De surpresa, a futura ministra de Relações Exteriores da Argentina Diana Mondino desembarcou em Brasília nesse fim de semana para uma reunião com o chanceler brasileiro, Mauro Vieira. No encontro ela entregou uma carta assinada pelo presidente eleito Javier Milei a Luiz Inácio Lula da Silva, convidando-o para a sua posse em 10 de dezembro. Depois de chamar Lula de comunista e corrupto durante a campanha e de ter convidado Jair Bolsonaro para a posse antes do presidente em exercício, Milei deu os primeiros sinais de que seu governo será mais pragmático do que prometeu como candidato, avaliam analistas.
A visita de Mondino não foi o único sinal de mudança de curso de Milei. Antes, a futura chanceler se reuniu com o embaixador da China em Buenos Aires e convidou o presidente chinês, Xi Jinping, para a posse do libertário. Mudanças de nomes dentro do futuro gabinete, especialmente na área econômica, bem como aliança com o partido de Mauricio Macri, o PRO, e com peronistas de Córdoba, sinalizam um Milei bastante diferente da campanha eleitoral, que falava de motosserra, comunistas e corruptos.
“Milei aos poucos está mostrando um estilo de liderança pragmático”, aponta Facundo Galván, professor de Ciência Política da Universidade de Buenos Aires (UBA). “Convidou para o seu gabinete figuras tanto do peronismo como do PRO. E, de fato, não há no momento tantas figuras do partido libertário na divisão de cargos. Somente algumas figuras de extrema confiança de Milei, como a própria Mondino”.
Nas primeiras 72 horas de governo, nomes clássicos de A Liberdade Avança que haviam sido confirmados nos cargos, como Emilio Ocampo para o Banco Central e Carolina Píparo para a ANSES (entidade de assistência social), foram chutados do gabinete. Outras ausências como de Ramiro Marra, ex-candidato a prefeito de Buenos Aires e um dos braços-direito de Milei, chamam atenção.
“Milei sempre demonstrou um tom mais desordenado [em campanha], mas agora demonstra ser muito mais realista e pragmático”, concorda o analista político pela UBA Pablo Touzon. “Por exemplo, a indicação de Luis ‘Toto’ Caputo para a Economia, que é uma espécie referência do macrismo implica praticamente descartar uma das ideias centrais da sua campanha, que era a dolarização”.
Um pragmatismo que já era, de certa forma, esperado, segundo o professor de ciência política da Universidade Católica Argentina (UCA) Fabian Calle. “Milei depois do primeiro turno, com o Pro dentro, com parte substancial do radicalismo dos territórios dentro e sabendo que tem que armar a maioria no legislativo, era previsível [o pragmatismo]. São todos gestos de normalidade, por que ele sabe que seu principal desafio é a economia.”
Além da economia, que hoje bate 142% de inflação, Milei também precisa construir apoios no Congresso e nos governos das províncias para seguir com suas promessas de campanha. A própria política externa jamais poderia ser alterada sem apoio e um rompimento com Brasil e China era inviável, alertam os analistas.
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Convite a Lula
Mas, o maior passo atrás do novo presidente até agora é no trato com o Brasil de Lula. Dias antes do fim da corrida eleitoral, Milei havia afirmado em entrevista que não se reuniria com Lula, o chamou de “comunista” e “corrupto”. Durante sua campanha, o deputado Eduardo Bolsonaro foi uma presença marcante - e em alguns momentos desconfortável na televisão argentina.
Além da viagem surpresa de Mondino, Milei deve manter o peronista Daniel Scioli como embaixador no Brasil. Scioli é reconhecido por ter conseguido manter a ponte entre Brasil e Argentina durante os pontos de maior atrito entre Jair Bolsonaro e Alberto Fernández, e tendo boa circulação entre os mais diversos espectros da política brasileira.
“Há duas coisas que mudaram profundamente em Milei: com o papa Francisco e com Lula. Podemos ver que, depois de ter feito declarações muito destrutivas sobre o papa Francisco e sobre Lula, ele voltou atrás em seus próprios passos e mantém uma conversa cordial”, observa Galván.
“Com Lula, enviou pessoalmente a sua futura chanceler e pessoa de máxima confiança, como é Diana Mondino, a convidá-lo em um gesto de conciliação, que não sei se será suficiente para Lula, mas, à luz do que vimos até então de Milei, é bastante significativo que tenha tido esse gesto. Claramente está voltando atrás em suas declarações explosivas quando não tinha a responsabilidade de ser o chefe de Estado”, completa o cientista político.
Não se sabe, porém, se Lula aceitará o convite. Logo depois de confirmada sua vitória, o libertário fez uma chamada de vídeo com Bolsonaro, onde o convidou a vir para a posse antes mesmo de falar com Lula. O círculo próximo do presidente brasileiro chegou a sugerir que Milei pedisse desculpas publicamente. No fim, Lula decidiu que não iria à posse do libertário.
“A impressão que tenho é que, com o Brasil, Milei está tentando reverter tudo o que disse”, indica Touzon. “Está deixando Scioli, que vamos lembrar foi candidato a presidente de Cristina Kirchner, e apesar de estar em baixa da política é um referência de uma linha de continuidade. O que está dizendo Milei é que quer continuar a linha de Scioli”.
“E depois que Mondino foi explicitamente pedir que Lula venha. Qualquer um diria que ela está revertendo o que o próprio Milei disse sobre os comunistas e tudo isso. A questão é ver até que ponto está disposto a desfazer isso no sentido do convite ao Bolsonaro. Duvido muito que desconvide o Bolsonaro, mas não sei o que está acontecendo por debaixo, se estão tentando desconvidá-lo sutilmente”, continua.
Acordo Mercosul
A própria indicação de Mondino para a pasta de política externa é um sinal de políticas mais moderadas. Atualmente deputada eleita pela cidade de Buenos Aires, Mondino é formada em Economia. Fundou nos anos 1990 a Risk Analysis, uma agência de classificação de risco, que foi posteriormente adquirida pela Standard & Poor’s, onde foi diretora para a América Latina. É de uma família presente na política, sendo casada com um ex-secretário de Carlos Menem e seu irmão foi secretário de Domingo Cavallo durante o governo de Fernando De la Rúa.
“Mondino é uma pessoa racional, muito prudente e que está aprendendo rápido”, opina Fabian Calle. “Fez a primeira viagem ao Brasil, vai aos Estados Unidos, convidou Gabriel Boric (do Chile), já disse que não vai mudar a embaixada para Jerusalém, que o comércio com a China não vai alterar nada. Mondino está rodeada de diplomatas com muita experiência e que trabalharam com muitos governos”.
Em declarações anteriores, ela já havia amenizado as declarações erráticas de Milei, dizendo que relações entre países não podem ser pautadas por amizades entre presidentes. Em sua estadia no Brasil, Mondino citou o acordo Mercosul-União Europeia, cuja assinatura o governo Lula estava tentando acelerar para antes da posse de Milei, temendo que este se transforme em um entrave. O sinal da futura chanceler, porém, foi em outro sentido.
“Mondino disse que quer um Mercosul maior e mais forte. Para mim, o que vale é isso. Vamos trabalhar com esse governo até o final do mandato e depois com o novo governo”, afirmou o chanceler Mauro Vieira após o encontro com a argentina.
No passado, Mondino defendeu menores travas dentro do Mercosul, em uma defesa semelhante a que faz o presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou. “É fundamental nos libertarmos dos obstáculos que existem atualmente. Deveríamos ter uma relação de cooperação e não de competição”, disse em uma conversa no Conselho Argentino de Relações Internacionais (Cari)
A posição parece corrigir o que seriam declarações meramente ideológicas de Milei que chegou a chamar o Mercosul de “estorvo”, mas defende liberdade econômica. “Milei abraçou o Pro e o Mauricio Macri e seu partido como parceiros do seu governo. E não se esqueça que o impulso do Acordo da Mercosul com a União Europeia foi uma das conquistas que comunicou entre lágrimas o chanceler Jorge Faurie, que foi chanceler de Macri”, lembra Galván.
E continua: “Mondino vai ser uma chanceler muito orientada nas relações econômicas internacionais, mais que orientada em função das relações políticas. Fez dois movimentos muito importantes nesse sentido. Uma com a embaixada de China. Ela foi receber pessoalmente uma nota da embaixada da China, felicitando Javier Milei pela sua presidência. E, em segundo lugar, esta viagem ao Brasil.”
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Acordos com Macri e o peronismo
Que Milei ia se aproximar de Macri já se sabia desde as primeiras horas depois de eleito. O libertário se reuniu com o presidente do PRO e com Patricia Bullrich na mesma noite em que celebrou sua vitória nas urnas. No entanto, o que surpreendeu foi a aliança com os peronistas de Córdoba, província de Juan Schiaretti, que é conhecido por ser um peronista anti-kirchnerista.
“Parece que estão construindo uma coalizão implícita, porque ninguém admite, nem Macri nem Schiaretti, mas é uma coalizão de governabilidade que com certeza terá tradução no Congresso”, aponta Pablo Touzon. “Outra intenção que tem Milei é de não se apoiar 100% em Macri ao buscar os peronistas para dar uma imagem de que seu governo não se tornou um governo sequestrado por Macri, que ele tem cerca autonomia ao que pensa o ex-presidente”.
A disputa agora está na presidência da Câmara de Deputados, onde Milei não tem maioria e não teria mesmo com uma aliança só com o PRO. Nesse sentido, o partido libertário tem negociado com nomes de Macri e de Schiaretti. “Está tratando de negociar com Cristian Ritondo (nome de Macri), Florencio Randazzo (nome de Schiaretti), em uma duríssima negociação sobre quem vai presidir a Câmara de Deputados. Mas em todos os cenários isso mostra seu pragmatismo, um Milei muito mais pragmático que o da campanha eleitoral”, afirma Galván.
“Se esperava que Ramiro Marra ou Carolina Píparo, que foram candidatos de muita confiança de Milei e fundadores do espaço libertário, estivessem em posições protagonistas, mas como seus resultados eleitorais não foram bons, a verdade não é tão estranho que não os esteja premiando com lugares no gabinete”, continua.
“Todos os que vinham mais na primeira fila do mundo libertário, mais próximos, como Lilia Lemoine, Ramiro Marra, não estão hoje na centralidade. Dá a sensação de que Milei tirou os ‘loquitos’ nessa primeira etapa de seu governo”, concorda Pablo Touzon.