos de reincidência que tem demonstrado replicar preconceitos humanos, incluindo raciais. Enquanto o perfilamento de um juiz pode ser criticado, um algoritmo tendencioso representa um passivo legal e econômico, possivelmente dissuadindo sua implementação.

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Regurgitações por ferramentas de IA de materiais protegidos por direitos autorais também apresentam problemas, conforme sublinhado em um processo do New York Times contra a OpenAI, dona do ChatGPT. A OpenAI argumentou que usar textos escritos por autores humanos, protegidos ou não por direitos autorais, é essencial para o desenvolvimento de grandes modelos de linguagem (GMLs) como o GPT. E isso sempre será essencial: como os GMLs conseguiriam ficar em dia com transformações linguísticas, estáticas, culturais, sociais e morais de outra maneira?

A “aura” em torno de criadores e artistas também pode proteger sua obra da competição da IA. Ainda que a IA seja capaz de compor músicas indistinguíveis de composições humanas, as pessoas poderão não gostar da música composta por máquinas e preferir não comparecer a concerto sem músicos humanos (imagine uma noite na Metropolitan Opera House com uma apresentação de robôs tenores; ou um show do Kraftwerk em que os quatro membros do grupo entregam o palco para computadores). A IA poderia produzir filmes com base em figuras de atores, mas os espectadores ainda apreciariam a coisa de verdade e resistiriam à intrusão da tecnologia (basta ver as reclamações sobre um uso marginal de IA no cinema recente para perceber). Esse conceito se estende para além da arte, a muitas atividades contemporâneas: os consumidores podem escolher um cozinheiro humano em vez de um chef-robô ou itens de decoração “com imperfeições”, feitos a mão, em vez de produtos imaculados fabricados por IA.

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Finalmente, há o choque do não natural. Há algo inquietante a respeito de um professor-robô ou um terapeuta incorpóreo relacionado à teoria do vale da estranheza, que postula a relação não monótona entre a semelhança de um objeto (ou uma imagem) e um ser humano e nossa resposta emocional a esse fenômeno. Pense no assustador Yul Brynner como ciborgue caubói na série Westworld, ou no artificialmente jovem Harrison Ford no último Indiana Jones. Com tudo isso em mente, fica claro que a tecnologia não ditará sozinha a substituição tecnológica. O calendário tecnologista pode ser subestimado em razão desses elementos humanos. (E isso nem toca nas preocupações sobre desinformação e cibersegurança centrais nos atuais chamados por regulações e pausas no campo da IA.)

Mitigação, adaptação e preparo

Comparar a revolução tecnológica com a mudança climática pode nos ajudar a ampliar o debate sobre IA. Em relação à mudança climática, o mundo segue não alcançando metas ambientais e o foco tem recaído cada vez mais sobre adaptação, apesar da mitigação continuar essencial. Em relação à IA, apesar da convicção bem arraigada de que a tecnologia não pode ser incontida, em um mundo multipolar seu avanço é inevitável — e é premente adaptar-se.

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Pensar a respeito da exposição à IA deveria ir além de listar tarefas automatizáveis e enfatizar o preparo. Deveria incluir educação, políticas laborais, impostos e acordos de transferência que promovem tecnologias mais produtivas e complementares ao trabalho humano, assim como regulações (como um selo “fabricado por humanos”) que ressaltem o fator humano e expandam as atividades humanas. Nós precisamos de ferramentas para gerir a volátil transição para um futuro em que o trabalho tradicional poderá declinar e uma nova arquitetura de distribuição de renda será necessária.

Em que situação isso tudo deixa a América Latina?

Esse panorama complicado é exposto pelo relatório recente do FMI sobre IA. Ainda que, conforme notamos, a América Latina pareça menos vulnerável à substituição pela IA, segundo seu Índice de Preparo para a IA, a região é também a menos preparada para a IA. É é difícil quantificar o equilíbrio entre essas duas métricas.

Fatores claros que determinam a falta de preparo da região incluem sistemas educacionais rígidos e antiquados, aprendizagem abaixo da média em matemática e leitura, conectividade digital escassa e desigual e recapacitações e treinamentos vocacionais limitados em razão da informalidade e das precariedades generalizadas.

Do lado positivo, a resistência cultural à automação pode ser maior. É mais fácil imaginar babás-robô ou IAs terapeutas no Japão ou na China do que em países latino-americanos tradicionais. Uma coisa é clara: as atuais medidas de exposição não captam plenamente os fatores não tecnológicos que serão críticos para determinar substituições por IA no futuro. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

BUENOS AIRES — “É difícil fazer previsões, especialmente sobre o futuro.” Esta afirmação, com frequência atribuída ao físico ganhador do Nobel Niels Bohr, nunca foi tão válida quanto no atual debate a respeito da inteligência artificial e os mercados de trabalho.

Alguns anos atrás, o consenso era claro. A automação provavelmente substituiria os trabalhadores medianamente capacitados, baixaria os salários dos profissionais de baixa capacitação em razão da competição com os trabalhadores de capacitação mediana e aumentaria a remuneração com base em qualificações. Essa tendência foi exacerbada pelo declínio das atividades profissionais que exigem contato pessoal e da ascensão do trabalho remoto e do comércio eletrônico durante a pandemia de covid-19. Como resultado, países de renda baixa e média, incluindo latino-americanos, com forças de trabalho menos qualificadas, eram considerados os mais vulneráveis à substituição pela tecnologia — onde a vulnerabilidade era medida enquanto probabilidade de uma atividade ou tarefa ser automatizada.

A educação, especialmente o aprendizado superior e oriundo da experiência, era vista como um elemento crucial para se adaptar à automação. Até maio de 2023, especialistas acreditavam que o índice de emprego em economias de alta renda seguiria estável ou até se elevaria à medida que a automação criasse tantos postos de trabalho quanto destruísse.

Uma mulher caminha por uma rua do bairro Paris, no município de Bello, em Medellín, Colômbia Foto: Jaime Saldarriaga/AFP

Mas acelerando a fita para os dias de hoje essas previsões já não se sustentam. Na realidade, os desfechos mais prováveis podem ser o oposto — com grandes consequências para as economias latino-americanas.

Primeiramente, a IA generativa reduz a quantidade de qualificação humana necessária para a realização de determinadas tarefas: substituiu conhecimentos e habilidades. Ao minar as vantagens da educação e da experiência, a IA generativa estreita as possibilidades de emprego para trabalhadores altamente qualificados — num “efeito Robin Hood” que equalizaria os salários por baixo e ao mesmo tempo reduziria ainda mais a participação do trabalho no lucro. Apesar da noção dos programadores serem os trabalhadores braçais de hoje não ser novidade, a IA generativa mostra que sozinha a educação não é capaz de competir com a tecnologia em avanço num sentido muito mais amplo. Além disso, questiona estimativas de exposição à automação: no momento em que alcançarmos a inteligência artificial geral (IAG), o que, segundo preveem especialistas, pode ocorrer em 20 anos, nenhuma atividade será imune à substituição pela tecnologia. Consequentemente, são os países de alta renda, com grande capital humano a se perder para a automação, que estão atualmente mais expostos à substituição pela tecnologia no futuro próximo.

O fator humano

Há mais, porém, a se considerar. Criticamente, nós temos de fazer distinção entre substituição potencial, conduzida por capacidades tecnológicas, e substituição de fato, influenciada por limites impostos por usuários e consumidores.

Conforme argumentamos em um novo livro, a fronteira de substituição provavelmente não será tecnológica. Enquanto no lado da oferta do mercado da automação pode não haver nenhuma restrição tecnológica para a substituição do trabalho humano, limitações culturais, sociais, legais ou morais no lado da demanda desempenharão uma função crítica.

Por exemplo, em 2016, pesquisadores lançaram a Máquina Moral, uma plataforma destinada a “coletar a perspectiva humana em relação às decisões morais feitas pela inteligência das máquinas”. Um cenário apresenta o dilema do bonde da perspectiva de um carro autônomo: como um veículo autônomo deveria reagir a uma decisão de vida ou morte? Além de lançar discussões morais fascinantes, esses exercícios evidenciam um problema jurídico: ainda que possamos aceitar uma reação humana imperfeita causando um acidente, uma decisão de um carro autônomo responsabilizaria seu fabricante — um possível obstáculo para a adoção universal de carros completamente autônomos, apesar de sua aptidão técnica.

Outro exemplo é o Perfil de Gerenciamento de Infratores Correcionais para Sanções Alternativas (COMPAS), um algoritmo usado por juízes em muitos Estados americanos para analisar riscos de reincidência que tem demonstrado replicar preconceitos humanos, incluindo raciais. Enquanto o perfilamento de um juiz pode ser criticado, um algoritmo tendencioso representa um passivo legal e econômico, possivelmente dissuadindo sua implementação.

Regurgitações por ferramentas de IA de materiais protegidos por direitos autorais também apresentam problemas, conforme sublinhado em um processo do New York Times contra a OpenAI, dona do ChatGPT. A OpenAI argumentou que usar textos escritos por autores humanos, protegidos ou não por direitos autorais, é essencial para o desenvolvimento de grandes modelos de linguagem (GMLs) como o GPT. E isso sempre será essencial: como os GMLs conseguiriam ficar em dia com transformações linguísticas, estáticas, culturais, sociais e morais de outra maneira?

A “aura” em torno de criadores e artistas também pode proteger sua obra da competição da IA. Ainda que a IA seja capaz de compor músicas indistinguíveis de composições humanas, as pessoas poderão não gostar da música composta por máquinas e preferir não comparecer a concerto sem músicos humanos (imagine uma noite na Metropolitan Opera House com uma apresentação de robôs tenores; ou um show do Kraftwerk em que os quatro membros do grupo entregam o palco para computadores). A IA poderia produzir filmes com base em figuras de atores, mas os espectadores ainda apreciariam a coisa de verdade e resistiriam à intrusão da tecnologia (basta ver as reclamações sobre um uso marginal de IA no cinema recente para perceber). Esse conceito se estende para além da arte, a muitas atividades contemporâneas: os consumidores podem escolher um cozinheiro humano em vez de um chef-robô ou itens de decoração “com imperfeições”, feitos a mão, em vez de produtos imaculados fabricados por IA.

Finalmente, há o choque do não natural. Há algo inquietante a respeito de um professor-robô ou um terapeuta incorpóreo relacionado à teoria do vale da estranheza, que postula a relação não monótona entre a semelhança de um objeto (ou uma imagem) e um ser humano e nossa resposta emocional a esse fenômeno. Pense no assustador Yul Brynner como ciborgue caubói na série Westworld, ou no artificialmente jovem Harrison Ford no último Indiana Jones. Com tudo isso em mente, fica claro que a tecnologia não ditará sozinha a substituição tecnológica. O calendário tecnologista pode ser subestimado em razão desses elementos humanos. (E isso nem toca nas preocupações sobre desinformação e cibersegurança centrais nos atuais chamados por regulações e pausas no campo da IA.)

Mitigação, adaptação e preparo

Comparar a revolução tecnológica com a mudança climática pode nos ajudar a ampliar o debate sobre IA. Em relação à mudança climática, o mundo segue não alcançando metas ambientais e o foco tem recaído cada vez mais sobre adaptação, apesar da mitigação continuar essencial. Em relação à IA, apesar da convicção bem arraigada de que a tecnologia não pode ser incontida, em um mundo multipolar seu avanço é inevitável — e é premente adaptar-se.

Pensar a respeito da exposição à IA deveria ir além de listar tarefas automatizáveis e enfatizar o preparo. Deveria incluir educação, políticas laborais, impostos e acordos de transferência que promovem tecnologias mais produtivas e complementares ao trabalho humano, assim como regulações (como um selo “fabricado por humanos”) que ressaltem o fator humano e expandam as atividades humanas. Nós precisamos de ferramentas para gerir a volátil transição para um futuro em que o trabalho tradicional poderá declinar e uma nova arquitetura de distribuição de renda será necessária.

Em que situação isso tudo deixa a América Latina?

Esse panorama complicado é exposto pelo relatório recente do FMI sobre IA. Ainda que, conforme notamos, a América Latina pareça menos vulnerável à substituição pela IA, segundo seu Índice de Preparo para a IA, a região é também a menos preparada para a IA. É é difícil quantificar o equilíbrio entre essas duas métricas.

Fatores claros que determinam a falta de preparo da região incluem sistemas educacionais rígidos e antiquados, aprendizagem abaixo da média em matemática e leitura, conectividade digital escassa e desigual e recapacitações e treinamentos vocacionais limitados em razão da informalidade e das precariedades generalizadas.

Do lado positivo, a resistência cultural à automação pode ser maior. É mais fácil imaginar babás-robô ou IAs terapeutas no Japão ou na China do que em países latino-americanos tradicionais. Uma coisa é clara: as atuais medidas de exposição não captam plenamente os fatores não tecnológicos que serão críticos para determinar substituições por IA no futuro. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

BUENOS AIRES — “É difícil fazer previsões, especialmente sobre o futuro.” Esta afirmação, com frequência atribuída ao físico ganhador do Nobel Niels Bohr, nunca foi tão válida quanto no atual debate a respeito da inteligência artificial e os mercados de trabalho.

Alguns anos atrás, o consenso era claro. A automação provavelmente substituiria os trabalhadores medianamente capacitados, baixaria os salários dos profissionais de baixa capacitação em razão da competição com os trabalhadores de capacitação mediana e aumentaria a remuneração com base em qualificações. Essa tendência foi exacerbada pelo declínio das atividades profissionais que exigem contato pessoal e da ascensão do trabalho remoto e do comércio eletrônico durante a pandemia de covid-19. Como resultado, países de renda baixa e média, incluindo latino-americanos, com forças de trabalho menos qualificadas, eram considerados os mais vulneráveis à substituição pela tecnologia — onde a vulnerabilidade era medida enquanto probabilidade de uma atividade ou tarefa ser automatizada.

A educação, especialmente o aprendizado superior e oriundo da experiência, era vista como um elemento crucial para se adaptar à automação. Até maio de 2023, especialistas acreditavam que o índice de emprego em economias de alta renda seguiria estável ou até se elevaria à medida que a automação criasse tantos postos de trabalho quanto destruísse.

Uma mulher caminha por uma rua do bairro Paris, no município de Bello, em Medellín, Colômbia Foto: Jaime Saldarriaga/AFP

Mas acelerando a fita para os dias de hoje essas previsões já não se sustentam. Na realidade, os desfechos mais prováveis podem ser o oposto — com grandes consequências para as economias latino-americanas.

Primeiramente, a IA generativa reduz a quantidade de qualificação humana necessária para a realização de determinadas tarefas: substituiu conhecimentos e habilidades. Ao minar as vantagens da educação e da experiência, a IA generativa estreita as possibilidades de emprego para trabalhadores altamente qualificados — num “efeito Robin Hood” que equalizaria os salários por baixo e ao mesmo tempo reduziria ainda mais a participação do trabalho no lucro. Apesar da noção dos programadores serem os trabalhadores braçais de hoje não ser novidade, a IA generativa mostra que sozinha a educação não é capaz de competir com a tecnologia em avanço num sentido muito mais amplo. Além disso, questiona estimativas de exposição à automação: no momento em que alcançarmos a inteligência artificial geral (IAG), o que, segundo preveem especialistas, pode ocorrer em 20 anos, nenhuma atividade será imune à substituição pela tecnologia. Consequentemente, são os países de alta renda, com grande capital humano a se perder para a automação, que estão atualmente mais expostos à substituição pela tecnologia no futuro próximo.

O fator humano

Há mais, porém, a se considerar. Criticamente, nós temos de fazer distinção entre substituição potencial, conduzida por capacidades tecnológicas, e substituição de fato, influenciada por limites impostos por usuários e consumidores.

Conforme argumentamos em um novo livro, a fronteira de substituição provavelmente não será tecnológica. Enquanto no lado da oferta do mercado da automação pode não haver nenhuma restrição tecnológica para a substituição do trabalho humano, limitações culturais, sociais, legais ou morais no lado da demanda desempenharão uma função crítica.

Por exemplo, em 2016, pesquisadores lançaram a Máquina Moral, uma plataforma destinada a “coletar a perspectiva humana em relação às decisões morais feitas pela inteligência das máquinas”. Um cenário apresenta o dilema do bonde da perspectiva de um carro autônomo: como um veículo autônomo deveria reagir a uma decisão de vida ou morte? Além de lançar discussões morais fascinantes, esses exercícios evidenciam um problema jurídico: ainda que possamos aceitar uma reação humana imperfeita causando um acidente, uma decisão de um carro autônomo responsabilizaria seu fabricante — um possível obstáculo para a adoção universal de carros completamente autônomos, apesar de sua aptidão técnica.

Outro exemplo é o Perfil de Gerenciamento de Infratores Correcionais para Sanções Alternativas (COMPAS), um algoritmo usado por juízes em muitos Estados americanos para analisar riscos de reincidência que tem demonstrado replicar preconceitos humanos, incluindo raciais. Enquanto o perfilamento de um juiz pode ser criticado, um algoritmo tendencioso representa um passivo legal e econômico, possivelmente dissuadindo sua implementação.

Regurgitações por ferramentas de IA de materiais protegidos por direitos autorais também apresentam problemas, conforme sublinhado em um processo do New York Times contra a OpenAI, dona do ChatGPT. A OpenAI argumentou que usar textos escritos por autores humanos, protegidos ou não por direitos autorais, é essencial para o desenvolvimento de grandes modelos de linguagem (GMLs) como o GPT. E isso sempre será essencial: como os GMLs conseguiriam ficar em dia com transformações linguísticas, estáticas, culturais, sociais e morais de outra maneira?

A “aura” em torno de criadores e artistas também pode proteger sua obra da competição da IA. Ainda que a IA seja capaz de compor músicas indistinguíveis de composições humanas, as pessoas poderão não gostar da música composta por máquinas e preferir não comparecer a concerto sem músicos humanos (imagine uma noite na Metropolitan Opera House com uma apresentação de robôs tenores; ou um show do Kraftwerk em que os quatro membros do grupo entregam o palco para computadores). A IA poderia produzir filmes com base em figuras de atores, mas os espectadores ainda apreciariam a coisa de verdade e resistiriam à intrusão da tecnologia (basta ver as reclamações sobre um uso marginal de IA no cinema recente para perceber). Esse conceito se estende para além da arte, a muitas atividades contemporâneas: os consumidores podem escolher um cozinheiro humano em vez de um chef-robô ou itens de decoração “com imperfeições”, feitos a mão, em vez de produtos imaculados fabricados por IA.

Finalmente, há o choque do não natural. Há algo inquietante a respeito de um professor-robô ou um terapeuta incorpóreo relacionado à teoria do vale da estranheza, que postula a relação não monótona entre a semelhança de um objeto (ou uma imagem) e um ser humano e nossa resposta emocional a esse fenômeno. Pense no assustador Yul Brynner como ciborgue caubói na série Westworld, ou no artificialmente jovem Harrison Ford no último Indiana Jones. Com tudo isso em mente, fica claro que a tecnologia não ditará sozinha a substituição tecnológica. O calendário tecnologista pode ser subestimado em razão desses elementos humanos. (E isso nem toca nas preocupações sobre desinformação e cibersegurança centrais nos atuais chamados por regulações e pausas no campo da IA.)

Mitigação, adaptação e preparo

Comparar a revolução tecnológica com a mudança climática pode nos ajudar a ampliar o debate sobre IA. Em relação à mudança climática, o mundo segue não alcançando metas ambientais e o foco tem recaído cada vez mais sobre adaptação, apesar da mitigação continuar essencial. Em relação à IA, apesar da convicção bem arraigada de que a tecnologia não pode ser incontida, em um mundo multipolar seu avanço é inevitável — e é premente adaptar-se.

Pensar a respeito da exposição à IA deveria ir além de listar tarefas automatizáveis e enfatizar o preparo. Deveria incluir educação, políticas laborais, impostos e acordos de transferência que promovem tecnologias mais produtivas e complementares ao trabalho humano, assim como regulações (como um selo “fabricado por humanos”) que ressaltem o fator humano e expandam as atividades humanas. Nós precisamos de ferramentas para gerir a volátil transição para um futuro em que o trabalho tradicional poderá declinar e uma nova arquitetura de distribuição de renda será necessária.

Em que situação isso tudo deixa a América Latina?

Esse panorama complicado é exposto pelo relatório recente do FMI sobre IA. Ainda que, conforme notamos, a América Latina pareça menos vulnerável à substituição pela IA, segundo seu Índice de Preparo para a IA, a região é também a menos preparada para a IA. É é difícil quantificar o equilíbrio entre essas duas métricas.

Fatores claros que determinam a falta de preparo da região incluem sistemas educacionais rígidos e antiquados, aprendizagem abaixo da média em matemática e leitura, conectividade digital escassa e desigual e recapacitações e treinamentos vocacionais limitados em razão da informalidade e das precariedades generalizadas.

Do lado positivo, a resistência cultural à automação pode ser maior. É mais fácil imaginar babás-robô ou IAs terapeutas no Japão ou na China do que em países latino-americanos tradicionais. Uma coisa é clara: as atuais medidas de exposição não captam plenamente os fatores não tecnológicos que serão críticos para determinar substituições por IA no futuro. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

BUENOS AIRES — “É difícil fazer previsões, especialmente sobre o futuro.” Esta afirmação, com frequência atribuída ao físico ganhador do Nobel Niels Bohr, nunca foi tão válida quanto no atual debate a respeito da inteligência artificial e os mercados de trabalho.

Alguns anos atrás, o consenso era claro. A automação provavelmente substituiria os trabalhadores medianamente capacitados, baixaria os salários dos profissionais de baixa capacitação em razão da competição com os trabalhadores de capacitação mediana e aumentaria a remuneração com base em qualificações. Essa tendência foi exacerbada pelo declínio das atividades profissionais que exigem contato pessoal e da ascensão do trabalho remoto e do comércio eletrônico durante a pandemia de covid-19. Como resultado, países de renda baixa e média, incluindo latino-americanos, com forças de trabalho menos qualificadas, eram considerados os mais vulneráveis à substituição pela tecnologia — onde a vulnerabilidade era medida enquanto probabilidade de uma atividade ou tarefa ser automatizada.

A educação, especialmente o aprendizado superior e oriundo da experiência, era vista como um elemento crucial para se adaptar à automação. Até maio de 2023, especialistas acreditavam que o índice de emprego em economias de alta renda seguiria estável ou até se elevaria à medida que a automação criasse tantos postos de trabalho quanto destruísse.

Uma mulher caminha por uma rua do bairro Paris, no município de Bello, em Medellín, Colômbia Foto: Jaime Saldarriaga/AFP

Mas acelerando a fita para os dias de hoje essas previsões já não se sustentam. Na realidade, os desfechos mais prováveis podem ser o oposto — com grandes consequências para as economias latino-americanas.

Primeiramente, a IA generativa reduz a quantidade de qualificação humana necessária para a realização de determinadas tarefas: substituiu conhecimentos e habilidades. Ao minar as vantagens da educação e da experiência, a IA generativa estreita as possibilidades de emprego para trabalhadores altamente qualificados — num “efeito Robin Hood” que equalizaria os salários por baixo e ao mesmo tempo reduziria ainda mais a participação do trabalho no lucro. Apesar da noção dos programadores serem os trabalhadores braçais de hoje não ser novidade, a IA generativa mostra que sozinha a educação não é capaz de competir com a tecnologia em avanço num sentido muito mais amplo. Além disso, questiona estimativas de exposição à automação: no momento em que alcançarmos a inteligência artificial geral (IAG), o que, segundo preveem especialistas, pode ocorrer em 20 anos, nenhuma atividade será imune à substituição pela tecnologia. Consequentemente, são os países de alta renda, com grande capital humano a se perder para a automação, que estão atualmente mais expostos à substituição pela tecnologia no futuro próximo.

O fator humano

Há mais, porém, a se considerar. Criticamente, nós temos de fazer distinção entre substituição potencial, conduzida por capacidades tecnológicas, e substituição de fato, influenciada por limites impostos por usuários e consumidores.

Conforme argumentamos em um novo livro, a fronteira de substituição provavelmente não será tecnológica. Enquanto no lado da oferta do mercado da automação pode não haver nenhuma restrição tecnológica para a substituição do trabalho humano, limitações culturais, sociais, legais ou morais no lado da demanda desempenharão uma função crítica.

Por exemplo, em 2016, pesquisadores lançaram a Máquina Moral, uma plataforma destinada a “coletar a perspectiva humana em relação às decisões morais feitas pela inteligência das máquinas”. Um cenário apresenta o dilema do bonde da perspectiva de um carro autônomo: como um veículo autônomo deveria reagir a uma decisão de vida ou morte? Além de lançar discussões morais fascinantes, esses exercícios evidenciam um problema jurídico: ainda que possamos aceitar uma reação humana imperfeita causando um acidente, uma decisão de um carro autônomo responsabilizaria seu fabricante — um possível obstáculo para a adoção universal de carros completamente autônomos, apesar de sua aptidão técnica.

Outro exemplo é o Perfil de Gerenciamento de Infratores Correcionais para Sanções Alternativas (COMPAS), um algoritmo usado por juízes em muitos Estados americanos para analisar riscos de reincidência que tem demonstrado replicar preconceitos humanos, incluindo raciais. Enquanto o perfilamento de um juiz pode ser criticado, um algoritmo tendencioso representa um passivo legal e econômico, possivelmente dissuadindo sua implementação.

Regurgitações por ferramentas de IA de materiais protegidos por direitos autorais também apresentam problemas, conforme sublinhado em um processo do New York Times contra a OpenAI, dona do ChatGPT. A OpenAI argumentou que usar textos escritos por autores humanos, protegidos ou não por direitos autorais, é essencial para o desenvolvimento de grandes modelos de linguagem (GMLs) como o GPT. E isso sempre será essencial: como os GMLs conseguiriam ficar em dia com transformações linguísticas, estáticas, culturais, sociais e morais de outra maneira?

A “aura” em torno de criadores e artistas também pode proteger sua obra da competição da IA. Ainda que a IA seja capaz de compor músicas indistinguíveis de composições humanas, as pessoas poderão não gostar da música composta por máquinas e preferir não comparecer a concerto sem músicos humanos (imagine uma noite na Metropolitan Opera House com uma apresentação de robôs tenores; ou um show do Kraftwerk em que os quatro membros do grupo entregam o palco para computadores). A IA poderia produzir filmes com base em figuras de atores, mas os espectadores ainda apreciariam a coisa de verdade e resistiriam à intrusão da tecnologia (basta ver as reclamações sobre um uso marginal de IA no cinema recente para perceber). Esse conceito se estende para além da arte, a muitas atividades contemporâneas: os consumidores podem escolher um cozinheiro humano em vez de um chef-robô ou itens de decoração “com imperfeições”, feitos a mão, em vez de produtos imaculados fabricados por IA.

Finalmente, há o choque do não natural. Há algo inquietante a respeito de um professor-robô ou um terapeuta incorpóreo relacionado à teoria do vale da estranheza, que postula a relação não monótona entre a semelhança de um objeto (ou uma imagem) e um ser humano e nossa resposta emocional a esse fenômeno. Pense no assustador Yul Brynner como ciborgue caubói na série Westworld, ou no artificialmente jovem Harrison Ford no último Indiana Jones. Com tudo isso em mente, fica claro que a tecnologia não ditará sozinha a substituição tecnológica. O calendário tecnologista pode ser subestimado em razão desses elementos humanos. (E isso nem toca nas preocupações sobre desinformação e cibersegurança centrais nos atuais chamados por regulações e pausas no campo da IA.)

Mitigação, adaptação e preparo

Comparar a revolução tecnológica com a mudança climática pode nos ajudar a ampliar o debate sobre IA. Em relação à mudança climática, o mundo segue não alcançando metas ambientais e o foco tem recaído cada vez mais sobre adaptação, apesar da mitigação continuar essencial. Em relação à IA, apesar da convicção bem arraigada de que a tecnologia não pode ser incontida, em um mundo multipolar seu avanço é inevitável — e é premente adaptar-se.

Pensar a respeito da exposição à IA deveria ir além de listar tarefas automatizáveis e enfatizar o preparo. Deveria incluir educação, políticas laborais, impostos e acordos de transferência que promovem tecnologias mais produtivas e complementares ao trabalho humano, assim como regulações (como um selo “fabricado por humanos”) que ressaltem o fator humano e expandam as atividades humanas. Nós precisamos de ferramentas para gerir a volátil transição para um futuro em que o trabalho tradicional poderá declinar e uma nova arquitetura de distribuição de renda será necessária.

Em que situação isso tudo deixa a América Latina?

Esse panorama complicado é exposto pelo relatório recente do FMI sobre IA. Ainda que, conforme notamos, a América Latina pareça menos vulnerável à substituição pela IA, segundo seu Índice de Preparo para a IA, a região é também a menos preparada para a IA. É é difícil quantificar o equilíbrio entre essas duas métricas.

Fatores claros que determinam a falta de preparo da região incluem sistemas educacionais rígidos e antiquados, aprendizagem abaixo da média em matemática e leitura, conectividade digital escassa e desigual e recapacitações e treinamentos vocacionais limitados em razão da informalidade e das precariedades generalizadas.

Do lado positivo, a resistência cultural à automação pode ser maior. É mais fácil imaginar babás-robô ou IAs terapeutas no Japão ou na China do que em países latino-americanos tradicionais. Uma coisa é clara: as atuais medidas de exposição não captam plenamente os fatores não tecnológicos que serão críticos para determinar substituições por IA no futuro. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

BUENOS AIRES — “É difícil fazer previsões, especialmente sobre o futuro.” Esta afirmação, com frequência atribuída ao físico ganhador do Nobel Niels Bohr, nunca foi tão válida quanto no atual debate a respeito da inteligência artificial e os mercados de trabalho.

Alguns anos atrás, o consenso era claro. A automação provavelmente substituiria os trabalhadores medianamente capacitados, baixaria os salários dos profissionais de baixa capacitação em razão da competição com os trabalhadores de capacitação mediana e aumentaria a remuneração com base em qualificações. Essa tendência foi exacerbada pelo declínio das atividades profissionais que exigem contato pessoal e da ascensão do trabalho remoto e do comércio eletrônico durante a pandemia de covid-19. Como resultado, países de renda baixa e média, incluindo latino-americanos, com forças de trabalho menos qualificadas, eram considerados os mais vulneráveis à substituição pela tecnologia — onde a vulnerabilidade era medida enquanto probabilidade de uma atividade ou tarefa ser automatizada.

A educação, especialmente o aprendizado superior e oriundo da experiência, era vista como um elemento crucial para se adaptar à automação. Até maio de 2023, especialistas acreditavam que o índice de emprego em economias de alta renda seguiria estável ou até se elevaria à medida que a automação criasse tantos postos de trabalho quanto destruísse.

Uma mulher caminha por uma rua do bairro Paris, no município de Bello, em Medellín, Colômbia Foto: Jaime Saldarriaga/AFP

Mas acelerando a fita para os dias de hoje essas previsões já não se sustentam. Na realidade, os desfechos mais prováveis podem ser o oposto — com grandes consequências para as economias latino-americanas.

Primeiramente, a IA generativa reduz a quantidade de qualificação humana necessária para a realização de determinadas tarefas: substituiu conhecimentos e habilidades. Ao minar as vantagens da educação e da experiência, a IA generativa estreita as possibilidades de emprego para trabalhadores altamente qualificados — num “efeito Robin Hood” que equalizaria os salários por baixo e ao mesmo tempo reduziria ainda mais a participação do trabalho no lucro. Apesar da noção dos programadores serem os trabalhadores braçais de hoje não ser novidade, a IA generativa mostra que sozinha a educação não é capaz de competir com a tecnologia em avanço num sentido muito mais amplo. Além disso, questiona estimativas de exposição à automação: no momento em que alcançarmos a inteligência artificial geral (IAG), o que, segundo preveem especialistas, pode ocorrer em 20 anos, nenhuma atividade será imune à substituição pela tecnologia. Consequentemente, são os países de alta renda, com grande capital humano a se perder para a automação, que estão atualmente mais expostos à substituição pela tecnologia no futuro próximo.

O fator humano

Há mais, porém, a se considerar. Criticamente, nós temos de fazer distinção entre substituição potencial, conduzida por capacidades tecnológicas, e substituição de fato, influenciada por limites impostos por usuários e consumidores.

Conforme argumentamos em um novo livro, a fronteira de substituição provavelmente não será tecnológica. Enquanto no lado da oferta do mercado da automação pode não haver nenhuma restrição tecnológica para a substituição do trabalho humano, limitações culturais, sociais, legais ou morais no lado da demanda desempenharão uma função crítica.

Por exemplo, em 2016, pesquisadores lançaram a Máquina Moral, uma plataforma destinada a “coletar a perspectiva humana em relação às decisões morais feitas pela inteligência das máquinas”. Um cenário apresenta o dilema do bonde da perspectiva de um carro autônomo: como um veículo autônomo deveria reagir a uma decisão de vida ou morte? Além de lançar discussões morais fascinantes, esses exercícios evidenciam um problema jurídico: ainda que possamos aceitar uma reação humana imperfeita causando um acidente, uma decisão de um carro autônomo responsabilizaria seu fabricante — um possível obstáculo para a adoção universal de carros completamente autônomos, apesar de sua aptidão técnica.

Outro exemplo é o Perfil de Gerenciamento de Infratores Correcionais para Sanções Alternativas (COMPAS), um algoritmo usado por juízes em muitos Estados americanos para analisar riscos de reincidência que tem demonstrado replicar preconceitos humanos, incluindo raciais. Enquanto o perfilamento de um juiz pode ser criticado, um algoritmo tendencioso representa um passivo legal e econômico, possivelmente dissuadindo sua implementação.

Regurgitações por ferramentas de IA de materiais protegidos por direitos autorais também apresentam problemas, conforme sublinhado em um processo do New York Times contra a OpenAI, dona do ChatGPT. A OpenAI argumentou que usar textos escritos por autores humanos, protegidos ou não por direitos autorais, é essencial para o desenvolvimento de grandes modelos de linguagem (GMLs) como o GPT. E isso sempre será essencial: como os GMLs conseguiriam ficar em dia com transformações linguísticas, estáticas, culturais, sociais e morais de outra maneira?

A “aura” em torno de criadores e artistas também pode proteger sua obra da competição da IA. Ainda que a IA seja capaz de compor músicas indistinguíveis de composições humanas, as pessoas poderão não gostar da música composta por máquinas e preferir não comparecer a concerto sem músicos humanos (imagine uma noite na Metropolitan Opera House com uma apresentação de robôs tenores; ou um show do Kraftwerk em que os quatro membros do grupo entregam o palco para computadores). A IA poderia produzir filmes com base em figuras de atores, mas os espectadores ainda apreciariam a coisa de verdade e resistiriam à intrusão da tecnologia (basta ver as reclamações sobre um uso marginal de IA no cinema recente para perceber). Esse conceito se estende para além da arte, a muitas atividades contemporâneas: os consumidores podem escolher um cozinheiro humano em vez de um chef-robô ou itens de decoração “com imperfeições”, feitos a mão, em vez de produtos imaculados fabricados por IA.

Finalmente, há o choque do não natural. Há algo inquietante a respeito de um professor-robô ou um terapeuta incorpóreo relacionado à teoria do vale da estranheza, que postula a relação não monótona entre a semelhança de um objeto (ou uma imagem) e um ser humano e nossa resposta emocional a esse fenômeno. Pense no assustador Yul Brynner como ciborgue caubói na série Westworld, ou no artificialmente jovem Harrison Ford no último Indiana Jones. Com tudo isso em mente, fica claro que a tecnologia não ditará sozinha a substituição tecnológica. O calendário tecnologista pode ser subestimado em razão desses elementos humanos. (E isso nem toca nas preocupações sobre desinformação e cibersegurança centrais nos atuais chamados por regulações e pausas no campo da IA.)

Mitigação, adaptação e preparo

Comparar a revolução tecnológica com a mudança climática pode nos ajudar a ampliar o debate sobre IA. Em relação à mudança climática, o mundo segue não alcançando metas ambientais e o foco tem recaído cada vez mais sobre adaptação, apesar da mitigação continuar essencial. Em relação à IA, apesar da convicção bem arraigada de que a tecnologia não pode ser incontida, em um mundo multipolar seu avanço é inevitável — e é premente adaptar-se.

Pensar a respeito da exposição à IA deveria ir além de listar tarefas automatizáveis e enfatizar o preparo. Deveria incluir educação, políticas laborais, impostos e acordos de transferência que promovem tecnologias mais produtivas e complementares ao trabalho humano, assim como regulações (como um selo “fabricado por humanos”) que ressaltem o fator humano e expandam as atividades humanas. Nós precisamos de ferramentas para gerir a volátil transição para um futuro em que o trabalho tradicional poderá declinar e uma nova arquitetura de distribuição de renda será necessária.

Em que situação isso tudo deixa a América Latina?

Esse panorama complicado é exposto pelo relatório recente do FMI sobre IA. Ainda que, conforme notamos, a América Latina pareça menos vulnerável à substituição pela IA, segundo seu Índice de Preparo para a IA, a região é também a menos preparada para a IA. É é difícil quantificar o equilíbrio entre essas duas métricas.

Fatores claros que determinam a falta de preparo da região incluem sistemas educacionais rígidos e antiquados, aprendizagem abaixo da média em matemática e leitura, conectividade digital escassa e desigual e recapacitações e treinamentos vocacionais limitados em razão da informalidade e das precariedades generalizadas.

Do lado positivo, a resistência cultural à automação pode ser maior. É mais fácil imaginar babás-robô ou IAs terapeutas no Japão ou na China do que em países latino-americanos tradicionais. Uma coisa é clara: as atuais medidas de exposição não captam plenamente os fatores não tecnológicos que serão críticos para determinar substituições por IA no futuro. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Opinião por Eduardo Levy Yeyati*

*Ex-economista-chefe do Banco Central da Argentina, é reitor da Escola de Governo da Universidade Torcuato di Tella, em Buenos Aires. Ele é membro do conselho editorial da AQ

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