THE NEW YORK TIMES - Quando eu era estudante de direito e estava fazendo um mochilão pelo Oriente Médio em 1982, conheci dois estudantes universitários palestinos em um ônibus local na Cisjordânia. Começamos a conversar e eles me convidaram para conhecer suas casas, então desci do ônibus e passei um dia com eles nos becos confusos do campo de refugiados de Dheisheh, densamente povoado.
Passamos bons momentos juntos, pois eles me contaram sobre seus estudos de árabe na Universidade de Belém, e eu estava planejando estudar árabe no Cairo. Estávamos todos entusiasmados com os estudos e cheios de jovialidade e sonhos. Anotei seus nomes em minha agenda de endereços, mas nunca mais fizemos contato - até agora.
Depois de 41 anos, peguei minha antiga agenda de endereços e encontrei seus nomes. Fiquei pensando: Eles ainda estão vivos? Será que se mudaram para o exterior? Neste momento sombrio, o que eles pensam de Israel, do Hamas e dos Estados Unidos?
Com a ajuda de um repórter local que buscou informações no campo de Dheisheh, consegui localizá-los: Saleh Molhem, hoje com 63 anos e grisalho, e Mahmoud Qaraqei, hoje com 60 anos. Um dos motivos pelos quais foi possível localizá-los é que os refugiados palestinos não têm muita mobilidade. Ambos ainda estavam morando no mesmo campo de refugiados. Eles se lembraram de mim e me convidaram para outra visita.
Foi maravilhoso revê-los, mas nosso reencontro também foi uma janela para as frustrações dos palestinos: o mundo mudou muito em quatro décadas, mas enquanto eu viajei pelo mundo e tive uma carreira gratificante, eles continuaram apátridas, presos em um campo de refugiados e com medo dos colonos e soldados israelenses. Pior ainda, eles têm muito menos liberdade hoje do que quando os conheci em 1982.
Naquela época, eles podiam viajar facilmente por Israel e encontrar trabalho lá; no fim de semana, podiam relaxar nas praias israelenses. “Eu costumava dirigir até Tel Aviv para passar o dia”, contou-me Mahmoud.
Agora eles vivem sob um sistema sufocante de postos de controle e autorizações que dificultam as viagens mesmo dentro da Cisjordânia, e o ataque terrorista do Hamas, em 7 de Outubro, tornou tudo pior. Devido ao fechamento de estradas pelas autoridades israelenses, não consegui sequer chegar às suas casas. Acabamos nos encontrando em um restaurante de Belém, mas para chegar lá tive que deixar meu carro israelense em uma estrada bloqueada, escalar uma berma construída por Israel e depois pegar um táxi palestino.
“Não posso ir a lugar nenhum”, disse-me Mahmoud. “Quero ir a um médico em Hebron”, também na Cisjordânia, mas ele disse que agora isso não é possível devido aos bloqueios nas estradas.
Menos liberdade
Os israelenses dizem que se os palestinos têm menos liberdade, isso é culpa deles. Eles observam que foi uma onda de atentados suicidas cometidos por palestinos que levou à criação de barreiras e postos de controle, aqui e em Gaza.
Quando os conheci, Saleh e Mahmoud estavam cheios de metas grandiosas para viagens e carreiras; pareciam otimistas. Agora eles estão amargurados e acreditam no pior de Israel.
“O único bom palestino é um palestino morto”, disse Saleh, descrevendo a sua opinião sobre as atitudes israelenses.
Ambos esperavam fazer pós-graduação no exterior - Saleh queria fazer um doutorado em estudos árabes no Egito e Mahmoud queria fazer um mestrado em espanhol na Espanha - mas dizem que a repressão israelense tornou isso impossível e suas chances se perderam.
Ambos se tornaram professores de escolas secundárias na Cisjordânia, mas cada um deles disse ter sido demitido há muitos anos pelas autoridades israelenses. Mahmoud disse que as autoridades israelenses o demitiram depois que ele foi preso por 18 dias por violar o toque de recolher há muitos anos. Saleh disse que nunca foi preso, mas foi demitido pelas autoridades israelenses por não conseguir impedir que os alunos atirassem pedras nas forças israelenses. Mais tarde, eles encontraram empregos como professores em escolas administradas pelas Nações Unidas para refugiados palestinos, e ambos estão aposentados agora.
Não posso checar seus relatos, e a versão de Israel pode ser diferente. O Oriente Médio está repleto de narrativas alternativas, cada uma delas é real para aqueles que a habitam, e a de Israel se concentra nas ameaças dos palestinos.
Violência
Gaza domina as notícias atualmente, mas pelo menos 132 palestinos foram mortos na Cisjordânia desde o ataque do Hamas em 7 de outubro, incluindo 41 crianças, segundo as Nações Unidas, além de um soldado israelense morto por palestinos. Mais de 900 palestinos foram forçados a deixar suas casas nesse período.
Esses problemas são antigos, mas pioraram nos últimos anos e, principalmente, nas últimas semanas.
“Os colonos estão explorando essa guerra para expulsar violentamente as comunidades pastoris”, disse o rabino Arik Ascherman, ativista de direitos humanos em Israel. As Nações Unidas disseram recentemente que houve uma média de sete ataques de colonos contra palestinos da Cisjordânia por dia desde 7 de outubro, muitas vezes com armas de fogo e frequentemente com o apoio das forças de segurança israelenses.
Quando conversei com colonos no passado, eles argumentaram que estavam apenas se protegendo dos palestinos e que, de qualquer forma, Deus lhes deu toda a área. “Esta é a escritura de nossa terra”, disse o embaixador de Israel nas Nações Unidas a outros emissários em 2019, segurando uma Bíblia e referindo-se à Cisjordânia e a Israel.
Foi bom ver o presidente Biden em 25 de outubro denunciando “colonos extremistas que atacam palestinos na Cisjordânia”. Os colonos “têm que ser responsabilizados”, disse ele. “E isso tem que parar agora.”
Jessica Montell, que dirige um grupo de direitos humanos chamado HaMoked, disse que também houve uma onda de prisões de palestinos da Cisjordânia nas últimas semanas.
Um dos motivos pelos quais os palestinos se sentem ameaçados é que o ministro da segurança de Israel, Itamar Ben-Gvir, é uma figura de extrema direita que já foi condenado em um tribunal de Israel por apoiar um grupo terrorista israelense e, mais recentemente, exibiu em sua casa o retrato de um extremista que assassinou 29 palestinos.
“Não é exagero dizer que o equivalente israelense da K.K.K. está neste governo”, disse Montell.
Talvez por essa razão, Saleh e Mahmoud estivessem nervosos ao me encontrar e cautelosos com o que diziam – muito longe da forma como falaram livremente quando os conheci. Eles também pediram para não terem seus rostos fotografados.
Perguntei se a repressão israelense era responsável pelo aumento de bandeiras do Hamas visíveis na Cisjordânia. Eles não quiseram falar sobre isso de forma alguma.
Quando a conversa tocava em política, ficávamos frustrados mutuamente. Eles tinham certeza de que a explosão no Hospital Árabe Al-Ahli, em Gaza, foi um ataque deliberado de Israel. Com base em minhas próprias reportagens, tendo a acreditar na avaliação da inteligência dos EUA de que o ataque aéreo não foi israelense.
Ataque terrorista do Hamas
A conversa ficou mais tensa quando chegamos ao ataque do Hamas em 7 de outubro. “As pessoas ficaram felizes em todo o mundo árabe, não por causa das mortes e do derramamento de sangue, mas porque foi a primeira vez que os habitantes de Gaza puderam realizar seu sonho” de sair de Gaza, disse Saleh.
Eu retruquei e observei como o terrorismo do Hamas havia sido brutal e quantos civis israelenses haviam sido mortos ou sequestrados. Saleh e Mahmoud disseram que lamentavam as mortes dos israelenses, mas se perguntavam por que o mundo não estava igualmente indignado com o fato de os palestinos terem sido mortos em número cumulativamente maior. Eles ficaram desapontados com meu foco na barbárie do Hamas, e eu fiquei desapontado com a relutância deles em condenar inequivocamente esses ataques.
Mahmoud quebrou a frustração mútua. “Não odiamos ninguém”, disse ele. “Judeus, cristãos, budistas, não odiamos ninguém, estamos apenas buscando liberdade para viver nossas vidas.”
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Eles pareciam estar tentando me fazer entender. “Não queremos criar problemas”, disse Saleh. “Só queremos viver livremente como todo mundo no mundo.”
Perguntei se a Cisjordânia estava correndo o risco de explodir de raiva com os assassinatos em Gaza. A pergunta os preocupou, mas Saleh disse: “As pessoas estão sufocando e, por isso, saem para expressar seus sentimentos”. Ele apontou para o refrigerante à sua frente. “É assim”, disse ele. “Se você o chacoalhar, ele vai explodir.”
Depois do almoço, nos despedimos. Brinquei dizendo que nos encontraríamos em outros 41 anos. Eles disseram em tom sombrio que não tinham certeza se sobreviveriam nem mais algumas horas. Houve um silêncio pesado.
Nós nos separamos, todos menos ágeis do que na primeira vez. Eles eram homens palestinos bastante comuns que, na maioria das vezes, mantiveram a cabeça baixa; evitaram a política e não perderam familiares para o conflito. Mas eles haviam perdido a liberdade e a dignidade. Há um número incontável de pessoas como eles que nunca aparecem nas manchetes, mas que estão cheios de dor por dentro.
Lembrei-me de dois jovens cheios de promessas e calor, animados pela esperança e habitando um mundo no qual israelenses e palestinos interagiam regularmente e não tinham muito medo uns dos outros. É doloroso ver essa mudança. À medida que Saleh e Mahmoud se tornaram pais e avós, eles foram privados de um futuro, de vitalidade e de esperança.
E isso, em minha opinião, é o cerne do problema palestino. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES