Por que o Ocidente deveria mudar de curso em relação à Ucrânia; leia análise de Ishaan Tharoor


Relatório argumenta que, quanto mais a guerra se arrastar, mais provável é o risco de uma escalada que possivelmente verá o Kremlin acionar uma arma nuclear em campo de batalha

Por Ishaan Tharoor

A guerra na Ucrânia, pelo menos para alguns formuladores de políticas nas capitais ocidentais, pode ser medida em entregas de armas. Sua resposta para a matança brutal lançada pela Rússia em fevereiro do ano passado tem sido um desfile de blindagem e aço: Javelins, obuses, drones, veículos de ataque, sistemas antiaéreos, Himars e, mais recentemente, tanques de batalha. A cada estágio, Kiev pede mais para expulsar os invasores russos, e quase em todos os estágios o Ocidente tem acedido às demandas ucranianas, mas talvez não na velocidade que a Ucrânia gostaria.

A próxima rodada de barganhas deverá se centrar no desejo da Ucrânia por uma frota de caças de combate para múltiplos propósitos, que Kiev quer obter enquanto se prepara para repelir a anunciada próxima ofensiva russa e retomar território ocupado pelos russos no sudeste do país e a Península da Crimeia, que a Rússia anexou em 2014. “Deem-nos suas armas, e tomaremos de volta o que nos pertence”, afirmou o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, às elites globais, em Davos, no mês passado.

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Quando questionado esta semana se enviaria caças F-16, o presidente americano, Joe Biden disse “não”, enquanto autoridades britânicas disseram que “não é prático” enviar esse tipo de aeronave de ataque. Mas o presidente francês, Emmanuel Macron, disse a repórteres que, “por definição, nada é excluído” em termos de fornecimento de ajuda para os ucranianos. Assim é o comprometimento retórico do Ocidente com o esforço de guerra ucraniano. O Ocidente parece apoiar completamente a luta da Ucrânia por soberania, assim como a visão maximalista de vitória de Kiev.

Crianças caminham sobre destroços de veículos russos no centro de Kiev  Foto: Evgeniy Maloletka/AP - 02/02/2023

Autoridades ocidentais reconhecem que a guerra deveria (e provavelmente só poderá) terminar pela via diplomática. Mas todas vez que um repórter pergunta para algum político ou diplomata ocidental oficialmente como será o desfecho do conflito, eles quase sempre dão as mesma respostas: cabe somente à Ucrânia determinar as condições da paz (mesmo que sem a ajuda estrangeira os ucranianos talvez não conseguissem as impor); a Rússia não está interessada em negociar em boa-fé; e a tarefa mais importante agora é armar a Ucrânia suficientemente, para que seu peso em uma hipotética futura mesa de negociação seja o maior possível.

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Um novo relatório contraria essa posição, alertando que ela coloca os Estados Unidos no caminho de um conflito de duração indeterminada que poderia escalar ainda mais perigosamente. Intitulado Evitando uma guerra longa: a política americana e a trajetória do conflito russo-ucraniano, o relatório foi publicado recentemente pelo influente instituto Rand Corporation, de Washington.

O texto argumenta que, quanto mais a guerra se arrastar, mais provável é o risco de uma escalada que poderá opor diretamente a Rússia à Otan e possivelmente verá o Kremlin acionar uma arma nuclear em campo de batalha. Em vez de permitir que o conflito avance, as potências ocidentais deveriam fazer mais para que as partes em guerra negociem, aconselhou o relatório.

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Trata-se de um argumento que já foi sustentado anteriormente — incluindo por Henry Kissinger, o venerável farol do establishment da política externa americana. Mas o relatório Rand marca, talvez, o argumento mais sistemático para uma mudança de política sustentado por um instituto de análise de Washington. A vasta maioria do texto saudou a guerra na Ucrânia como uma luta justa e necessária, qualificando-a ainda como um momento para os EUA reafirmarem sua liderança na arena global. Em um desvio do roteiro do governo, o relatório não menciona nenhuma vez “democracia”, “estado de direito” ou “valores” ocidentais.

Em termos sóbrios, os cientistas políticos Samuel Charap e Miranda Priebe, autores do relatório, expõem fatores estruturais perturbadores da guerra: nem Rússia nem Ucrânia tem chance de garantir uma “vitória absoluta” da maneira que a consideram, mas ambos os países se sentem otimistas quanto à sua capacidade de vencer no longo prazo e estão pessimistas com relação ao que pode se seguir a um cessar-fogo ou durante uma paz inquieta.

Qualquer que seja a retórica política, paira incerteza em relação a quanto tempo o Ocidente será capaz de sustentar seus envios de ajuda e armas para a Ucrânia. Uma nova pesquisa Pew mostra que mais americanos já consideram que os EUA estão dando demais para a Ucrânia, enquanto os autores do relatório Rand apontam para a realidade óbvia de que uma guerra prolongada causaria mais sofrimento aos ucranianos e mais caos econômico na Europa.

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Armas nucleares

E há a questão das armas nucleares. Por meses, a Ucrânia e seus aliados insistiram que seus apoiadores ignorassem as ameaças esporádicas do presidente russo, Vladimir Putin, de escalada nuclear.

“É uma tática de medo”, afirmou recentemente aos meus colegas em Kiev o major-general Kirilo Budanov, chefe da inteligência militar da Ucrânia. “Podemos esperar muita coisa da Rússia, mas não idiotice pura. Desculpe, mas isso não vai acontecer. Realizar um ataque nuclear resultará não apenas em uma derrota militar para a Rússia, mas no colapso da Rússia. E eles sabem muito bem disso.”

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Mesmo assim, Charap e Priebe apontam para a realidade do risco de “uma guerra quente com o país que possui o maior arsenal nuclear do mundo”. Uma escalada nas hostilidades, talvez até ocasionada por erros de mira ou outros cálculos equivocados sob a névoa da guerra, poderia rapidamente empurrar países da Otan para um conflito aberto com a Rússia.

O presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, recebe a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em Kiev Foto: Ukrainian Presidential Press Office via AP - 02/02/2023

“Manter uma guerra entre Rússia e Otan abaixo do limite nuclear seria extremamente difícil, particularmente dado o estado enfraquecido das forças militares convencionais da Rússia”, escreveram eles. “Alguns analistas duvidam que a Rússia venha a atacar um país da Otan, pois já está perdendo terreno para as forças ucranianas e se encontraria em uma guerra contra a aliança mais poderosa do mundo. Contudo, se o Kremlin concluir que a segurança nacional da Rússia está gravemente em risco, poderá muito bem escalar deliberadamente, por falta de alternativas melhores.”

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Por que cortejar tal cenário, argumentam eles, quando até mesmo se conformar com as atuais linhas do conflito marcaria uma significativa derrota para a Rússia? “A guerra já foi tão devastadora para o poder da Rússia que mais enfraquecimento incremental não é, pode-se argumentar, um benefício significativo para os interesses dos EUA como em fases anteriores do conflito”, escreveram Charap e Priebe. “Levará anos, talvez décadas, para as corporações militares e a economia da Rússia se recuperarem do estrago já incorrido.”

Em outro ensaio, para a Economist, Christopher Chivvis, diretor do Programa de Diplomacia Americana no Fundo Carnegie para a Paz Internacional, faz uma afirmação similar: “Se as negociações congelassem as linhas de frente onde elas estão agora, Putin teria pagado um preço muito alto por ganhos muito limitados”, escreveu ele. “Suas Forças Armadas exibiram sua incompetência para o mundo inteiro. A Rússia é agora um Estado-pária, e sua relação com a Europa — por séculos a mais importante para os russos — está destruída. As sanções conterão o crescimento econômico da Rússia por anos, mesmo que sejam eventualmente moderadas em troca de concessões do Kremlin.”

Os autores do instituto Rand aconselham que, entre outras coisas, os EUA ofereçam um mapa do caminho para a Rússia indicando quais seriam as condições para uma eventual suspensão em sanções. Chivvis sustentou que empreender até mesmo um processo imperfeito e irregular de negociações — ou de conversas preliminares sobre negociações — seria preferível do que comprar a ideia de que é possível expulsar a Rússia completamente do território ucraniano.

“Sim, seria bom se a Ucrânia tomasse de volta um pouco mais de território”, escreveu ele. “Mas a que custo? E para que ganho estratégico? Mesmo na improvável hipótese de que o Ocidente apoiasse a Ucrânia completamente, por muitos anos, e finalmente forçasse a Rússia a deixar totalmente o território ucraniano, a Rússia provavelmente reiniciaria a guerra em algum momento para recuperar conquistas perdidas e sua reputação.”

Charap e Priebe reconheceram em sua introdução “que os ucranianos são os que estão lutando e morrendo para proteger seu país contra uma invasão russa não provocada, ilegal e moralmente repugnante”. Mas mesmo assim, de seu ponto de vista, isso não significa que os interesses da Ucrânia sejam “sinônimos” dos interesses dos EUA. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

A guerra na Ucrânia, pelo menos para alguns formuladores de políticas nas capitais ocidentais, pode ser medida em entregas de armas. Sua resposta para a matança brutal lançada pela Rússia em fevereiro do ano passado tem sido um desfile de blindagem e aço: Javelins, obuses, drones, veículos de ataque, sistemas antiaéreos, Himars e, mais recentemente, tanques de batalha. A cada estágio, Kiev pede mais para expulsar os invasores russos, e quase em todos os estágios o Ocidente tem acedido às demandas ucranianas, mas talvez não na velocidade que a Ucrânia gostaria.

A próxima rodada de barganhas deverá se centrar no desejo da Ucrânia por uma frota de caças de combate para múltiplos propósitos, que Kiev quer obter enquanto se prepara para repelir a anunciada próxima ofensiva russa e retomar território ocupado pelos russos no sudeste do país e a Península da Crimeia, que a Rússia anexou em 2014. “Deem-nos suas armas, e tomaremos de volta o que nos pertence”, afirmou o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, às elites globais, em Davos, no mês passado.

Quando questionado esta semana se enviaria caças F-16, o presidente americano, Joe Biden disse “não”, enquanto autoridades britânicas disseram que “não é prático” enviar esse tipo de aeronave de ataque. Mas o presidente francês, Emmanuel Macron, disse a repórteres que, “por definição, nada é excluído” em termos de fornecimento de ajuda para os ucranianos. Assim é o comprometimento retórico do Ocidente com o esforço de guerra ucraniano. O Ocidente parece apoiar completamente a luta da Ucrânia por soberania, assim como a visão maximalista de vitória de Kiev.

Crianças caminham sobre destroços de veículos russos no centro de Kiev  Foto: Evgeniy Maloletka/AP - 02/02/2023

Autoridades ocidentais reconhecem que a guerra deveria (e provavelmente só poderá) terminar pela via diplomática. Mas todas vez que um repórter pergunta para algum político ou diplomata ocidental oficialmente como será o desfecho do conflito, eles quase sempre dão as mesma respostas: cabe somente à Ucrânia determinar as condições da paz (mesmo que sem a ajuda estrangeira os ucranianos talvez não conseguissem as impor); a Rússia não está interessada em negociar em boa-fé; e a tarefa mais importante agora é armar a Ucrânia suficientemente, para que seu peso em uma hipotética futura mesa de negociação seja o maior possível.

Um novo relatório contraria essa posição, alertando que ela coloca os Estados Unidos no caminho de um conflito de duração indeterminada que poderia escalar ainda mais perigosamente. Intitulado Evitando uma guerra longa: a política americana e a trajetória do conflito russo-ucraniano, o relatório foi publicado recentemente pelo influente instituto Rand Corporation, de Washington.

O texto argumenta que, quanto mais a guerra se arrastar, mais provável é o risco de uma escalada que poderá opor diretamente a Rússia à Otan e possivelmente verá o Kremlin acionar uma arma nuclear em campo de batalha. Em vez de permitir que o conflito avance, as potências ocidentais deveriam fazer mais para que as partes em guerra negociem, aconselhou o relatório.

Trata-se de um argumento que já foi sustentado anteriormente — incluindo por Henry Kissinger, o venerável farol do establishment da política externa americana. Mas o relatório Rand marca, talvez, o argumento mais sistemático para uma mudança de política sustentado por um instituto de análise de Washington. A vasta maioria do texto saudou a guerra na Ucrânia como uma luta justa e necessária, qualificando-a ainda como um momento para os EUA reafirmarem sua liderança na arena global. Em um desvio do roteiro do governo, o relatório não menciona nenhuma vez “democracia”, “estado de direito” ou “valores” ocidentais.

Em termos sóbrios, os cientistas políticos Samuel Charap e Miranda Priebe, autores do relatório, expõem fatores estruturais perturbadores da guerra: nem Rússia nem Ucrânia tem chance de garantir uma “vitória absoluta” da maneira que a consideram, mas ambos os países se sentem otimistas quanto à sua capacidade de vencer no longo prazo e estão pessimistas com relação ao que pode se seguir a um cessar-fogo ou durante uma paz inquieta.

Qualquer que seja a retórica política, paira incerteza em relação a quanto tempo o Ocidente será capaz de sustentar seus envios de ajuda e armas para a Ucrânia. Uma nova pesquisa Pew mostra que mais americanos já consideram que os EUA estão dando demais para a Ucrânia, enquanto os autores do relatório Rand apontam para a realidade óbvia de que uma guerra prolongada causaria mais sofrimento aos ucranianos e mais caos econômico na Europa.

Armas nucleares

E há a questão das armas nucleares. Por meses, a Ucrânia e seus aliados insistiram que seus apoiadores ignorassem as ameaças esporádicas do presidente russo, Vladimir Putin, de escalada nuclear.

“É uma tática de medo”, afirmou recentemente aos meus colegas em Kiev o major-general Kirilo Budanov, chefe da inteligência militar da Ucrânia. “Podemos esperar muita coisa da Rússia, mas não idiotice pura. Desculpe, mas isso não vai acontecer. Realizar um ataque nuclear resultará não apenas em uma derrota militar para a Rússia, mas no colapso da Rússia. E eles sabem muito bem disso.”

Mesmo assim, Charap e Priebe apontam para a realidade do risco de “uma guerra quente com o país que possui o maior arsenal nuclear do mundo”. Uma escalada nas hostilidades, talvez até ocasionada por erros de mira ou outros cálculos equivocados sob a névoa da guerra, poderia rapidamente empurrar países da Otan para um conflito aberto com a Rússia.

O presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, recebe a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em Kiev Foto: Ukrainian Presidential Press Office via AP - 02/02/2023

“Manter uma guerra entre Rússia e Otan abaixo do limite nuclear seria extremamente difícil, particularmente dado o estado enfraquecido das forças militares convencionais da Rússia”, escreveram eles. “Alguns analistas duvidam que a Rússia venha a atacar um país da Otan, pois já está perdendo terreno para as forças ucranianas e se encontraria em uma guerra contra a aliança mais poderosa do mundo. Contudo, se o Kremlin concluir que a segurança nacional da Rússia está gravemente em risco, poderá muito bem escalar deliberadamente, por falta de alternativas melhores.”

Por que cortejar tal cenário, argumentam eles, quando até mesmo se conformar com as atuais linhas do conflito marcaria uma significativa derrota para a Rússia? “A guerra já foi tão devastadora para o poder da Rússia que mais enfraquecimento incremental não é, pode-se argumentar, um benefício significativo para os interesses dos EUA como em fases anteriores do conflito”, escreveram Charap e Priebe. “Levará anos, talvez décadas, para as corporações militares e a economia da Rússia se recuperarem do estrago já incorrido.”

Em outro ensaio, para a Economist, Christopher Chivvis, diretor do Programa de Diplomacia Americana no Fundo Carnegie para a Paz Internacional, faz uma afirmação similar: “Se as negociações congelassem as linhas de frente onde elas estão agora, Putin teria pagado um preço muito alto por ganhos muito limitados”, escreveu ele. “Suas Forças Armadas exibiram sua incompetência para o mundo inteiro. A Rússia é agora um Estado-pária, e sua relação com a Europa — por séculos a mais importante para os russos — está destruída. As sanções conterão o crescimento econômico da Rússia por anos, mesmo que sejam eventualmente moderadas em troca de concessões do Kremlin.”

Os autores do instituto Rand aconselham que, entre outras coisas, os EUA ofereçam um mapa do caminho para a Rússia indicando quais seriam as condições para uma eventual suspensão em sanções. Chivvis sustentou que empreender até mesmo um processo imperfeito e irregular de negociações — ou de conversas preliminares sobre negociações — seria preferível do que comprar a ideia de que é possível expulsar a Rússia completamente do território ucraniano.

“Sim, seria bom se a Ucrânia tomasse de volta um pouco mais de território”, escreveu ele. “Mas a que custo? E para que ganho estratégico? Mesmo na improvável hipótese de que o Ocidente apoiasse a Ucrânia completamente, por muitos anos, e finalmente forçasse a Rússia a deixar totalmente o território ucraniano, a Rússia provavelmente reiniciaria a guerra em algum momento para recuperar conquistas perdidas e sua reputação.”

Charap e Priebe reconheceram em sua introdução “que os ucranianos são os que estão lutando e morrendo para proteger seu país contra uma invasão russa não provocada, ilegal e moralmente repugnante”. Mas mesmo assim, de seu ponto de vista, isso não significa que os interesses da Ucrânia sejam “sinônimos” dos interesses dos EUA. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

A guerra na Ucrânia, pelo menos para alguns formuladores de políticas nas capitais ocidentais, pode ser medida em entregas de armas. Sua resposta para a matança brutal lançada pela Rússia em fevereiro do ano passado tem sido um desfile de blindagem e aço: Javelins, obuses, drones, veículos de ataque, sistemas antiaéreos, Himars e, mais recentemente, tanques de batalha. A cada estágio, Kiev pede mais para expulsar os invasores russos, e quase em todos os estágios o Ocidente tem acedido às demandas ucranianas, mas talvez não na velocidade que a Ucrânia gostaria.

A próxima rodada de barganhas deverá se centrar no desejo da Ucrânia por uma frota de caças de combate para múltiplos propósitos, que Kiev quer obter enquanto se prepara para repelir a anunciada próxima ofensiva russa e retomar território ocupado pelos russos no sudeste do país e a Península da Crimeia, que a Rússia anexou em 2014. “Deem-nos suas armas, e tomaremos de volta o que nos pertence”, afirmou o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, às elites globais, em Davos, no mês passado.

Quando questionado esta semana se enviaria caças F-16, o presidente americano, Joe Biden disse “não”, enquanto autoridades britânicas disseram que “não é prático” enviar esse tipo de aeronave de ataque. Mas o presidente francês, Emmanuel Macron, disse a repórteres que, “por definição, nada é excluído” em termos de fornecimento de ajuda para os ucranianos. Assim é o comprometimento retórico do Ocidente com o esforço de guerra ucraniano. O Ocidente parece apoiar completamente a luta da Ucrânia por soberania, assim como a visão maximalista de vitória de Kiev.

Crianças caminham sobre destroços de veículos russos no centro de Kiev  Foto: Evgeniy Maloletka/AP - 02/02/2023

Autoridades ocidentais reconhecem que a guerra deveria (e provavelmente só poderá) terminar pela via diplomática. Mas todas vez que um repórter pergunta para algum político ou diplomata ocidental oficialmente como será o desfecho do conflito, eles quase sempre dão as mesma respostas: cabe somente à Ucrânia determinar as condições da paz (mesmo que sem a ajuda estrangeira os ucranianos talvez não conseguissem as impor); a Rússia não está interessada em negociar em boa-fé; e a tarefa mais importante agora é armar a Ucrânia suficientemente, para que seu peso em uma hipotética futura mesa de negociação seja o maior possível.

Um novo relatório contraria essa posição, alertando que ela coloca os Estados Unidos no caminho de um conflito de duração indeterminada que poderia escalar ainda mais perigosamente. Intitulado Evitando uma guerra longa: a política americana e a trajetória do conflito russo-ucraniano, o relatório foi publicado recentemente pelo influente instituto Rand Corporation, de Washington.

O texto argumenta que, quanto mais a guerra se arrastar, mais provável é o risco de uma escalada que poderá opor diretamente a Rússia à Otan e possivelmente verá o Kremlin acionar uma arma nuclear em campo de batalha. Em vez de permitir que o conflito avance, as potências ocidentais deveriam fazer mais para que as partes em guerra negociem, aconselhou o relatório.

Trata-se de um argumento que já foi sustentado anteriormente — incluindo por Henry Kissinger, o venerável farol do establishment da política externa americana. Mas o relatório Rand marca, talvez, o argumento mais sistemático para uma mudança de política sustentado por um instituto de análise de Washington. A vasta maioria do texto saudou a guerra na Ucrânia como uma luta justa e necessária, qualificando-a ainda como um momento para os EUA reafirmarem sua liderança na arena global. Em um desvio do roteiro do governo, o relatório não menciona nenhuma vez “democracia”, “estado de direito” ou “valores” ocidentais.

Em termos sóbrios, os cientistas políticos Samuel Charap e Miranda Priebe, autores do relatório, expõem fatores estruturais perturbadores da guerra: nem Rússia nem Ucrânia tem chance de garantir uma “vitória absoluta” da maneira que a consideram, mas ambos os países se sentem otimistas quanto à sua capacidade de vencer no longo prazo e estão pessimistas com relação ao que pode se seguir a um cessar-fogo ou durante uma paz inquieta.

Qualquer que seja a retórica política, paira incerteza em relação a quanto tempo o Ocidente será capaz de sustentar seus envios de ajuda e armas para a Ucrânia. Uma nova pesquisa Pew mostra que mais americanos já consideram que os EUA estão dando demais para a Ucrânia, enquanto os autores do relatório Rand apontam para a realidade óbvia de que uma guerra prolongada causaria mais sofrimento aos ucranianos e mais caos econômico na Europa.

Armas nucleares

E há a questão das armas nucleares. Por meses, a Ucrânia e seus aliados insistiram que seus apoiadores ignorassem as ameaças esporádicas do presidente russo, Vladimir Putin, de escalada nuclear.

“É uma tática de medo”, afirmou recentemente aos meus colegas em Kiev o major-general Kirilo Budanov, chefe da inteligência militar da Ucrânia. “Podemos esperar muita coisa da Rússia, mas não idiotice pura. Desculpe, mas isso não vai acontecer. Realizar um ataque nuclear resultará não apenas em uma derrota militar para a Rússia, mas no colapso da Rússia. E eles sabem muito bem disso.”

Mesmo assim, Charap e Priebe apontam para a realidade do risco de “uma guerra quente com o país que possui o maior arsenal nuclear do mundo”. Uma escalada nas hostilidades, talvez até ocasionada por erros de mira ou outros cálculos equivocados sob a névoa da guerra, poderia rapidamente empurrar países da Otan para um conflito aberto com a Rússia.

O presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, recebe a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em Kiev Foto: Ukrainian Presidential Press Office via AP - 02/02/2023

“Manter uma guerra entre Rússia e Otan abaixo do limite nuclear seria extremamente difícil, particularmente dado o estado enfraquecido das forças militares convencionais da Rússia”, escreveram eles. “Alguns analistas duvidam que a Rússia venha a atacar um país da Otan, pois já está perdendo terreno para as forças ucranianas e se encontraria em uma guerra contra a aliança mais poderosa do mundo. Contudo, se o Kremlin concluir que a segurança nacional da Rússia está gravemente em risco, poderá muito bem escalar deliberadamente, por falta de alternativas melhores.”

Por que cortejar tal cenário, argumentam eles, quando até mesmo se conformar com as atuais linhas do conflito marcaria uma significativa derrota para a Rússia? “A guerra já foi tão devastadora para o poder da Rússia que mais enfraquecimento incremental não é, pode-se argumentar, um benefício significativo para os interesses dos EUA como em fases anteriores do conflito”, escreveram Charap e Priebe. “Levará anos, talvez décadas, para as corporações militares e a economia da Rússia se recuperarem do estrago já incorrido.”

Em outro ensaio, para a Economist, Christopher Chivvis, diretor do Programa de Diplomacia Americana no Fundo Carnegie para a Paz Internacional, faz uma afirmação similar: “Se as negociações congelassem as linhas de frente onde elas estão agora, Putin teria pagado um preço muito alto por ganhos muito limitados”, escreveu ele. “Suas Forças Armadas exibiram sua incompetência para o mundo inteiro. A Rússia é agora um Estado-pária, e sua relação com a Europa — por séculos a mais importante para os russos — está destruída. As sanções conterão o crescimento econômico da Rússia por anos, mesmo que sejam eventualmente moderadas em troca de concessões do Kremlin.”

Os autores do instituto Rand aconselham que, entre outras coisas, os EUA ofereçam um mapa do caminho para a Rússia indicando quais seriam as condições para uma eventual suspensão em sanções. Chivvis sustentou que empreender até mesmo um processo imperfeito e irregular de negociações — ou de conversas preliminares sobre negociações — seria preferível do que comprar a ideia de que é possível expulsar a Rússia completamente do território ucraniano.

“Sim, seria bom se a Ucrânia tomasse de volta um pouco mais de território”, escreveu ele. “Mas a que custo? E para que ganho estratégico? Mesmo na improvável hipótese de que o Ocidente apoiasse a Ucrânia completamente, por muitos anos, e finalmente forçasse a Rússia a deixar totalmente o território ucraniano, a Rússia provavelmente reiniciaria a guerra em algum momento para recuperar conquistas perdidas e sua reputação.”

Charap e Priebe reconheceram em sua introdução “que os ucranianos são os que estão lutando e morrendo para proteger seu país contra uma invasão russa não provocada, ilegal e moralmente repugnante”. Mas mesmo assim, de seu ponto de vista, isso não significa que os interesses da Ucrânia sejam “sinônimos” dos interesses dos EUA. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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