Na guerra, devemos sempre esperar o inesperado. As forças ucranianas têm se preparado para uma ofensiva russa no segundo ou no terceiro trimestre centrada na região de Donbass, no leste da Ucrânia, como sequência do sucesso da Rússia em fevereiro na tomada da cidade de Avdiivka. Esse ataque ainda poderá ocorrer, mas, enquanto isso, as tropas russas montaram um ataque transfronteiriço inesperado na região de Kharkiv, no nordeste do país.
Aproximadamente cinco batalhões russos conseguiram avançar quase oito quilômetros para dentro da Ucrânia em apenas alguns dias, capturando uma série de aldeias e obrigando os defensores ucranianos a recuar no que pode ser o avanço russo mais rápido desde o início da guerra, em fevereiro de 2022. O general de divisão Kyrylo Budanov, chefe da inteligência militar ucraniana, descreveu a situação ao New York Times na segunda feira como “limítrofe” e caminhando “para crítica”.
Se os russos continuarem a avançar, poderão voltar a situar sua artilharia ao alcance de Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia. Visitei Kharkiv em março e vi a destruição causada pela artilharia russa em 2022; as cicatrizes ainda são visíveis nos muitos prédios de apartamentos abandonados nos arredores da cidade. Seria terrível se houvesse uma repetição destes ataques russos. O pior cenário possível seria a queda de Kharkiv. Isso ainda é improvável, mas, para salvar a cidade, a Ucrânia se vê obrigada a retirar as tropas do Donbass, facilitando o avanço dos russos naquela região.
Por que os russos estão obtendo esse sucesso repentino? A explicação é uma combinação de proezas militares russas e erros cometidos pela Ucrânia e pelos Estados Unidos.
As forças russas melhoraram o seu desempenho em combate desde os primeiros dias da guerra, quando pareciam não conseguir fazer nada direito. Estão se adaptando às condições do campo de batalha – por exemplo, utilizando motocicletas para avançar rapidamente em direção às linhas ucranianas, em vez de depender de pesados tanques e veículos blindados que podem ser facilmente abatidos por drones e pela artilharia ucraniana. Mais significativamente, têm usado pesadas “bombas planadoras” para pulverizar as linhas ucranianas, enquanto os seus próprios sistemas de guerra eletrônica têm embaralhado os sensores de drones e foguetes ucranianos.
Enquanto isso, as forças armadas da Ucrânia foram gravemente prejudicadas pelo longo atraso na aprovação da ajuda americana. As tropas ucranianas se viram em desvantagem de 10 para 1 em termos de munições de artilharia, e as suas munições de defesa aérea também estão se esgotando. O Wall Street Journal relata que “nos seis meses mais recentes, a Ucrânia interceptou cerca de 46% dos mísseis russos, em comparação com 73% no período de seis meses anterior. … No mês passado, a taxa de interceptação caiu para 30% dos mísseis.” A incapacidade da Ucrânia de fornecer defesa aérea adequada às tropas da linha da frente significa que a Rússia conseguiu utilizar o poder aéreo de forma significativa pela primeira vez.
As munições e armas dos EUA estão agora a caminho, finalmente, depois de o Congresso ter aprovado um pacote de ajuda de US$ 61 bilhões, mas serão necessários meses para abastecer adequadamente todas as forças ucranianas. Isso cria uma janela de vulnerabilidade que os russos estão explorando.
Os russos também podem aproveitar as restrições dos EUA contra a utilização de qualquer armamento americano para atacar alvos militares legítimos em território russo. O Institute for the Study of War, um centro de estudos estratégicos de Washington, atribui o recente avanço russo “em grande parte” a essas restrições, impossibilitando às forças ucranianas atingir as tropas russas concentradas para atacá-las a apenas alguns quilômetros de distância. O Reino Unido suspendeu agora uma restrição semelhante à utilização das armas britânicas, mas as limitações autodestrutivas dos EUA permanecem em vigor.
O governo da Ucrânia, infelizmente, também permitiu inadvertidamente o avanço russo ao ser tão lento na expansão das suas forças armadas e na construção de fortificações. Embora a Rússia tenha aumentado enormemente o número das suas tropas dentro e ao redor da Ucrânia, para quase 500 mil soldados, a Ucrânia ainda tem apenas cerca de 200 mil soldados na frente. Muitas das suas unidades, que lutam sem parar há mais de dois anos, estão bastante esgotadas.
A escassez de pessoal nas forças ucranianas é evidente há muito tempo, mas foi apenas no mês passado que o parlamento finalmente aprovou uma nova lei de mobilização. A Ucrânia planeja agora criar 10 brigadas adicionais, mas o recrutamento, o treino e o armamento levarão meses – tempo de que a Ucrânia não dispõe.
A Ucrânia também tem sido escandalosamente lenta no fortalecimento das suas fronteiras e linhas de frente. A contraofensiva ucraniana do ano passado estagnou porque os campos minados, trincheiras e barreiras russas se revelaram intransponíveis. A falta de fortificações ucranianas equivalentes está agora permitindo o avanço da Rússia. “Não havia primeira linha de defesa”, queixou-se à BBC um oficial ucraniano na região de Kharkiv. “Os russos… simplesmente entraram, sem nenhum campo minado.”
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Em março, o presidente ucraniano Volodmir Zelenski anunciou finalmente uma iniciativa para construir 1.900 quilômetros de fortificações ao longo de três linhas de defesa. Essas linhas estão sendo construídas agora, mas já deveriam estar instaladas há muitos meses. Este atraso reflete o fracasso de Zelenski em fazer mais para mobilizar a sociedade ucraniana para a guerra. A construção de edifícios de apartamentos de luxo continua em Kiev e no oeste da Ucrânia, mesmo enquanto o país trava uma guerra pela sobrevivência. Todos os trabalhadores da construção disponíveis e todo o seu equipamento já deveriam ter sido enviados há muito tempo para construir fortificações.
A boa notícia é que a Ucrânia ainda deverá ter tempo para se recuperar desses reveses. A construção de novas fortificações e a mobilização de mais soldados ucranianos, combinada com um influxo maciço de armas e munições dos EUA, deverá estancar o avanço russo e estabilizar as linhas de batalha. Ajudaria muito se o presidente Biden suspendesse as restrições ao uso de armas americanas para atacar alvos militares dentro da Rússia. Mas a situação é muito mais terrível do que deveria ser, em parte por causa de erros grosseiros e evitáveis tanto por parte de Kiev como de Washington. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL