Numa eleição de três dias que não deixa espaço para dúvida, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, está posicionado para obter um quinto mandato no domingo, o que lhe permitirá permanecer no poder até 2030 — e, se ele concorrer novamente, até 2036.
Mas muitos analistas acreditam que o autocrata de 71 anos governará esse país de 146 milhões de habitantes até morrer.
Não deveria ser assim. Segundo a Constituição russa, o período de Putin no poder deveria terminar em 2008 — mas sob um ardiloso esquema de “isca e troca”, ele governou a Rússia como primeiro-ministro por quatro anos, trocando de lugar com Dmitri Medvedev. Putin retornou à presidência em 2012, desencadeando protestos massivos que nada mudaram.
Em 2020, Putin operou mudanças na Constituição numa votação nacional impregnada de irregularidades que lhe permitem disputar pelo menos mais dois mandatos de seis anos.
Putin centralizou o poder, invadiu a Geórgia e a Ucrânia e destruiu a oposição russa. Os dois líderes opositores mais carismáticos estão mortos: Boris Nemtsov foi assassinado a tiros próximo ao Kremlin em 2015, e Alexei Navalni sobreviveu a um envenenamento ordenado pelo Estado em 2020, mas morreu na prisão no mês passado. Sua viúva afirma que ele foi morto sob ordem direta de Putin. Outras figuras da oposição estão presas, silenciadas ou fugiram do país.
Após eliminar o dissenso, o Kremlin responde em tom indignado a sugestões de que a democracia russa é falsa. Na semana passada, o porta-voz de Putin, Dmitri Peskov, afirmou que Moscou não tolerará críticas desse tipo. “Nossa democracia é ótima, e nós continuaremos a construí-la.”
O regime de Putin tem empregado subterfúgios tradicionais para manipular eleições, como clamores públicos orquestrados para que o líder permaneça — como o evento encenado no Kremlin em 8 de dezembro, quando o líder separatista ucraniano Artiom Zhoga, suplicou a Putin que concorresse novamente.
Desde que substituiu Boris Iéltsin, 24 anos atrás, Putin tem destruído constantemente instituições democráticas, mantendo os meios de comunicação, os tribunais, o obediente Parlamento e a mansa comissão eleitoral sob rígido controle do Estado. A dissidência é esmagada. Criticar a guerra virou crime.
A mídia controlada pelo Kremlin produz torrentes de propaganda para convencer os russos de que Putin é o único indivíduo capaz de garantir estabilidade. Retrata a invasão à Ucrânia como uma guerra de aniquilação da Otan contra a Rússia que somente Putin é capaz de vencer.
Leia também
A eleição ocorre ao longo de três dias, o que deixa a porta bem aberta para manipulação das urnas. Em 27 regiões russas e duas áreas ocupadas na Ucrânia os eleitores poderão usar um sistema de votação online opaco — e amplamente criticado — em que é impossível verificar a autenticidade dos votos. O instituto Golos, um observatório eleitoral independente, foi declarado agente estrangeiro, e seu líder, Grigori Melkoniants, está preso aguardando julgamento.
O uso da votação online em várias regiões durante as eleições legislativas de 2021 garantiu vitórias de nove candidatos pró-Kremlin que perderam na votação com cédulas de papel.
Funcionários do governo e de empresas estatais são um poço de apoio para o Kremlin, muitos deles beneficiários de um sistema fechado de corrupção. Para garantir que são leais, eles são obrigados a mostrar aos chefes fotos de seus celulares provando que votaram nos candidatos do Kremlin.
Se a vitória de Putin é certa, por que a eleição é importante?
Para Putin, o propósito da eleição é obter um verniz de legitimidade que lhe permita alegar que existe um apoio massivo à guerra da Rússia contra a Ucrânia.
Com funcionários eleitorais e guardas armados russos batendo nas portas das residências da Ucrânia ocupada e exigindo que as pessoas votem, a eleição é projetada para cimentar o controle da Rússia sobre as áreas que Moscou declara ter anexado, ilegalmente: a Crimeia, Kherson, Zaporizhzhia, Donetsk e Luhansk.
Os meios de comunicação russos noticiaram que o governo nacional está determinado a ver um mínimo de 70% de comparecimento eleitoral e estima que Putin vencerá com pelo manos 80% dos votos, ultrapassando seu recorde, de 76,7%, em 2018.
A eleição deste ano também marca o fim de uma era mais racional iniciada cinco anos atrás na Rússia, quando até alguns analistas pró-Kremlin acreditavam que Putin entregaria o poder para um sucessor.
Apesar dos controles autoritários de Putin, o Kremlin é sensível a possíveis riscos, tendo em conta os protestos em massa ocorridos em Belarus contra o presidente Alexander Lukashenko, em 2020, quando ele se aferrou ao poder por meio de uma eleição manipulada.
Desde 2020, o Kremlin tem trabalhado incansavelmente para esmagar a dissidência prendendo milhares de opositores.
Quem concorre contra Putin?
Somente três candidatos — de partidos amigos do Kremlin cooptados para produzir uma impressão de legitimidade — foram autorizados a concorrer. O regime os utiliza para dividir e fragmentar qualquer oposição verdadeira.
Nikolai Kharitonov, de 75 anos, do Partido Comunista, é uma figura inexpressiva que concorreu contra Putin em 2004 e obteve 13% dos votos.
O nacionalista linha-dura Leonid Slutski, de 56 anos, do Partido Liberal Democrata, pede que prisioneiros de guerra ucranianos sejam executados.
Vladislav Davankov, de 40 anos, do Partido Nova Gente, é um político discreto, que apoia a guerra e participou da criação de uma lei que impede pessoas transgênero de mudar o dado sobre gênero nos documentos e receber assistência médica de afirmação de gênero.
Num post em rede social, o jornalista Dmitri Kolezev, de Ecaterimburgo, que fugiu da Rússia após o início da guerra, descreveu o Partido Nova Gente como um “partido falso” plantado pelo Kremlin.
Uma sondagem realizada em fevereiro pelo Levada Center, um instituto de pesquisas independente, pediu aos russos para identificar o político que tem sua confiança: 52% indicaram Putin; 3%, Slutski; e Kharitonov e Davankov foram indicados por 1% cada.
Dois candidatos antiguerra, Iekaterina Duntsova e Boris Nadezhdin, foram impedidos de concorrer após a Comissão Eleitoral Central encontrar irregularidades nas assinaturas que eles precisavam para oficializar suas candidaturas. Em 2006, a comissão removeu a opção de votar contra todos os candidatos, acabando com o risco de votos de protesto.
Uma sondagem do instituto de pesquisas estatal VCIOM, pró-Kremlin, projetou nesta semana que Putin vencerá com 82% dos votos.
É possível ocorrer protestos?
O principal rival de Putin, Alexei Navalni, que tinha peso político e influenciava eleições russas, foi impedido de concorrer contra Putin em 2018 e preso em 2021. Ele morreu aos 47 anos na colônia penal conhecida como Lobo Polar, na região de Iamália-Nenétsia, no norte da Rússia. Autoridades afirmaram que Navalni morreu de causas naturais e que o Kremlin descartou alegações de que ele foi assassinado.
Seu último ato político na prisão foi um chamado a apoiadores para um protesto sutil, conhecido como “Meio-dia contra Putin”, acudindo em massa a postos de votação às 12h do domingo, o último dia de votação, para mostrar sua repulsa a Putin.
“Poderia ser uma forte demonstração de sentimento nacional”, afirmou um post na conta de rede social de Navalni em 1.º de fevereiro. Ele escreveu que as autoridades não conseguiriam impedir um protesto visível para todos.
“Bem, o que eles podem fazer? Vão fechar os postos de votação meio-dia? Organizar uma ação em apoio a Putin às 10h? Registrarão todos que chegarem ao meio-dia e os colocarão na lista de pessoas não confiáveis?”, afirmou ele.
O jornal russo Novaya Gazeta Europe qualificou o protesto como o “testamento político de Navalni”.
Existe propaganda eleitoral na Rússia?
Em uma eleição absolutamente previsível, o único risco para o Kremlin é que os eleitores desdenhem da votação que todos sabem como vai terminar.
Anúncios de autoria incerta veiculados nas redes sociais russas usam comédia para conclamar os russos a votar, mesmo que eles já saibam que Putin vencerá.
Em um anúncio, homens bem apessoados dançam em uma despedida de solteiro, mas em vez de uma mulher seminua sair de um bolo gigante, uma figura fantasiada de abelha emerge. Ninguém tinha votado no chat da despedida de solteiro, explica o anúncio, então os organizadores fizeram sua própria escolha.
Em outro anúncio, uma mulher grávida que prepara o jantar questiona o marido sobre suas responsabilidade e pergunta se ele votou.
“Querida, que diferença isso faz? Ele não será eleito de qualquer jeito, mesmo sem nós?”, pondera o marido. A trilha sonora torna-se então ameaçadora e a mulher fica furiosa, alertando que o casal perderá suas ajudas sociais, e expulsa o homem do apartamento.
Mas o risco de um baixo comparecimento é bem pequeno. Governadores e diretores de empresas estatais são encarregados de garantir uma participação alta e não podem se permitir o luxo de falhar. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO