Como o Hamas tramou ataque a Israel para criar um estado de guerra ‘permanente’ no Oriente Médio


Cálculo do grupo terrorista é que ataque rompeu status quo de Israel e abriu um novo capítulo na história do Oriente Médio

Por Ben Hubbard e Maria Abi-Habib
Atualização:

THE NEW YORK TIMES – Milhares de pessoas foram mortas em Gaza, com famílias inteiras dizimadas. Os ataques aéreos israelenses reduziram os bairros palestinos a extensões de escombros, enquanto os médicos tratam crianças em hospitais escuros e sem anestesia. Em todo o Oriente Médio, o medo da eclosão de uma guerra regional mais ampla se espalhou.

Mas, na aritmética sangrenta dos líderes do grupo terrorista Hamas, a carnificina não é o resultado lamentável de um grande erro de cálculo. Muito pelo contrário, dizem eles: É o custo necessário de uma grande conquista - o rompimento do status quo e a abertura de um capítulo novo e mais volátil em sua luta contra Israel.

Era necessário “mudar toda a equação e não apenas ter um confronto”, disse Khalil al-Hayya, membro da alta liderança do Hamas, ao The New York Times em Doha, no Catar. “Conseguimos colocar a questão palestina de volta na mesa de negociações e agora ninguém na região está calmo.”

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Fumaça sobe de edifícios destruídos na Faixa de Gaza, em imagem feita em Sderot, em Israel, no dia 5. Destruição no enclave é diária após o ataque terrorista do Hamas em Israel no dia 7 Foto: Sergey Ponomarey/NYT

Desde o chocante ataque do Hamas em 7 de outubro, no qual, segundo Israel, cerca de 1.400 pessoas foram mortas e mais de 240 foram feitas reféns e arrastadas para Gaza como prisioneiras, os líderes do grupo elogiaram a operação, sendo que alguns esperam que ela desencadeie um conflito contínuo que acabe com qualquer pretensão de coexistência entre Israel, Gaza e os países ao redor.

“Espero que o estado de guerra com Israel se torne permanente em todas as fronteiras e que o mundo árabe fique do nosso lado”, disse Taher El-Nounou, conselheiro de mídia do Hamas, ao The New York Times.

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Em semanas de entrevistas, os líderes do Hamas, juntamente com autoridades árabes, israelenses e ocidentais que rastreiam o grupo, disseram que o ataque foi planejado e executado por um círculo restrito de comandantes em Gaza que não compartilharam os detalhes com seus próprios representantes políticos no exterior ou com seus aliados regionais, como o Hezbollah, deixando as pessoas fora do enclave surpresas com a ferocidade, a escala e o alcance do atentado.

O ataque acabou sendo mais amplo e mais mortal do que os planejadores previram, segundo eles, em grande parte porque os agressores conseguiram romper com facilidade as defesas de Israel, o que lhes permitiu invadir bases militares e áreas residenciais com pouca resistência. Ao invadir uma faixa do sul de Israel, o Hamas matou e capturou mais soldados e civis do que esperava, segundo as autoridades.

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O atentado foi tão devastador que atendeu a um dos principais objetivos dos conspiradores: quebrou uma tensão de longa data dentro do Hamas sobre a identidade e o objetivo do grupo. Era principalmente um órgão de governo - responsável por administrar a vida cotidiana na Faixa de Gaza bloqueada - ou ainda era fundamentalmente uma força armada, implacavelmente comprometida com a destruição de Israel e sua substituição por um Estado palestino islâmico?

Com o ataque, os líderes do grupo em Gaza - incluindo Yahya Sinwar, que passou mais de 20 anos em prisões israelenses, e Mohammed Deif, um comandante militar obscuro que Israel tentou assassinar várias vezes - responderam a essa pergunta. Eles dobraram a aposta no confronto militar.

Nas semanas que se seguiram, houve uma furiosa resposta israelense que matou mais de 10.000 pessoas em Gaza, de acordo com as autoridades de saúde do local. No entanto, para o Hamas, o ataque foi resultado de uma sensação crescente de que a causa palestina estava sendo deixada de lado e que somente uma ação drástica poderia reavivá-la.

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Os meses que antecederam o ataque brutal pareciam relativamente tranquilos em Gaza. O Hamas havia ficado de fora dos recentes confrontos entre Israel e outros militantes, e os líderes políticos do grupo estavam a milhares de quilômetros de distância, no Catar, negociando para conseguir mais ajuda e empregos para os residentes do território empobrecido.

Civis da Faixa de Gaza olham danos causados em mesquita de Khan Younis após bombardeio israelense, em imagem do dia 8 de outubro Foto: Yousef Masoud/NYT

Mas a frustração estava aumentando. Os líderes do Hamas em Gaza foram inundados com imagens de colonos israelenses atacando palestinos na Cisjordânia, judeus rezando abertamente em um local contestado, normalmente reservado aos muçulmanos, e a polícia israelense invadindo a Mesquita de Al-Aqsa em Jerusalém, uma peça-chave para as reivindicações palestinas sobre a cidade sagrada. A perspectiva de normalização dos laços de Israel com a Arábia Saudita, que há muito tempo patrocina a causa palestina, parecia mais próxima do que nunca. Então, em uma tranquila manhã de sábado, o Hamas atacou.

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Ficou claro com antecedência que Israel responderia bombardeando Gaza, matando civis palestinos. “O que poderia mudar a equação era um grande ato e, sem dúvida, sabia-se que a reação a esse ato seria grande”, disse al-Hayya. Mas, acrescentou, “tivemos que dizer às pessoas que a causa palestina não morreria”.

Algumas autoridades israelenses expressam profundo pesar por terem julgado mal Sinwar e suas intenções, uma das muitas falhas de segurança que permitiram que o Hamas atravessasse a cerca da fronteira e praticamente sem impedimentos, por horas. “Carregarei o fardo desse erro pelo resto da minha vida”, disse uma autoridade israelense.

Um novo líder em Gaza

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Sinwar assumiu o comando do Hamas em Gaza em 2017. Um homem duro, sem sorrisos, com cabelos brancos bem cortados e uma barba bem aparada, ele veio da primeira geração do Hamas, um grupo armado fundado durante a Primeira Intifada palestina, ou levante, no final da década de 1980, e que acabou sendo classificado como uma organização terrorista pelos Estados Unidos e muitas outras nações.

Sinwar ajudou a criar as Brigadas Qassam, o braço armado do Hamas, famoso por enviar homens-bomba para cidades israelenses e disparar foguetes de Gaza. Ele também policiava o Hamas em busca de suspeitos de serem espiões recrutados por Israel, desenvolvendo uma reputação de tal brutalidade com eles que ganhou o apelido de “o açougueiro de Khan Younis”, da cidade de Gaza onde nasceu.

Em 1988, ele foi detido e posteriormente processado pelo assassinato de quatro palestinos suspeitos de colaborar com Israel, de acordo com os registros do tribunal israelense. Ele acabou na prisão em Israel por mais de duas décadas, uma experiência que ele considera educativa.

Ataques de Israel na Faixa de Gaza destruíram mesquitas e outras edificações civis. Enclave é comandado pelo Hamas Foto: Yousef Masoud / NYT

“Eles queriam que a prisão fosse um túmulo para nós. Um moinho para moer nossa vontade, determinação e corpos”, disse ele em 2011. “Mas, com nossa crença em nossa causa, transformamos a prisão em santuários de adoração e academias de estudo.”

Grande parte dessa educação foi estudar seu inimigo. Ele aprendeu hebraico, o que lhe deu uma compreensão mais profunda da sociedade israelense, e desenvolveu uma dedicação à libertação dos milhares de prisioneiros palestinos. Israel condenou muitos deles por crimes violentos; os palestinos consideram que eles estão presos injustamente.

Em 2011, Sinwar foi libertado em uma troca de prisioneiros que o Hamas tomou como uma lição emblemática: Israel estava disposto a pagar um preço alto por seus prisioneiros.

O Hamas trocou um único soldado israelense, Gilad Shalit, por mais de 1.000 palestinos, entre eles Sinwar, um líder de prisão que esteve envolvido nas negociações. Libertá-lo foi um grande prêmio para o Hamas, e ele prometeu libertar mais presos. “Para mim, é uma obrigação moral”, disse ele em uma entrevista em 2018. “Vou me esforçar ao máximo para libertar aqueles que ainda estão presos.”

Hamas rejeitou as negociações de paz com Israel como uma traição, vendo-as como uma capitulação ao controle de Israel sobre o que o grupo considerava terra palestina ocupada

Algumas facções assinaram acordos com Israel, com o objetivo de preparar o caminho para uma solução de dois Estados. A Autoridade Palestina, concebida como um governo palestino em espera, tinha autoridade limitada sobre partes da Cisjordânia e permaneceu oficialmente comprometida com a negociação de um fim para o conflito.

O Hamas, por sua vez, buscou desfazer a história, começando em 1948, quando mais de 700.000 palestinos fugiram ou foram expulsos de suas casas no que viria a ser Israel durante a guerra que levou à fundação do Estado judeu.

Para o Hamas, esse deslocamento, juntamente com a ocupação israelense da Cisjordânia e de Gaza durante a guerra de 1967 no Oriente Médio, foram grandes erros históricos que precisavam ser corrigidos pela força das armas. O Hamas rejeitou as negociações de paz com Israel como uma traição, vendo-as como uma capitulação ao controle de Israel sobre o que o grupo considerava terra palestina ocupada.

A divisão política palestina ficou gravada na geografia em 2007, quando o Hamas venceu uma luta de facções em Gaza e assumiu o controle do território. De repente, o grupo não estava apenas lutando contra Israel, mas também governando Gaza. Israel, em conjunto com o Egito, impôs um bloqueio à Faixa de Gaza com o objetivo de enfraquecer o Hamas, mergulhando os habitantes da região em um isolamento e pobreza cada vez maiores.

Quando Sinwar retornou a Gaza, o Hamas já estava entrincheirado como o governo de fato e havia se estabelecido no que Tareq Baconi, um especialista do Hamas, chamou de “equilíbrio violento” com Israel. A profunda hostilidade frequentemente se transformava em trocas letais de foguetes do Hamas e ataques aéreos israelenses. Mas a maior parte dos produtos comerciais e da eletricidade de Gaza vinha de Israel, e o Hamas sempre buscava afrouxar o bloqueio durante as negociações de cessar-fogo.

Os líderes do Hamas eram ambivalentes quanto ao novo papel de governo do grupo, com alguns acreditando que precisavam melhorar a vida dos habitantes de Gaza e outros considerando a governança uma distração de sua missão militar original, segundo especialistas. O Hamas ridicularizou a Autoridade Palestina por sua cooperação com Israel, incluindo o uso da polícia palestina para evitar ataques ao país. Alguns líderes do Hamas temiam que seu próprio grupo, ao negociar questões da vida cotidiana com Israel, estivesse, em menor escala, no mesmo caminho.

Em 2012, Sinwar se tornou o representante do braço armado na liderança política do Hamas, o que o uniu ainda mais aos líderes do braço militar, incluindo Deif, o misterioso chefe das Brigadas Qassam. Os dois homens foram os principais arquitetos do atentatdo de 7 de outubro, de acordo com autoridades árabes e israelenses.

Quando Sinwar se tornou o chefe geral do Hamas em Gaza, em 2017, ele passou a projetar um interesse em acomodação com Israel. Em 2018, deu uma rara entrevista a um jornalista italiano que trabalhava para um jornal israelense e pediu um cessar-fogo para aliviar o sofrimento em Gaza.

“Não estou dizendo que não vou mais lutar”, disse ele. “Estou dizendo que não quero mais guerra. Quero o fim do cerco. Você vai à praia ao pôr do sol e vê todos esses adolescentes na praia conversando e se perguntando como é o mundo do outro lado do mar. Como é a vida”, acrescentou. “Quero que eles sejam livres.”

O Hamas também publicou um programa político em 2017 que permitia a possibilidade de uma solução de dois estados, embora ainda não reconhecesse o direito de Israel de existir.

Israel fez algumas concessões, concordando em 2018 em permitir a entrada de US$ 30 milhões por mês em ajuda do Catar em Gaza e aumentando o número de permissões para os habitantes de Gaza trabalharem dentro de Israel, trazendo o dinheiro tão necessário para a economia da região.

A violência continuou a se alastrar. Em 2021, o Hamas lançou uma guerra para protestar contra os esforços israelenses para expulsar os palestinos de suas casas em Jerusalém Oriental e os ataques da polícia israelense à Mesquita de Al-Aqsa, na Cidade Velha de Jerusalém.

Esse foi um momento decisivo, disse ao The New York Times Osama Hamdan, líder do Hamas baseado em Beirute, no Líbano. Em vez de disparar foguetes por causa de problemas em Gaza, o Hamas estava lutando por questões centrais para todos os palestinos, inclusive os que estavam fora do enclave. Os eventos também convenceram muitos membros do Hamas de que Israel estava tentando levar o conflito a um ponto sem retorno que garantiria a impossibilidade de um Estado palestino.

“Os israelenses estavam preocupados apenas com uma coisa: como posso me livrar da causa palestina?” disse Hamdan. “Eles estavam indo nessa direção e nem sequer pensavam nos palestinos. E se os palestinos não resistissem, tudo isso poderia ter acontecido.”

Construindo capacidades

Ainda assim, em 2021, a inteligência militar israelense e o Conselho de Segurança Nacional pensaram que o Hamas queria evitar outra guerra, de acordo com pessoas familiarizadas com as avaliações.

O Hamas também reforçou a ideia de que estava priorizando o governo em vez da batalha. Por duas vezes, o grupo se absteve de participar de confrontos com Israel iniciados pela Jihad Islâmica Palestina, uma milícia menor em Gaza. Os líderes políticos do Hamas estavam tentando, por meio de mediadores no Catar, aumentar a ajuda que entrava em Gaza e o número de trabalhadores que saíam para trabalhar em Israel, de acordo com diplomatas envolvidos nas discussões.

Muitos membros do establishment de segurança de Israel também passaram a acreditar que suas complexas defesas de fronteira para abater foguetes e impedir infiltrações de Gaza eram suficientes para manter o Hamas contido. Mas, dentro de Gaza, as capacidades do Hamas aumentaram.

Em 7 de outubro, estimava-se que o Hamas tinha de 20.000 a 40.000 combatentes, com cerca de 15.000 foguetes, fabricados principalmente em Gaza com componentes provavelmente contrabandeados pelo Egito, de acordo com analistas americanos e outros ocidentais. O grupo também tinha morteiros, mísseis antitanque e sistemas portáteis de defesa aérea, segundo eles.

Sinwar também restaurou os laços do grupo com seu apoiador de longa data, o Irã, que haviam se desgastado em 2012, quando o Hamas fechou seu escritório na Síria, um aliado próximo do Irã, em meio à guerra civil da Síria.

Essa restauração aprofundou o relacionamento entre a ala militar do Hamas em Gaza e o chamado eixo de resistência, a rede de milícias regionais do Irã, de acordo com diplomatas regionais e autoridades de segurança. Nos últimos anos, um fluxo de agentes do Hamas viajou de Gaza para o Irã e o Líbano para ser treinado pelos iranianos ou pelo Hezbollah, acrescentando uma camada de sofisticação às capacidades do Hamas, disseram as autoridades.

Esse treinamento, no entanto, não significava que o Irã ou outros aliados regionais do Hamas soubessem como ou quando essas capacidades poderiam ser usadas, disseram as autoridades.

Apesar de todos os preparativos secretos do Hamas, o próprio grupo divulgou algumas das armas mais eficazes que utilizou em 7 de outubro. Após o início do ataque, o grupo divulgou imagens de treinamento de seus combatentes voando de parapente em Gaza bem antes do ataque, uma atividade fácil de ser vista por Israel, e de combatentes do Hamas treinando para fazer reféns em uma cidade israelense simulada em Gaza.

Em maio de 2021, o Hamas divulgou três declarações sobre seus novos drones. Uma delas incluía um vídeo de combatentes mascarados lançando drones kamikaze guiados. Outra incluía imagens de vigilância aérea de torres de comunicação dentro de tanques israelenses e israelenses.

Um artigo publicado no site em árabe da ala militar se vangloriava: “As aeronaves do inimigo não monopolizam mais o céu da Palestina”.

Em 7 de outubro, o Hamas usou parapentes para sobrevoar a cerca da fronteira e drones explosivos para desativar a arquitetura de segurança da fronteira de Israel. Os homens armados que invadiram as bases e comunidades israelenses carregavam mapas, provavelmente elaborados em parte por trabalhadores de Gaza que o Hamas havia recrutado como espiões, disse uma autoridade de segurança regional.

Um dos grandes erros que Israel cometeu, segundo autoridades árabes e israelenses, foi não ter percebido a maneira como o Hamas combinaria ferramentas relativamente simples em um ataque sofisticado e multifacetado que superou um exército muito maior e mais poderoso.

Motivação para atacar

Embora a construção das capacidades para o ataque tenha levado anos, a decisão de lançá-lo em 7 de outubro foi um segredo guardado a sete chaves por um pequeno número de líderes do Hamas em Gaza, que nem mesmo informaram os participantes até o último minuto para evitar a interceptação pelos serviços de inteligência regionais, de acordo com o Hamas e autoridades regionais.

Um dos principais objetivos era capturar o maior número possível de soldados israelenses para usá-los em uma troca de prisioneiros, de acordo com duas autoridades árabes cujos governos conversam com o Hamas.

Uma autoridade de segurança regional disse que o Hamas esperava que, assim que o ataque começasse, os palestinos de outros lugares se revoltassem contra Israel, outras populações árabes explodissem contra seus governos e os aliados regionais do grupo, incluindo o Hezbollah, se juntassem à luta.

Porém, pelo menos quatro serviços de inteligência - dois árabes e dois europeus - avaliaram que o Hezbollah não tinha conhecimento prévio do ataque, de acordo com autoridades com acesso aos relatórios de inteligência.

Os próprios líderes políticos do Hamas fora de Gaza também ficaram surpresos com o ataque, de acordo com várias autoridades árabes e ocidentais que acompanham seus movimentos. Apesar disso, eles elogiaram o ataque por revigorar a luta armada contra Israel.

“O objetivo do Hamas não é governar Gaza e levar água, eletricidade e outras coisas”, disse al-Hayya, membro do politburo. “O Hamas, o Qassam e a resistência acordaram o mundo de seu sono profundo e mostraram que essa questão deve permanecer na mesa.”

“Essa batalha não foi porque queríamos combustível ou trabalhadores”, acrescentou. “Ela não buscava melhorar a situação em Gaza. Essa batalha é para derrubar completamente a situação.”

THE NEW YORK TIMES – Milhares de pessoas foram mortas em Gaza, com famílias inteiras dizimadas. Os ataques aéreos israelenses reduziram os bairros palestinos a extensões de escombros, enquanto os médicos tratam crianças em hospitais escuros e sem anestesia. Em todo o Oriente Médio, o medo da eclosão de uma guerra regional mais ampla se espalhou.

Mas, na aritmética sangrenta dos líderes do grupo terrorista Hamas, a carnificina não é o resultado lamentável de um grande erro de cálculo. Muito pelo contrário, dizem eles: É o custo necessário de uma grande conquista - o rompimento do status quo e a abertura de um capítulo novo e mais volátil em sua luta contra Israel.

Era necessário “mudar toda a equação e não apenas ter um confronto”, disse Khalil al-Hayya, membro da alta liderança do Hamas, ao The New York Times em Doha, no Catar. “Conseguimos colocar a questão palestina de volta na mesa de negociações e agora ninguém na região está calmo.”

Fumaça sobe de edifícios destruídos na Faixa de Gaza, em imagem feita em Sderot, em Israel, no dia 5. Destruição no enclave é diária após o ataque terrorista do Hamas em Israel no dia 7 Foto: Sergey Ponomarey/NYT

Desde o chocante ataque do Hamas em 7 de outubro, no qual, segundo Israel, cerca de 1.400 pessoas foram mortas e mais de 240 foram feitas reféns e arrastadas para Gaza como prisioneiras, os líderes do grupo elogiaram a operação, sendo que alguns esperam que ela desencadeie um conflito contínuo que acabe com qualquer pretensão de coexistência entre Israel, Gaza e os países ao redor.

“Espero que o estado de guerra com Israel se torne permanente em todas as fronteiras e que o mundo árabe fique do nosso lado”, disse Taher El-Nounou, conselheiro de mídia do Hamas, ao The New York Times.

Em semanas de entrevistas, os líderes do Hamas, juntamente com autoridades árabes, israelenses e ocidentais que rastreiam o grupo, disseram que o ataque foi planejado e executado por um círculo restrito de comandantes em Gaza que não compartilharam os detalhes com seus próprios representantes políticos no exterior ou com seus aliados regionais, como o Hezbollah, deixando as pessoas fora do enclave surpresas com a ferocidade, a escala e o alcance do atentado.

O ataque acabou sendo mais amplo e mais mortal do que os planejadores previram, segundo eles, em grande parte porque os agressores conseguiram romper com facilidade as defesas de Israel, o que lhes permitiu invadir bases militares e áreas residenciais com pouca resistência. Ao invadir uma faixa do sul de Israel, o Hamas matou e capturou mais soldados e civis do que esperava, segundo as autoridades.

O atentado foi tão devastador que atendeu a um dos principais objetivos dos conspiradores: quebrou uma tensão de longa data dentro do Hamas sobre a identidade e o objetivo do grupo. Era principalmente um órgão de governo - responsável por administrar a vida cotidiana na Faixa de Gaza bloqueada - ou ainda era fundamentalmente uma força armada, implacavelmente comprometida com a destruição de Israel e sua substituição por um Estado palestino islâmico?

Com o ataque, os líderes do grupo em Gaza - incluindo Yahya Sinwar, que passou mais de 20 anos em prisões israelenses, e Mohammed Deif, um comandante militar obscuro que Israel tentou assassinar várias vezes - responderam a essa pergunta. Eles dobraram a aposta no confronto militar.

Nas semanas que se seguiram, houve uma furiosa resposta israelense que matou mais de 10.000 pessoas em Gaza, de acordo com as autoridades de saúde do local. No entanto, para o Hamas, o ataque foi resultado de uma sensação crescente de que a causa palestina estava sendo deixada de lado e que somente uma ação drástica poderia reavivá-la.

Os meses que antecederam o ataque brutal pareciam relativamente tranquilos em Gaza. O Hamas havia ficado de fora dos recentes confrontos entre Israel e outros militantes, e os líderes políticos do grupo estavam a milhares de quilômetros de distância, no Catar, negociando para conseguir mais ajuda e empregos para os residentes do território empobrecido.

Civis da Faixa de Gaza olham danos causados em mesquita de Khan Younis após bombardeio israelense, em imagem do dia 8 de outubro Foto: Yousef Masoud/NYT

Mas a frustração estava aumentando. Os líderes do Hamas em Gaza foram inundados com imagens de colonos israelenses atacando palestinos na Cisjordânia, judeus rezando abertamente em um local contestado, normalmente reservado aos muçulmanos, e a polícia israelense invadindo a Mesquita de Al-Aqsa em Jerusalém, uma peça-chave para as reivindicações palestinas sobre a cidade sagrada. A perspectiva de normalização dos laços de Israel com a Arábia Saudita, que há muito tempo patrocina a causa palestina, parecia mais próxima do que nunca. Então, em uma tranquila manhã de sábado, o Hamas atacou.

Ficou claro com antecedência que Israel responderia bombardeando Gaza, matando civis palestinos. “O que poderia mudar a equação era um grande ato e, sem dúvida, sabia-se que a reação a esse ato seria grande”, disse al-Hayya. Mas, acrescentou, “tivemos que dizer às pessoas que a causa palestina não morreria”.

Algumas autoridades israelenses expressam profundo pesar por terem julgado mal Sinwar e suas intenções, uma das muitas falhas de segurança que permitiram que o Hamas atravessasse a cerca da fronteira e praticamente sem impedimentos, por horas. “Carregarei o fardo desse erro pelo resto da minha vida”, disse uma autoridade israelense.

Um novo líder em Gaza

Sinwar assumiu o comando do Hamas em Gaza em 2017. Um homem duro, sem sorrisos, com cabelos brancos bem cortados e uma barba bem aparada, ele veio da primeira geração do Hamas, um grupo armado fundado durante a Primeira Intifada palestina, ou levante, no final da década de 1980, e que acabou sendo classificado como uma organização terrorista pelos Estados Unidos e muitas outras nações.

Sinwar ajudou a criar as Brigadas Qassam, o braço armado do Hamas, famoso por enviar homens-bomba para cidades israelenses e disparar foguetes de Gaza. Ele também policiava o Hamas em busca de suspeitos de serem espiões recrutados por Israel, desenvolvendo uma reputação de tal brutalidade com eles que ganhou o apelido de “o açougueiro de Khan Younis”, da cidade de Gaza onde nasceu.

Em 1988, ele foi detido e posteriormente processado pelo assassinato de quatro palestinos suspeitos de colaborar com Israel, de acordo com os registros do tribunal israelense. Ele acabou na prisão em Israel por mais de duas décadas, uma experiência que ele considera educativa.

Ataques de Israel na Faixa de Gaza destruíram mesquitas e outras edificações civis. Enclave é comandado pelo Hamas Foto: Yousef Masoud / NYT

“Eles queriam que a prisão fosse um túmulo para nós. Um moinho para moer nossa vontade, determinação e corpos”, disse ele em 2011. “Mas, com nossa crença em nossa causa, transformamos a prisão em santuários de adoração e academias de estudo.”

Grande parte dessa educação foi estudar seu inimigo. Ele aprendeu hebraico, o que lhe deu uma compreensão mais profunda da sociedade israelense, e desenvolveu uma dedicação à libertação dos milhares de prisioneiros palestinos. Israel condenou muitos deles por crimes violentos; os palestinos consideram que eles estão presos injustamente.

Em 2011, Sinwar foi libertado em uma troca de prisioneiros que o Hamas tomou como uma lição emblemática: Israel estava disposto a pagar um preço alto por seus prisioneiros.

O Hamas trocou um único soldado israelense, Gilad Shalit, por mais de 1.000 palestinos, entre eles Sinwar, um líder de prisão que esteve envolvido nas negociações. Libertá-lo foi um grande prêmio para o Hamas, e ele prometeu libertar mais presos. “Para mim, é uma obrigação moral”, disse ele em uma entrevista em 2018. “Vou me esforçar ao máximo para libertar aqueles que ainda estão presos.”

Hamas rejeitou as negociações de paz com Israel como uma traição, vendo-as como uma capitulação ao controle de Israel sobre o que o grupo considerava terra palestina ocupada

Algumas facções assinaram acordos com Israel, com o objetivo de preparar o caminho para uma solução de dois Estados. A Autoridade Palestina, concebida como um governo palestino em espera, tinha autoridade limitada sobre partes da Cisjordânia e permaneceu oficialmente comprometida com a negociação de um fim para o conflito.

O Hamas, por sua vez, buscou desfazer a história, começando em 1948, quando mais de 700.000 palestinos fugiram ou foram expulsos de suas casas no que viria a ser Israel durante a guerra que levou à fundação do Estado judeu.

Para o Hamas, esse deslocamento, juntamente com a ocupação israelense da Cisjordânia e de Gaza durante a guerra de 1967 no Oriente Médio, foram grandes erros históricos que precisavam ser corrigidos pela força das armas. O Hamas rejeitou as negociações de paz com Israel como uma traição, vendo-as como uma capitulação ao controle de Israel sobre o que o grupo considerava terra palestina ocupada.

A divisão política palestina ficou gravada na geografia em 2007, quando o Hamas venceu uma luta de facções em Gaza e assumiu o controle do território. De repente, o grupo não estava apenas lutando contra Israel, mas também governando Gaza. Israel, em conjunto com o Egito, impôs um bloqueio à Faixa de Gaza com o objetivo de enfraquecer o Hamas, mergulhando os habitantes da região em um isolamento e pobreza cada vez maiores.

Quando Sinwar retornou a Gaza, o Hamas já estava entrincheirado como o governo de fato e havia se estabelecido no que Tareq Baconi, um especialista do Hamas, chamou de “equilíbrio violento” com Israel. A profunda hostilidade frequentemente se transformava em trocas letais de foguetes do Hamas e ataques aéreos israelenses. Mas a maior parte dos produtos comerciais e da eletricidade de Gaza vinha de Israel, e o Hamas sempre buscava afrouxar o bloqueio durante as negociações de cessar-fogo.

Os líderes do Hamas eram ambivalentes quanto ao novo papel de governo do grupo, com alguns acreditando que precisavam melhorar a vida dos habitantes de Gaza e outros considerando a governança uma distração de sua missão militar original, segundo especialistas. O Hamas ridicularizou a Autoridade Palestina por sua cooperação com Israel, incluindo o uso da polícia palestina para evitar ataques ao país. Alguns líderes do Hamas temiam que seu próprio grupo, ao negociar questões da vida cotidiana com Israel, estivesse, em menor escala, no mesmo caminho.

Em 2012, Sinwar se tornou o representante do braço armado na liderança política do Hamas, o que o uniu ainda mais aos líderes do braço militar, incluindo Deif, o misterioso chefe das Brigadas Qassam. Os dois homens foram os principais arquitetos do atentatdo de 7 de outubro, de acordo com autoridades árabes e israelenses.

Quando Sinwar se tornou o chefe geral do Hamas em Gaza, em 2017, ele passou a projetar um interesse em acomodação com Israel. Em 2018, deu uma rara entrevista a um jornalista italiano que trabalhava para um jornal israelense e pediu um cessar-fogo para aliviar o sofrimento em Gaza.

“Não estou dizendo que não vou mais lutar”, disse ele. “Estou dizendo que não quero mais guerra. Quero o fim do cerco. Você vai à praia ao pôr do sol e vê todos esses adolescentes na praia conversando e se perguntando como é o mundo do outro lado do mar. Como é a vida”, acrescentou. “Quero que eles sejam livres.”

O Hamas também publicou um programa político em 2017 que permitia a possibilidade de uma solução de dois estados, embora ainda não reconhecesse o direito de Israel de existir.

Israel fez algumas concessões, concordando em 2018 em permitir a entrada de US$ 30 milhões por mês em ajuda do Catar em Gaza e aumentando o número de permissões para os habitantes de Gaza trabalharem dentro de Israel, trazendo o dinheiro tão necessário para a economia da região.

A violência continuou a se alastrar. Em 2021, o Hamas lançou uma guerra para protestar contra os esforços israelenses para expulsar os palestinos de suas casas em Jerusalém Oriental e os ataques da polícia israelense à Mesquita de Al-Aqsa, na Cidade Velha de Jerusalém.

Esse foi um momento decisivo, disse ao The New York Times Osama Hamdan, líder do Hamas baseado em Beirute, no Líbano. Em vez de disparar foguetes por causa de problemas em Gaza, o Hamas estava lutando por questões centrais para todos os palestinos, inclusive os que estavam fora do enclave. Os eventos também convenceram muitos membros do Hamas de que Israel estava tentando levar o conflito a um ponto sem retorno que garantiria a impossibilidade de um Estado palestino.

“Os israelenses estavam preocupados apenas com uma coisa: como posso me livrar da causa palestina?” disse Hamdan. “Eles estavam indo nessa direção e nem sequer pensavam nos palestinos. E se os palestinos não resistissem, tudo isso poderia ter acontecido.”

Construindo capacidades

Ainda assim, em 2021, a inteligência militar israelense e o Conselho de Segurança Nacional pensaram que o Hamas queria evitar outra guerra, de acordo com pessoas familiarizadas com as avaliações.

O Hamas também reforçou a ideia de que estava priorizando o governo em vez da batalha. Por duas vezes, o grupo se absteve de participar de confrontos com Israel iniciados pela Jihad Islâmica Palestina, uma milícia menor em Gaza. Os líderes políticos do Hamas estavam tentando, por meio de mediadores no Catar, aumentar a ajuda que entrava em Gaza e o número de trabalhadores que saíam para trabalhar em Israel, de acordo com diplomatas envolvidos nas discussões.

Muitos membros do establishment de segurança de Israel também passaram a acreditar que suas complexas defesas de fronteira para abater foguetes e impedir infiltrações de Gaza eram suficientes para manter o Hamas contido. Mas, dentro de Gaza, as capacidades do Hamas aumentaram.

Em 7 de outubro, estimava-se que o Hamas tinha de 20.000 a 40.000 combatentes, com cerca de 15.000 foguetes, fabricados principalmente em Gaza com componentes provavelmente contrabandeados pelo Egito, de acordo com analistas americanos e outros ocidentais. O grupo também tinha morteiros, mísseis antitanque e sistemas portáteis de defesa aérea, segundo eles.

Sinwar também restaurou os laços do grupo com seu apoiador de longa data, o Irã, que haviam se desgastado em 2012, quando o Hamas fechou seu escritório na Síria, um aliado próximo do Irã, em meio à guerra civil da Síria.

Essa restauração aprofundou o relacionamento entre a ala militar do Hamas em Gaza e o chamado eixo de resistência, a rede de milícias regionais do Irã, de acordo com diplomatas regionais e autoridades de segurança. Nos últimos anos, um fluxo de agentes do Hamas viajou de Gaza para o Irã e o Líbano para ser treinado pelos iranianos ou pelo Hezbollah, acrescentando uma camada de sofisticação às capacidades do Hamas, disseram as autoridades.

Esse treinamento, no entanto, não significava que o Irã ou outros aliados regionais do Hamas soubessem como ou quando essas capacidades poderiam ser usadas, disseram as autoridades.

Apesar de todos os preparativos secretos do Hamas, o próprio grupo divulgou algumas das armas mais eficazes que utilizou em 7 de outubro. Após o início do ataque, o grupo divulgou imagens de treinamento de seus combatentes voando de parapente em Gaza bem antes do ataque, uma atividade fácil de ser vista por Israel, e de combatentes do Hamas treinando para fazer reféns em uma cidade israelense simulada em Gaza.

Em maio de 2021, o Hamas divulgou três declarações sobre seus novos drones. Uma delas incluía um vídeo de combatentes mascarados lançando drones kamikaze guiados. Outra incluía imagens de vigilância aérea de torres de comunicação dentro de tanques israelenses e israelenses.

Um artigo publicado no site em árabe da ala militar se vangloriava: “As aeronaves do inimigo não monopolizam mais o céu da Palestina”.

Em 7 de outubro, o Hamas usou parapentes para sobrevoar a cerca da fronteira e drones explosivos para desativar a arquitetura de segurança da fronteira de Israel. Os homens armados que invadiram as bases e comunidades israelenses carregavam mapas, provavelmente elaborados em parte por trabalhadores de Gaza que o Hamas havia recrutado como espiões, disse uma autoridade de segurança regional.

Um dos grandes erros que Israel cometeu, segundo autoridades árabes e israelenses, foi não ter percebido a maneira como o Hamas combinaria ferramentas relativamente simples em um ataque sofisticado e multifacetado que superou um exército muito maior e mais poderoso.

Motivação para atacar

Embora a construção das capacidades para o ataque tenha levado anos, a decisão de lançá-lo em 7 de outubro foi um segredo guardado a sete chaves por um pequeno número de líderes do Hamas em Gaza, que nem mesmo informaram os participantes até o último minuto para evitar a interceptação pelos serviços de inteligência regionais, de acordo com o Hamas e autoridades regionais.

Um dos principais objetivos era capturar o maior número possível de soldados israelenses para usá-los em uma troca de prisioneiros, de acordo com duas autoridades árabes cujos governos conversam com o Hamas.

Uma autoridade de segurança regional disse que o Hamas esperava que, assim que o ataque começasse, os palestinos de outros lugares se revoltassem contra Israel, outras populações árabes explodissem contra seus governos e os aliados regionais do grupo, incluindo o Hezbollah, se juntassem à luta.

Porém, pelo menos quatro serviços de inteligência - dois árabes e dois europeus - avaliaram que o Hezbollah não tinha conhecimento prévio do ataque, de acordo com autoridades com acesso aos relatórios de inteligência.

Os próprios líderes políticos do Hamas fora de Gaza também ficaram surpresos com o ataque, de acordo com várias autoridades árabes e ocidentais que acompanham seus movimentos. Apesar disso, eles elogiaram o ataque por revigorar a luta armada contra Israel.

“O objetivo do Hamas não é governar Gaza e levar água, eletricidade e outras coisas”, disse al-Hayya, membro do politburo. “O Hamas, o Qassam e a resistência acordaram o mundo de seu sono profundo e mostraram que essa questão deve permanecer na mesa.”

“Essa batalha não foi porque queríamos combustível ou trabalhadores”, acrescentou. “Ela não buscava melhorar a situação em Gaza. Essa batalha é para derrubar completamente a situação.”

THE NEW YORK TIMES – Milhares de pessoas foram mortas em Gaza, com famílias inteiras dizimadas. Os ataques aéreos israelenses reduziram os bairros palestinos a extensões de escombros, enquanto os médicos tratam crianças em hospitais escuros e sem anestesia. Em todo o Oriente Médio, o medo da eclosão de uma guerra regional mais ampla se espalhou.

Mas, na aritmética sangrenta dos líderes do grupo terrorista Hamas, a carnificina não é o resultado lamentável de um grande erro de cálculo. Muito pelo contrário, dizem eles: É o custo necessário de uma grande conquista - o rompimento do status quo e a abertura de um capítulo novo e mais volátil em sua luta contra Israel.

Era necessário “mudar toda a equação e não apenas ter um confronto”, disse Khalil al-Hayya, membro da alta liderança do Hamas, ao The New York Times em Doha, no Catar. “Conseguimos colocar a questão palestina de volta na mesa de negociações e agora ninguém na região está calmo.”

Fumaça sobe de edifícios destruídos na Faixa de Gaza, em imagem feita em Sderot, em Israel, no dia 5. Destruição no enclave é diária após o ataque terrorista do Hamas em Israel no dia 7 Foto: Sergey Ponomarey/NYT

Desde o chocante ataque do Hamas em 7 de outubro, no qual, segundo Israel, cerca de 1.400 pessoas foram mortas e mais de 240 foram feitas reféns e arrastadas para Gaza como prisioneiras, os líderes do grupo elogiaram a operação, sendo que alguns esperam que ela desencadeie um conflito contínuo que acabe com qualquer pretensão de coexistência entre Israel, Gaza e os países ao redor.

“Espero que o estado de guerra com Israel se torne permanente em todas as fronteiras e que o mundo árabe fique do nosso lado”, disse Taher El-Nounou, conselheiro de mídia do Hamas, ao The New York Times.

Em semanas de entrevistas, os líderes do Hamas, juntamente com autoridades árabes, israelenses e ocidentais que rastreiam o grupo, disseram que o ataque foi planejado e executado por um círculo restrito de comandantes em Gaza que não compartilharam os detalhes com seus próprios representantes políticos no exterior ou com seus aliados regionais, como o Hezbollah, deixando as pessoas fora do enclave surpresas com a ferocidade, a escala e o alcance do atentado.

O ataque acabou sendo mais amplo e mais mortal do que os planejadores previram, segundo eles, em grande parte porque os agressores conseguiram romper com facilidade as defesas de Israel, o que lhes permitiu invadir bases militares e áreas residenciais com pouca resistência. Ao invadir uma faixa do sul de Israel, o Hamas matou e capturou mais soldados e civis do que esperava, segundo as autoridades.

O atentado foi tão devastador que atendeu a um dos principais objetivos dos conspiradores: quebrou uma tensão de longa data dentro do Hamas sobre a identidade e o objetivo do grupo. Era principalmente um órgão de governo - responsável por administrar a vida cotidiana na Faixa de Gaza bloqueada - ou ainda era fundamentalmente uma força armada, implacavelmente comprometida com a destruição de Israel e sua substituição por um Estado palestino islâmico?

Com o ataque, os líderes do grupo em Gaza - incluindo Yahya Sinwar, que passou mais de 20 anos em prisões israelenses, e Mohammed Deif, um comandante militar obscuro que Israel tentou assassinar várias vezes - responderam a essa pergunta. Eles dobraram a aposta no confronto militar.

Nas semanas que se seguiram, houve uma furiosa resposta israelense que matou mais de 10.000 pessoas em Gaza, de acordo com as autoridades de saúde do local. No entanto, para o Hamas, o ataque foi resultado de uma sensação crescente de que a causa palestina estava sendo deixada de lado e que somente uma ação drástica poderia reavivá-la.

Os meses que antecederam o ataque brutal pareciam relativamente tranquilos em Gaza. O Hamas havia ficado de fora dos recentes confrontos entre Israel e outros militantes, e os líderes políticos do grupo estavam a milhares de quilômetros de distância, no Catar, negociando para conseguir mais ajuda e empregos para os residentes do território empobrecido.

Civis da Faixa de Gaza olham danos causados em mesquita de Khan Younis após bombardeio israelense, em imagem do dia 8 de outubro Foto: Yousef Masoud/NYT

Mas a frustração estava aumentando. Os líderes do Hamas em Gaza foram inundados com imagens de colonos israelenses atacando palestinos na Cisjordânia, judeus rezando abertamente em um local contestado, normalmente reservado aos muçulmanos, e a polícia israelense invadindo a Mesquita de Al-Aqsa em Jerusalém, uma peça-chave para as reivindicações palestinas sobre a cidade sagrada. A perspectiva de normalização dos laços de Israel com a Arábia Saudita, que há muito tempo patrocina a causa palestina, parecia mais próxima do que nunca. Então, em uma tranquila manhã de sábado, o Hamas atacou.

Ficou claro com antecedência que Israel responderia bombardeando Gaza, matando civis palestinos. “O que poderia mudar a equação era um grande ato e, sem dúvida, sabia-se que a reação a esse ato seria grande”, disse al-Hayya. Mas, acrescentou, “tivemos que dizer às pessoas que a causa palestina não morreria”.

Algumas autoridades israelenses expressam profundo pesar por terem julgado mal Sinwar e suas intenções, uma das muitas falhas de segurança que permitiram que o Hamas atravessasse a cerca da fronteira e praticamente sem impedimentos, por horas. “Carregarei o fardo desse erro pelo resto da minha vida”, disse uma autoridade israelense.

Um novo líder em Gaza

Sinwar assumiu o comando do Hamas em Gaza em 2017. Um homem duro, sem sorrisos, com cabelos brancos bem cortados e uma barba bem aparada, ele veio da primeira geração do Hamas, um grupo armado fundado durante a Primeira Intifada palestina, ou levante, no final da década de 1980, e que acabou sendo classificado como uma organização terrorista pelos Estados Unidos e muitas outras nações.

Sinwar ajudou a criar as Brigadas Qassam, o braço armado do Hamas, famoso por enviar homens-bomba para cidades israelenses e disparar foguetes de Gaza. Ele também policiava o Hamas em busca de suspeitos de serem espiões recrutados por Israel, desenvolvendo uma reputação de tal brutalidade com eles que ganhou o apelido de “o açougueiro de Khan Younis”, da cidade de Gaza onde nasceu.

Em 1988, ele foi detido e posteriormente processado pelo assassinato de quatro palestinos suspeitos de colaborar com Israel, de acordo com os registros do tribunal israelense. Ele acabou na prisão em Israel por mais de duas décadas, uma experiência que ele considera educativa.

Ataques de Israel na Faixa de Gaza destruíram mesquitas e outras edificações civis. Enclave é comandado pelo Hamas Foto: Yousef Masoud / NYT

“Eles queriam que a prisão fosse um túmulo para nós. Um moinho para moer nossa vontade, determinação e corpos”, disse ele em 2011. “Mas, com nossa crença em nossa causa, transformamos a prisão em santuários de adoração e academias de estudo.”

Grande parte dessa educação foi estudar seu inimigo. Ele aprendeu hebraico, o que lhe deu uma compreensão mais profunda da sociedade israelense, e desenvolveu uma dedicação à libertação dos milhares de prisioneiros palestinos. Israel condenou muitos deles por crimes violentos; os palestinos consideram que eles estão presos injustamente.

Em 2011, Sinwar foi libertado em uma troca de prisioneiros que o Hamas tomou como uma lição emblemática: Israel estava disposto a pagar um preço alto por seus prisioneiros.

O Hamas trocou um único soldado israelense, Gilad Shalit, por mais de 1.000 palestinos, entre eles Sinwar, um líder de prisão que esteve envolvido nas negociações. Libertá-lo foi um grande prêmio para o Hamas, e ele prometeu libertar mais presos. “Para mim, é uma obrigação moral”, disse ele em uma entrevista em 2018. “Vou me esforçar ao máximo para libertar aqueles que ainda estão presos.”

Hamas rejeitou as negociações de paz com Israel como uma traição, vendo-as como uma capitulação ao controle de Israel sobre o que o grupo considerava terra palestina ocupada

Algumas facções assinaram acordos com Israel, com o objetivo de preparar o caminho para uma solução de dois Estados. A Autoridade Palestina, concebida como um governo palestino em espera, tinha autoridade limitada sobre partes da Cisjordânia e permaneceu oficialmente comprometida com a negociação de um fim para o conflito.

O Hamas, por sua vez, buscou desfazer a história, começando em 1948, quando mais de 700.000 palestinos fugiram ou foram expulsos de suas casas no que viria a ser Israel durante a guerra que levou à fundação do Estado judeu.

Para o Hamas, esse deslocamento, juntamente com a ocupação israelense da Cisjordânia e de Gaza durante a guerra de 1967 no Oriente Médio, foram grandes erros históricos que precisavam ser corrigidos pela força das armas. O Hamas rejeitou as negociações de paz com Israel como uma traição, vendo-as como uma capitulação ao controle de Israel sobre o que o grupo considerava terra palestina ocupada.

A divisão política palestina ficou gravada na geografia em 2007, quando o Hamas venceu uma luta de facções em Gaza e assumiu o controle do território. De repente, o grupo não estava apenas lutando contra Israel, mas também governando Gaza. Israel, em conjunto com o Egito, impôs um bloqueio à Faixa de Gaza com o objetivo de enfraquecer o Hamas, mergulhando os habitantes da região em um isolamento e pobreza cada vez maiores.

Quando Sinwar retornou a Gaza, o Hamas já estava entrincheirado como o governo de fato e havia se estabelecido no que Tareq Baconi, um especialista do Hamas, chamou de “equilíbrio violento” com Israel. A profunda hostilidade frequentemente se transformava em trocas letais de foguetes do Hamas e ataques aéreos israelenses. Mas a maior parte dos produtos comerciais e da eletricidade de Gaza vinha de Israel, e o Hamas sempre buscava afrouxar o bloqueio durante as negociações de cessar-fogo.

Os líderes do Hamas eram ambivalentes quanto ao novo papel de governo do grupo, com alguns acreditando que precisavam melhorar a vida dos habitantes de Gaza e outros considerando a governança uma distração de sua missão militar original, segundo especialistas. O Hamas ridicularizou a Autoridade Palestina por sua cooperação com Israel, incluindo o uso da polícia palestina para evitar ataques ao país. Alguns líderes do Hamas temiam que seu próprio grupo, ao negociar questões da vida cotidiana com Israel, estivesse, em menor escala, no mesmo caminho.

Em 2012, Sinwar se tornou o representante do braço armado na liderança política do Hamas, o que o uniu ainda mais aos líderes do braço militar, incluindo Deif, o misterioso chefe das Brigadas Qassam. Os dois homens foram os principais arquitetos do atentatdo de 7 de outubro, de acordo com autoridades árabes e israelenses.

Quando Sinwar se tornou o chefe geral do Hamas em Gaza, em 2017, ele passou a projetar um interesse em acomodação com Israel. Em 2018, deu uma rara entrevista a um jornalista italiano que trabalhava para um jornal israelense e pediu um cessar-fogo para aliviar o sofrimento em Gaza.

“Não estou dizendo que não vou mais lutar”, disse ele. “Estou dizendo que não quero mais guerra. Quero o fim do cerco. Você vai à praia ao pôr do sol e vê todos esses adolescentes na praia conversando e se perguntando como é o mundo do outro lado do mar. Como é a vida”, acrescentou. “Quero que eles sejam livres.”

O Hamas também publicou um programa político em 2017 que permitia a possibilidade de uma solução de dois estados, embora ainda não reconhecesse o direito de Israel de existir.

Israel fez algumas concessões, concordando em 2018 em permitir a entrada de US$ 30 milhões por mês em ajuda do Catar em Gaza e aumentando o número de permissões para os habitantes de Gaza trabalharem dentro de Israel, trazendo o dinheiro tão necessário para a economia da região.

A violência continuou a se alastrar. Em 2021, o Hamas lançou uma guerra para protestar contra os esforços israelenses para expulsar os palestinos de suas casas em Jerusalém Oriental e os ataques da polícia israelense à Mesquita de Al-Aqsa, na Cidade Velha de Jerusalém.

Esse foi um momento decisivo, disse ao The New York Times Osama Hamdan, líder do Hamas baseado em Beirute, no Líbano. Em vez de disparar foguetes por causa de problemas em Gaza, o Hamas estava lutando por questões centrais para todos os palestinos, inclusive os que estavam fora do enclave. Os eventos também convenceram muitos membros do Hamas de que Israel estava tentando levar o conflito a um ponto sem retorno que garantiria a impossibilidade de um Estado palestino.

“Os israelenses estavam preocupados apenas com uma coisa: como posso me livrar da causa palestina?” disse Hamdan. “Eles estavam indo nessa direção e nem sequer pensavam nos palestinos. E se os palestinos não resistissem, tudo isso poderia ter acontecido.”

Construindo capacidades

Ainda assim, em 2021, a inteligência militar israelense e o Conselho de Segurança Nacional pensaram que o Hamas queria evitar outra guerra, de acordo com pessoas familiarizadas com as avaliações.

O Hamas também reforçou a ideia de que estava priorizando o governo em vez da batalha. Por duas vezes, o grupo se absteve de participar de confrontos com Israel iniciados pela Jihad Islâmica Palestina, uma milícia menor em Gaza. Os líderes políticos do Hamas estavam tentando, por meio de mediadores no Catar, aumentar a ajuda que entrava em Gaza e o número de trabalhadores que saíam para trabalhar em Israel, de acordo com diplomatas envolvidos nas discussões.

Muitos membros do establishment de segurança de Israel também passaram a acreditar que suas complexas defesas de fronteira para abater foguetes e impedir infiltrações de Gaza eram suficientes para manter o Hamas contido. Mas, dentro de Gaza, as capacidades do Hamas aumentaram.

Em 7 de outubro, estimava-se que o Hamas tinha de 20.000 a 40.000 combatentes, com cerca de 15.000 foguetes, fabricados principalmente em Gaza com componentes provavelmente contrabandeados pelo Egito, de acordo com analistas americanos e outros ocidentais. O grupo também tinha morteiros, mísseis antitanque e sistemas portáteis de defesa aérea, segundo eles.

Sinwar também restaurou os laços do grupo com seu apoiador de longa data, o Irã, que haviam se desgastado em 2012, quando o Hamas fechou seu escritório na Síria, um aliado próximo do Irã, em meio à guerra civil da Síria.

Essa restauração aprofundou o relacionamento entre a ala militar do Hamas em Gaza e o chamado eixo de resistência, a rede de milícias regionais do Irã, de acordo com diplomatas regionais e autoridades de segurança. Nos últimos anos, um fluxo de agentes do Hamas viajou de Gaza para o Irã e o Líbano para ser treinado pelos iranianos ou pelo Hezbollah, acrescentando uma camada de sofisticação às capacidades do Hamas, disseram as autoridades.

Esse treinamento, no entanto, não significava que o Irã ou outros aliados regionais do Hamas soubessem como ou quando essas capacidades poderiam ser usadas, disseram as autoridades.

Apesar de todos os preparativos secretos do Hamas, o próprio grupo divulgou algumas das armas mais eficazes que utilizou em 7 de outubro. Após o início do ataque, o grupo divulgou imagens de treinamento de seus combatentes voando de parapente em Gaza bem antes do ataque, uma atividade fácil de ser vista por Israel, e de combatentes do Hamas treinando para fazer reféns em uma cidade israelense simulada em Gaza.

Em maio de 2021, o Hamas divulgou três declarações sobre seus novos drones. Uma delas incluía um vídeo de combatentes mascarados lançando drones kamikaze guiados. Outra incluía imagens de vigilância aérea de torres de comunicação dentro de tanques israelenses e israelenses.

Um artigo publicado no site em árabe da ala militar se vangloriava: “As aeronaves do inimigo não monopolizam mais o céu da Palestina”.

Em 7 de outubro, o Hamas usou parapentes para sobrevoar a cerca da fronteira e drones explosivos para desativar a arquitetura de segurança da fronteira de Israel. Os homens armados que invadiram as bases e comunidades israelenses carregavam mapas, provavelmente elaborados em parte por trabalhadores de Gaza que o Hamas havia recrutado como espiões, disse uma autoridade de segurança regional.

Um dos grandes erros que Israel cometeu, segundo autoridades árabes e israelenses, foi não ter percebido a maneira como o Hamas combinaria ferramentas relativamente simples em um ataque sofisticado e multifacetado que superou um exército muito maior e mais poderoso.

Motivação para atacar

Embora a construção das capacidades para o ataque tenha levado anos, a decisão de lançá-lo em 7 de outubro foi um segredo guardado a sete chaves por um pequeno número de líderes do Hamas em Gaza, que nem mesmo informaram os participantes até o último minuto para evitar a interceptação pelos serviços de inteligência regionais, de acordo com o Hamas e autoridades regionais.

Um dos principais objetivos era capturar o maior número possível de soldados israelenses para usá-los em uma troca de prisioneiros, de acordo com duas autoridades árabes cujos governos conversam com o Hamas.

Uma autoridade de segurança regional disse que o Hamas esperava que, assim que o ataque começasse, os palestinos de outros lugares se revoltassem contra Israel, outras populações árabes explodissem contra seus governos e os aliados regionais do grupo, incluindo o Hezbollah, se juntassem à luta.

Porém, pelo menos quatro serviços de inteligência - dois árabes e dois europeus - avaliaram que o Hezbollah não tinha conhecimento prévio do ataque, de acordo com autoridades com acesso aos relatórios de inteligência.

Os próprios líderes políticos do Hamas fora de Gaza também ficaram surpresos com o ataque, de acordo com várias autoridades árabes e ocidentais que acompanham seus movimentos. Apesar disso, eles elogiaram o ataque por revigorar a luta armada contra Israel.

“O objetivo do Hamas não é governar Gaza e levar água, eletricidade e outras coisas”, disse al-Hayya, membro do politburo. “O Hamas, o Qassam e a resistência acordaram o mundo de seu sono profundo e mostraram que essa questão deve permanecer na mesa.”

“Essa batalha não foi porque queríamos combustível ou trabalhadores”, acrescentou. “Ela não buscava melhorar a situação em Gaza. Essa batalha é para derrubar completamente a situação.”

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