A maioria dos altos comandantes do Hamas morreu. Combatentes do grupo foram dizimados. Muitos de seus esconderijos e estoques de armamentos foram capturados e destruídos.
Mas o fato de o Hamas ter matado um coronel israelense no norte de Gaza no domingo passado sublinha como o braço militar do grupo, apesar de incapaz de operar como um exército convencional, ainda é uma força potente de guerrilha, com combatentes e munições suficientes para envolver o Exército de Israel em uma guerra lenta, desgastante e, até aqui, impossível de vencer.
O coronel Ehsan Daksa, membro da minoria druso-árabe de Israel, foi morto quando um explosivo plantado no caminho de seu comboio de tanques foi detonado. Um ataque surpresa, que exemplificou como o Hamas tem mantido sua atividade por quase um ano desde a invasão israelense a Gaza, no fim de outubro do ano passado, e como o grupo provavelmente será capaz de seguir atuando mesmo após a morte de seu líder, Yahya Sinwar, na semana passada.
Os combatentes do Hamas que restam estão se escondendo em edifícios arruinados e na vasta rede de túneis subterrâneos do grupo, que, em grande medida, continua intacta apesar dos esforços de Israel para destruí-la, de acordo com analistas militares e soldados israelenses.
Os militantes emergem brevemente, em unidades pequenas, para instalar explosivos em prédios, vias públicas e veículos blindados de Israel ou disparar granadas propelidas por foguetes contra forças israelenses antes de tentar retornar para o subterrâneo.
Ainda que o Hamas não seja capaz de derrotar Israel numa batalha frontal, sua abordagem em pequena escala, com ataques furtivos, tem lhe permitido continuar a infligir danos às forças israelenses e evitar ser derrotado, ainda que, segundo informações não confirmadas transmitidas por Israel, o grupo tenha perdido mais de 17 mil combatentes desde o início da guerra.
“As forças de guerrilha trabalham bem, e será muito difícil subjugá-las — não apenas no curto prazo, mas também no longo prazo”, afirmou Salah al-Din al-Awawdeh, membro do Hamas e ex-combatente do braço militar do grupo, que atua hoje como analista radicado em Istambul.
Apesar de Israel ter destruído os depósitos de foguetes de longo alcance do Hamas, afirmou Al-Awawdeh, “ainda há disponível uma quantidade infinita de explosivos e armas leves”.
Alguns desses explosivos foram escondidos antes do início da guerra. Outros são munições israelenses que não explodiram com o impacto, de acordo com o Hamas e com o Exército israelense. O Hamas publicou um vídeo nesta semana que pareceu mostrar combatentes do grupo transformando um míssil não detonado de Israel em uma bomba improvisada.
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No combate aberto, os terroristas do Hamas não são páreos para o Exército de Israel, conforme demonstrou o assassinato de Sinwar, no sul de Gaza, na semana passada. Encurralado nas ruínas de Rafah, Sinwar foi morto por uma unidade israelenses capaz de acionar o reforço de tanques, drones e atiradores de elite.
Mas sua morte dificilmente afetará a capacidade dos combatentes do Hamas no norte de Gaza, de acordo com analistas israelenses e palestinos.
Desde que Israel tomou o controle, em novembro do ano passado, de uma estrada crucial que divide o norte e o sul de Gaza, os líderes do Hamas no sul, entre eles Sinwar, vinham exercendo pouco controle direto sobre os combatentes no norte. E, depois de um ano de guerrilha, os membros do Hamas que restaram provavelmente se acostumaram a tomar decisões localmente, em vez de receber ordens de uma estrutura de comando centralizada.
Além disso, o grupo afirmou durante o verão (Hemisfério Norte) que recrutou novos combatentes, apesar de não ser claro quantos se alistaram nem a qualidade de seu treinamento.
O Hamas também se beneficiou da recusa de Israel tanto em manter suas posições quanto em transferir o poder em Gaza para uma liderança palestina alternativa. Consecutivamente, soldados israelenses expulsaram o Hamas de determinados bairros, mas se retiraram semanas depois sem entregar o poder para rivais palestinos do Hamas. Isso permitiu ao grupo retornar e voltar a exercer controle, o que com frequência fez o Exército de Israel retornar meses ou até semanas depois.
A atual campanha de Israel em Jabaliya, no norte de Gaza, onde o coronel Daksa foi morto, é pelo menos a terceira operação por lá em um ano.
Autoridades israelenses afirmam que esta ação mais recente é necessária para conter um ressurgimento do Hamas no local.
Mas a ausência de objetivo da estratégia de Israel tem ocasionado questionamentos de israelenses e palestinos sobre por que os soldados foram mandados novamente para Jabaliya.
“Nós ocupamos territórios — e depois vamos embora”, afirmou o analista israelense Michael Milstein, especialista em assuntos palestinos. “Esse tipo de doutrina produz uma guerra infinita.”
Enquanto isso, palestinos afirmam que esta operação em Jabaliya tem sido uma das ações mais traumáticas em uma guerra que já era brutal. Conforme os combates se intensificam, o espectro da fome paira novamente sobre o norte de Gaza, e funcionários de assistência médica alertam que os últimos hospitais que restam na região podem parar de funcionar.
Para os palestinos, a suposição geral é que Israel está tentando expulsar a população que ainda resta no norte de Gaza. A maioria dos palestinos que viviam no norte de Gaza antes da guerra — cerca de 1 milhão de pessoas — fugiu para o sul quando o conflito começou, mas acredita-se que cerca de 400 mil permaneceram na região.
Esse alerta entre os palestinos foi em parte fomentado por um proeminente ex-comandante militar israelense, o major-general Giora Eiland, que pressionou publicamente o governo do país a retirar a população do norte de Gaza cortando o fornecimento de alimentos e água na região.
Segundo o plano do general Eiland, o Exército de Israel daria aos 400 mil palestinos remanescentes uma semana para partir rumo ao sul antes de declarar o norte uma zona militar fechada. Israel bloquearia, então, todo o fornecimento de mantimentos para o norte, com o objetivo de forçar os militantes do Hamas a se render e devolver os reféns cativos desde o ataque de outubro do ano passado contra Israel.
“Eles se encontrarão diante de suas alternativas: se render ou morrer de fome”, afirmou em entrevista o general Eiland, ex-diretor do conselho de segurança nacional de Israel.
Qualquer civil que se recusar a partir sofrerá as consequências, sem nenhum mantimento entrando, afirmou o general.
“Estamos lhes dando toda a chance. E se alguns decidirem ficar, bem, isso provavelmente é problema deles”, afirmou o general Eiland.
O plano gerou um debate significativo, e alguns em Israel, incluindo ministros do governo, legisladores, o apoiam, conforme os israelenses buscam decisões definitivas para uma guerra que se repete.
Defensores de direitos humanos afirmam que uma política desse tipo, se colocada em prática, violaria o direito internacional e ameaçaria severamente o bem-estar dos civis no norte de Gaza.
O advogado israelense Michael Sfard, especialista em direitos humanos, afirmou que o plano do general Eiland envolveria “a criação deliberada de uma crise humanitária enquanto arma de guerra”. Cercar um inimigo em uma área pequena poderia ser aceitável, afirmou ele, mas um cerco a um território tão amplo não é.
As propostas do general “poderiam muito bem constituir um crime de guerra”, afirmou Sfard.
O porta-voz militar israelense Nadav Shoshani e Omer Dostri, porta-voz do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, afirmaram este mês que o governo não implementará o plano. Mas Dostri disse que Netanyahu o analisou.
Palestinos especulam que uma versão desse plano virou política de governo: Israel emitiu alertas para a retirada de mais bairros do norte de Gaza, lar de dezenas de milhares de pessoas, e a quantidade de ajuda entrando na região declinou acentuadamente desde o início de outubro.
O palestino Montaser Bahja, de 50 anos, contou que fugiu de sua residência em Jabaliya para se abrigar em outro ponto do norte de Gaza no início da operação mais recente de Israel. Ele disse que seus parentes que continuaram por lá relataram que os israelenses bombardearam com uma intensidade incomum e que a nova política parecia parte de uma tentativa — juntamente com a restrição sobre a ajuda humanitária — de forçar as pessoas a partir para o sul.
“Eles podem estar com vergonha de dizer isso para o mundo — e por isso negam”, afirmou Bahja, que leciona inglês para alunos do ensino médio. “Mas, com base no que eles estão fazendo em campo, parece que é isso mesmo.”
Autoridades israelenses dizem que permitem a entrada de bastante ajuda em todas as partes de Gaza e colocaram a culpa da escassez nos desafios de logística que as Nações Unidas e as organizações de ajuda humanitária enfrentam.
Apenas 410 caminhões carregados com itens de ajuda entraram em Gaza nas primeiras três semanas de outubro, em comparação com cerca de 3 mil em setembro, segundo a ONU. Os registros do Exército de Israel mostram uma queda similar.
Os preços dos vegetais e dos alimentos enlatados nos mercados improvisados nas ruas do norte de Gaza foram às alturas, afirmam palestinos, o que intensificou as preocupações entre ativistas defensores de direitos humanos de que as restrições israelenses já ocasionam uma crise de fome generalizada./TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO