WASHINGTON — Donald Trump e seus apoiadores estão reagindo ao terceiro indiciamento contra o ex-presidente com uma cartilha cada vez mais familiar: fazendo acusações não relacionadas ao caso, distraindo a atenção do público com alegações enganosas sobre as acusações e demonizando a Promotoria.
Em vez de convencer os apoiadores de Trump a respeito da gravidade das acusações, o indiciamento da terça-feira, 1, está sendo ostentado como prova de uma conspiração para derrubar o ex-presidente republicano e da continuidade de esforços dos democratas, dos meios de comunicação e do chamado Estado profundo para interferir nas eleições americanas.
Trump tem dito há anos aos seus apoiadores que eleições não são confiáveis e que ele é vítima de uma perseguição corrupta por parte do governo e da mídia. Com essa narrativa transmitida por meios de imprensa conservadores e amplificada nas redes sociais, é natural que muitos dos apoiadores a aceitem, afirmou a historiadora Ruth Ben-Ghiat, da Universidade de Nova York, que estuda propaganda de movimentos e regimes autoritários.
“Desde 2016, Trump dissemina a ideia de que as eleições, em si, são corruptas e não confiáveis. São sete anos já propagando essa narrativa”, afirmou Ben-Ghiat. “Trump é um dos propagandistas mais formidáveis do século 21. Ele criou esse mundo coerente, em que, para os seus apoiadores, tudo confirma sua vitimização.”
As repetidas mentiras de Trump a respeito de fraude eleitoral fundamentam o mais recente indiciamento, que acusa o ex-presidente de buscar reverter o resultado da eleição de 2020 nos dois meses que antecederam o ataque violento de seus apoiadores contra o Capitólio.
“O ataque à capital da nossa nação, em 6 de janeiro de 2021, foi um assalto sem precedentes ao âmago da democracia americana”, afirmou o promotor especial Jack Smith na terça-feira. “Conforme descrito no indiciamento, mentiras foram o combustível do ataque. Mentiras pronunciadas pelo réu, destinadas a obstruir o processo basilar do governo americano de coletar votos, contá-los e certificar o resultado da eleição presidencial.”
Separadamente, o ex-presidente responde a acusações de ter falsificado registros corporativos relacionados a um pagamento em troca de silêncio a uma atriz pornô de Nova York, manter ilegalmente documentos secretos em sua mansão em Palm Beach, Flórida, e obstruir uma investigação sobre sua manipulação.
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Para os apoiadores mais devotos, os indiciamentos contra Trump são prova ainda maior da conspiração contra o ex-presidente. Esse sentimento se espalhou rapidamente pelas redes sociais após os dois primeiros indiciamentos, e sua expressão era encontrada facilmente na quarta-feira em plataformas online como Telegram, Gab, Truth Social e outras redes sociais populares entre conservadores.
“Os democratas roubaram a eleição de 2020″, postou o cineasta Dinesh D’Souza nas plataformas Truth Social e X, anteriormente conhecida como Twitter. “Esse indiciamento é uma tentativa de proteger ladrões e legitimar seu roubo.”
Grande parte da desinformação a respeito dos indiciamentos contra Trump originou-se no próprio ex-presidente, que, em vez de tentar minimizar seu risco jurídico, transformou seu processos na Justiça na peça central de sua pré-campanha à presidência, qualificando-os como um ataque contra a democracia, a liberdade e seus próprios seguidores.
Os aliados do ex-presidente — e sua equipe jurídica — argumentam que o indiciamento mais recente criminaliza ilegalmente o direito protegido de Trump à liberdade de expressão. John Lauro, um dos advogados de Trump, disse à CNN na terça-feira que “o foco da equipe é o fato de que tudo se trata de um ataque contra a livre expressão e de uma defesa de posições políticas”. “A livre expressão não sobreviverá se este indiciamento for bem-sucedido”, disse Stephen Miller, ex-conselheiro de Trump, à Fox News.
O apresentador da Fox News Greg Gutfeld pegou carona na narrativa, afirmando, “Vocês têm todo o direito de pensar que uma eleição pode ter sido fraudada ou roubada”.
Os promotores parecem ter antecipado essa resposta reconhecendo explicitamente no indiciamento que Trump tem o direito garantido pela 1.ª Emenda de mentir afirmando que houve fraude eleitoral. O indiciamento argumenta que o ex-presidente violou a lei quando suas mentiras se transformaram em ações — de tentativas de reverter o resultado da eleição obstruindo procedimentos oficiais a conspirar para impedir o direito dos eleitores de ter seus votos contados.
“O Réu tem o direito, como qualquer cidadão americano, de falar publicamente a respeito de uma eleição e até de alegar, falsamente, que teria havido alguma fraude que determinou seu desfecho e que ele teria ganhado”, afirmou o indiciamento.
Em vez de esmiuçar detalhes do indiciamento, muitos apoiadores de Trump têm apontado para as acusações criminais contra Hunter Biden, filho de Joe Biden, e afirmam sem provas que o presidente americano esteve envolvido em negócios do filho durante o exercício da função. Eles sugerem que os indiciamentos recentes contra Trump foram projetados para desviar a atenção do público da família Biden e questionam por que os promotores não investigam o governo Biden em vez de Trump.
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Outros apoiadores do ex-presidente que comentam o caso nas redes sociais colocaram foco em agências policiais envolvidas, nos promotores e até na juíza do caso. Na plataforma X, circularam fotos de Smith com a legenda, “A cara da maldade”. Alguns posts o chamaram de “atirador” ou “terrorista jurídico”.
Outros vasculharam a biografia da juíza distrital Tanya Chutkan e colocaram em questão sua imparcialidade notando que ela foi nomeada pelo ex-presidente Barack Obama, um democrata, e foi sócia de uma firma de advocacia em que Hunter Biden trabalhou no passado.
“Você sabia que a juíza Chutkan, que presidirá o novo indiciamento contra Trump, trabalhou com Hunter Biden?? É um embuste”, postou Sebastian Gorka, ex-assessor de segurança nacional de Trump.
Chutkan e Hunter Biden trabalharam na firma Boies Schiller Flexner LLP, mas não há nenhuma evidência de que tenham trabalhado proximamente. A Boies Schiller Flexner é uma empresa grande e bem conhecida, com 13 escritórios em 3 países e mais de 170 advogados listados em seu website. A firma não retornou imediatamente a um pedido de comentário da reportagem.
Trump respondeu às acusações em uma mensagem de arrecadação de fundos para sua pré-campanha, sugerindo enganosamente que o indiciamento trata dos “eventos que ocorreram em 6 de janeiro” de 2021, ignorando os dois meses anteriores ao ataque contra o Capitólio, centrais para as acusações. A arrecadação de fundos de Trump aumentou após os dois primeiros indiciamentos.
O ex-presidente também invocou horrores do passado global, afirmando em um comunicado, “A ilegalidade dessas perseguições ao (ex-)presidente Trump e seus apoiadores lembra a Alemanha nazista nos anos 30, a ex-União Soviética e outros regimes autoritários e ditatoriais”.
A equipe de Trump não retornou pedidos de comentário para esta reportagem.
O uso de Trump das acusações contra ele na pré-campanha presidencial significa que o volume de desinformações a respeito dos indiciamentos, do ataque de 6 de janeiro de 2021 e da eleição de 2020 deverá aumentar, segundo a cientista política Dora Vertenten, da Universidade do Sul da Califórnia. Quase tudo está em jogo para Trump, que busca ressurgir politicamente ao mesmo tempo que tenta não ser preso. “A coisa está só começando”, afirmou Vertenten. /AP, COM TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO