BRASÍLIA - O presidente da Assembleia da República de Portugal, José Pedro Aguiar-Branco, afirmou ao Estadão que seu país precisa dar “melhores condições” de trabalho e acolhida aos imigrantes que recebe vindos, sobretudo, do Brasil. Tema crucial em debate no país e na Europa, a imigração vem sendo estimulada por políticas do governo português, mas, segundo ele, atrai “problemas sociais que a todos incomodam”.
O deputado e presidente do parlamento afirma que é necessário encontrar “equilíbrio” diante da demanda por mão de obra e da contribuição ao crescimento econômico de Portugal. O país registra recorde de imigrantes (1.044.606 estrangeiros residentes) e crescimento de denúncias de racismo e xenofobia. Dados da Comissão para Igualdade e Contra a Discriminação Racial revelam aumento de 833% das queixas de brasileiros: foram 18 em 2017 e 168 em 2022.
Mas, em contraste com os dados mais recentes, Aguiar-Branco disse concordar com a declaração do primeiro-ministro português e seu aliado, Luís Montenegro. Principal liderança do Partido Social Democrata (PSD), o atual premiê afirmou em reunião sobre migração e asilo que questões de ódio e raciais não são “preocupantes” em Portugal.
Aguiar-Branco afirma que o novo governo português tenta acelerar os processos de regularização de imigrantes, mas recebeu uma “herança dramática” do anterior, de António Costa, do Partido Socialista (PS). Costa renunciou atingido por investigações de corrupção que levaram a uma crise política e à dissolução do parlamento.
Nos meios portugueses, o ex-ministro da Justiça e da Defesa é cotado como um dos potenciais candidatos para disputar, em 2026, a sucessão do presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Ele, por enquanto, desconversa sobre o corrida ao Palácio de Belém.
O presidente da Assembleia portuguesa concedeu entrevista exclusiva durante visita a Brasília, na semana passada. Ele participou, como convidado, da reunião do P-20, o grupo de lideranças parlamentares globais das vinte maiores economias do mundo. A Cúpula de Líderes do G-20 ocorre na semana que vem, no Rio. Confira os principais trechos da conversa:
A imigração do Brasil para Portugal está batendo recordes. A comunidade tem 513 mil pessoas segundo o Itamaraty. Junto surgem casos de xenofobia e discriminação racial. Qual é a resposta das autoridades portuguesas? O problema entrou na agenda da Assembleia?
No Parlamento, a dinâmica das agendas resulta da dinâmica que os grupos parlamentares apresentam para serem temas para debate, não compete ao presidente. Os grupos parlamentares, os partidos colocam muitas vezes na agenda as discussões associadas ao fenômeno das migrações. As imigrações das diversas comunidades têm de cada vez mais importância. É um fenômeno muito comum na Europa e em Portugal também.
Felizmente, acho que os níveis associados da insegurança e o que dizem dessa insegurança ter níveis perturbadores, eu acho que Portugal, por comparação com o que se passa noutros países europeus, compara bem.
É um fenômeno que precisamos estar atentos, é necessário dar melhores condições e condições de maior empregabilidade. Este governo tem definido políticas nesse sentido, quando se pretende regulamentar de forma mais conseguida, que quem chega tenha emprego, quem chega para trabalhar tenha condições de poder ter uma habitação digna. Porque muitas vezes estas situações resultam de vir muita gente ao engano, vem em situações que espera encontrar uma coisa e afinal tem outra, e depois vivem de formas que não são dignas e isso conduz ao mal-estar na sociedade.
Este governo tem já várias medidas para combater essa situação, de modo que todos os que chegam a Portugal possam ter capacidade de trabalhar, para poder, pela via de estar na legalidade, poder ter acesso aos direitos e deveres que são necessários. Essa é uma realidade que se acredita que irá equilibrar aquilo que é necessário que seja equilibrado, entre a necessidade que existe de haver imigrantes a trabalharem em Portugal, que contribuem para a nossa economia, contribuem para haver maior desenvolvimento, sem que tenham os problemas sociais que a todos incomodam.
Portanto, uma comunidade como a brasileira, que tem uma expressão muito grande, é evidente que devemos olhar com a devida atenção para saber se as condições de acolhimento e de trabalho e de terem as condições para poder desenvolver a sociedade atual estão a acontecer. Eu penso que na comunidade brasileira essa situação acontece com mais conforto. Há outras proveniências, nomeadamente de países asiáticos, onde a situação é mais delicada do ponto de vista da legalidade como estão em Portugal. E isso é uma atenção que é preciso dar para evitar o discurso demagógico, o discurso radical que confunde tudo. E nós não podemos confundir tudo.
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O primeiro-ministro Montenegro afirmou na reunião do Conselho Nacional de Migrações e Asilo: “Não somos um país onde o ódio ou as questões raciais tenham natureza preocupante, mas também não significa que nós estejamos desatentos”. Ele disse que os casos são “residuais”. Autoridades portuguesas do governo passado tinham o mesmo discurso - seriam casos “isolados”. Isso não é minimizar casos que estão, em verdade, crescendo?
Eu vou ter cuidado, porque eu sou presidente da Assembleia, a comentar o primeiro-ministro. Mas eu acompanho o que o primeiro-ministro está a referir. Ou seja, nós devemos estar atentos, devemos ter a preocupação de dar condições para que esse tipo de juízo não aconteça, mas também não devemos ter uma visão de que parece que a situação está num quadro que não corresponde à realidade.
Fora de controle?
Não está. Aliás, os dados dos relatórios têm a ver com a segurança interna. Há a dimensão da percepção e depois há a realidade do que são os relatórios da administração interna a propósito do tipo de crimes, as suas origens, etc, que não corroboram aquilo que muitas vezes é dito.
O senhor falou sobre a regularização. A facilitação da residência dos integrantes da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) acelerou esse processo, mas agora parece que a nova agência do governo de imigração está com dificuldades de atender. Há cerca de 400 mil casos pendentes, a grande maioria de brasileiros, que se queixam muito.
É verdade.
Isso não tende a fragilizar mais a situação dessas populações de imigrantes?
Eu não posso responder pelo Executivo. A verdade é que este governo recebeu uma herança muito dramática em relação às chamadas pendências para regularização e que atingiam as milhares e milhares de situações que não eram resolvidas. E o esforço que o governo tem feito, tem dito e tem apresentado dados nessa matéria é de reduzir o tempo de decisão em relação às questões que estão pendentes e, por outro lado, ser mais claro e ter um processamento mais rápido de novos casos que sejam colocados.
Eu penso, pelo menos os dados que chegam, que em relação ao que no passado tínhamos, a situação está francamente melhor. Se já é ótima? São seis meses que este governo tem e penso que não era fácil e nem é fácil, em seis meses, resolver tudo aquilo que era uma situação difícil, como é óbvio e concordo, é uma situação que é mais do que perturbadora. Seria bom que não houvesse e já estivesse tudo resolvido, seria mais tranquilizador, mas acho que estamos nessa linha.
Eu havia lhe perguntado sobre iniciativas na Assembleia, e o senhor atribuiu aos grupos parlamentares. Falta diversidade de representação no parlamento português para que isso entre em pauta?
Não, eu acho que ele não está em pauta porque - e não está, pode ser sim, são os grupos parlamentares (que decidem). Mas porque provavelmente a dimensão do que (você) está a se referir em Portugal não é tão expressa quanto isso. É a única coisa que eu posso indiciar em relação ao fato de ser... Nós temos desde partidos mais à esquerda ou partidos mais à direita, se são temas de emergência e temos lógica de urgência, seriam levados à pauta no Parlamento. Nós discutimos muitas vezes temas associados a essas matérias, como é óbvio, a preocupação de encontrar medidas preventivas que evitem o discurso e sobretudo as atuações que tenham essas características. É uma preocupação de todo bom governante, mas, felizmente, acho que Portugal ainda, e esperemos que por muitos anos e sempre, acho que ainda compara bem com tudo o que vai acontecendo.
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A vitória de Donald Trump nos Estados Unidos fortalecerá forças políticas mais radicais à direita?
Portugal tem relações institucionais há muitas décadas com os Estados Unidos e tenho a certeza absoluta que elas vão continuar, assim o desejo, e seguramente o trabalho que Portugal e os Estados Unidos e a administração norte-americana irá fazer é no sentido de preservar essa relação estratégica transatlântica que tem sido exemplar ao longo dos anos, independentemente do presidente que se encontra no exercício, quer em Portugal, quer nos Estados Unidos. Juntos os países, Portugal e os Estados Unidos, poderão fortalecer essa aliança estratégica.
Trump promete deportação em massa. Não terá impacto em Portugal e na Europa?
Vamos ter que trabalhar como temos trabalhado nas décadas que precederam e que, independentemente dos presidentes que tiveram a exercer o cargo, quer nos Estados Unidos, quer em Portugal, foi sempre possível encontrar os espaços de desenvolvimento estratégico desta nossa aliança e eu acredito que essa capacidade vai persistir e trabalharemos para isso porque é importante que isso aconteça.
Trump afirma vai encerrar a guerra da Ucrânia rapidamente, ameaça retirar o apoio financeiro, cobra que Europa e OTAN tenham condições de se defender e contribuir com recursos. Qual sua visão como ex-ministro da Defesa?
A questão de maior participação da União Europeia, não só nas condições de contribuição para a Otan, mas também de ter mais capacidades militares para poder fazer a sua defesa cooperativa, essa dupla realidade, já vem desde a Cúpula de Gales, na Otan, em 2014, ainda com a administração democrata de Barack Obama, que era quem estava na administração dos Estados Unidos naquela altura. Portanto, essa realidade de a União Europeia ter que ser mais contributiva para a Otan, de ter mais capacidade militar e de ter também a dimensão da segurança e defesa comum mais prioritária vem ainda antes da administração Trump e, portanto, já nessa altura tinha sido sinalizado que era importante que isso acontecesse. E eu acho que é importante que isso aconteça.
A Europa tem de, também na política de segurança e defesa comum, vê-la hoje como no passado, com uma dimensão mais prioritária, com uma necessidade dos orçamentos a ter também verbas mais importantes para a segurança e defesa, porque a democracia e a liberdade são pressupostos que têm de estar assegurados para que aconteça o resto. O desenvolvimento sustentável, a educação, a realização pessoal das sociedades têm um pressuposto que é haver segurança, democracia e liberdade.
Quero acreditar que nessa matéria será possível trabalhar em conjunto para que se reforce essa dimensão da parte da União Europeia no seio da Otan e que a Otan venha a ser, como sempre foi, uma aliança de defesa, uma aliança transatlântica que assegura o equilíbrio da paz do mundo.
O ex-premiê português António Costa vai assumir no dia 1º de dezembro como presidente do Conselho Europeu. Ele pode facilitar o acordo entre o Mercosul e a União Europeia, que não será assinado no G-20 como se tentou?
Do que conheço de António Costa, ele tem uma personalidade e uma experiência muito forte, e tem uma capacidade política que é reconhecida por todos e o levou a essa função, e que em Portugal também fez com que ele pudesse governar durante oito anos, que beneficia a hipótese de isso acontecer.
Como foi a troca de experiências parlamentares no P-20?
O primeiro registro que eu queria deixar é o agradecimento por termos sido convidados a estar presentes. A Cúpula do P-20 é muito oportuna. Sabemos que, normalmente, a direção da política externa dos Estados é do Executivo, mas como nós temos agora, por todo o mundo, e em particular em Portugal, uns parlamentos muito fragmentados, significa que há muita participação de diferentes posições da sociedade expressas nos próprios parlamentos. Existe aqui no Brasil, na Europa, em Portugal, Espanha, Itália, França. Há muita representação partidária, que vem do voto direto e livre dos cidadãos. Significa que são espaços hoje por excelência: um, da discussão política; dois, do diálogo; três, na necessidade de obter consensos.
Esta capacidade de diálogo e de obter consensos também é necessária à escala internacional. Nós vivemos um momento onde muito se discute sobre a ordem internacional, se ela se vai manter tal como nasceu na sequência da Segunda Guerra Mundial ou se é necessário encontrar novas formas de governança e por onde é que elas passam. E aí os parlamentos têm uma dimensão e uma importância. A diplomacia parlamentar é muito relevante, porque permite, tal como aconteceu nesta cúpula que nos encontremos de diversas regiões do planeta, de diferentes experiências, de forma da vivência na sociedade, mas uma coisa é comum a todos: os parlamentos são um espaço de diálogo, de confronto de ideias e de respeito pelo direito à diferença. Quando nós temos que compreender aquilo que são as nossas diferenças, então estamos mais bem habilitados para tentar encontrar os pontos onde podemos nos encontrar.
O senhor fala na necessidade de encontrar consensos, mas nós vivemos aqui no Brasil nos últimos anos uma radicalização, uma polarização muito grande.
Essa polarização é a expressão da sociedade, porque quando os parlamentos resultam de voto livre, direto e universal - e digo porque isto é muito importante - é uma legitimidade democrática de quem representa o povo no parlamento. Significa que é o próprio povo que tem essa polarização. E essa polarização faz com que haja uma grande centralidade política nos parlamentos. Sei que aqui no Brasil é assim, até pelas trocas de impressões que tive, mas também na Europa isso está a acontecer com grande assertividade. Torna muito mais exigente o trabalho dos presidentes dos parlamentos, porque obriga que mantenham uma equidistância em relação a todas as forças que estão representadas nas câmaras. É importante que o presidente tenha essa confiança de equidistância e credibilidade.
A governabilidade está mais difícil no mundo todo?
A governabilidade está mais difícil. As maiorias têm de se formar de uma forma mais exigente, significa que há mais esforço para o diálogo. Tem de haver mais humildade por parte de todos os atores políticos, para poder formar maiorias é preciso haver mais capacidade, por um lado, de compreender as diferenças e de encontrar as pontes necessárias para resolver, porque no final do dia o que importa é resolver os problemas das pessoas. Se não se conseguir resolver os problemas das pessoas é que pode provocar e tem provocado precisamente o aparecimento dos radicalismos e dos populismos.
Normalmente será da falta de boa governança que nascem as tensões mais viradas para o populismo e para a demagogia. Se houver uma boa governança e se houver uma moderação e consensos que resolvam os problemas das pessoas, porque as pessoas querem é ter mais emprego, ter mais riqueza para ser distribuída, viver com melhores condições para poder sustentar as suas famílias, os filhos, terem emprego para os jovens, que é uma realidade também que afeta transversalmente, e combater a fome e combater aquilo que são as necessidades básicas da dignidade humana. Ora, se uma boa governação conseguir, pelo consenso e pela moderação, resolver ou encontrar caminhos para isso, aí seguramente estaremos também a contribuir para que haja menos extremismo e menos radicalismo.
No Brasil muitos parlamentares estão dedicados ao choque político. Nós tivemos nos últimos anos um recorde de processos na comissão de ética, ofensas, brigas, tapas, empurrões. A maioria não foi punida, há certa permissividade. Em Portugal também existe radicalismo. Chegam a esse nível? Como é que o senhor está controlando?
Nossa Constituição consagra a imunidade parlamentar de um deputado em relação àquilo que tem a ver com o seu discurso político. Portanto, um deputado não pode ser perseguido criminal, disciplinar ou civilmente pelo que disser no exercício da sua função e no discurso político. Isto é muito importante porque leva a discussões sobre a liberdade de expressão, o conteúdo, o que se diz. Com isto pretende-se que não haja condicionamentos na expressão de um eleito legítimo pelo povo de poder expressar as suas ideias, ainda que possam ser ideias muito pouco aceitáveis. Digo aceitáveis num senso de muita gente, porque todas as ideias, a meu ver, devem ser objeto de discussão, de contradita e de haver a possibilidade pela via também do discurso poderem ser derrotadas no que tem a ver com a sua possibilidade de serem acolhidas pela maioria da população. Mas quem tem de fazer o julgamento do discurso político são os eleitores. Os eleitores, os cidadãos devem acompanhar a atividade, a postura e a conduta dos seus representantes e depois, se se reveem ou não reveem o que é dito e da forma como se comportam, no ato eleitoral seguinte fazer o seu juízo se devem ou não devem continuar.
Deve haver limites a essa imunidade parlamentar ou à liberdade de expressão?
O nosso sistema é assim: se houver algum tipo de comportamento que possa ser qualificado como ilícito criminal, primeiro a Constituição confere ao deputado a imunidade, mas se ainda assim for pretendido que se levante essa imunidade, tem de ser requerido ao Parlamento. O Parlamento tem uma comissão de ética e de transparência que emite um parecer sobre essa matéria e depois o plenário há de votar se sim ou se não, se a imunidade parlamentar é levantada. Estamos falando no âmbito do discurso político, não de situações de natureza civil que não tenham nada a ver com a política, se houver uma fraude é uma realidade diferente.
Se eu resolvo dizer algo que pode configurar um crime de difamação, um crime que quem qualifica são os tribunais, não é o Parlamento em si, pode haver esse caminho e pode haver o levantamento da imunidade. Não é habitual. Acontece muitas vezes que um determinado discurso pode ser de apelo ao ódio ou de apelo a situações que têm a ver com o racismo. Essa qualificação de se há ou se não há matéria de natureza criminal tem de ser os tribunais a fazer, não é a Câmara, não é o presidente. Não são os deputados que fazem a avaliação da qualificação jurídica de um determinado conteúdo, se é ou não é ilícito criminal.
A nossa liberdade de expressão é de amplo espectro, não é de lógica restritiva. Serei tão mais democrata quanto mais tiver capacidade para ouvir coisas que não gosto, coisas que não subscrevo e ainda assim tenho que, pela via da palavra e não pela via de outra forma qualquer, pôr isso em causa.
Outra coisa tem a ver com o tratamento e a conduta que se deve ter no Parlamento. Portanto, se entre deputados pode haver um tratamento que seja desrespeitoso ou agressivo ou injurioso, que de certo modo condiciona o debate democrático. Aí o nosso regimento permite que se houver situações dessa natureza, ao fim e ao cabo que acabem por impedir que o debate democrático se faça de forma equilibrada, com igualdade de armas, o Presidente tem mecanismos para intervir ou para retirar a palavra, se for uma situação suficientemente grave, ou para chamar a atenção, fazer uma advertência de que determinada expressão não deve ser usada porque é situação desconfortante em relação ao outro deputado, nós temos esse mecanismo.
Há parlamentos onde, por exemplo, se pode aplicar uma sanção pecuniária, se houver uma transgressão em relação ao regimento, ou uma suspensão ao deputado. Nós não temos. O nosso é uma relação, digamos, de autorregulação de código de ética, ou seja, permite que chame a atenção, permite até que se possa tirar a palavra, mas não mais do que isso.
O líder do Chega, deputado André Ventura, disse que os turcos - grupo étnico nacional que está entre os maiores solicitantes de asilo político na Europa - “não são conhecidos por serem o povo mais trabalhador do mundo”. Uma deputada do PS perguntou se o senhor permitiria aquela fala. E o senhor liberou. Houve grande repercussão desse caso. O senhor se arrepende ou mudou de posição?
Não. O presidente da Assembleia da República não é um censor do conteúdo dos discursos políticos que um deputado faz no Parlamento, porque o deputado tem, inclusive do ponto de vista constitucional, direito a fazê-lo. Não quer dizer que eu concordo, não quer dizer que os outros deputados se revejam, mas a maneira de atacar esse discurso é precisamente com as ideias e com outros que queiram contraditar. Estamos tratando do conteúdo de um discurso político que é assumido por quem tem legitimidade democrática para fazê-lo e, portanto, eu não posso ser o censor do conteúdo do que é dito por um deputado. É liberdade de expressão que está protegida até pela nossa Constituição.
Neste caso, claramente era um conteúdo que se encaixaria numa fala xenofóbica, assim foi lida majoritariamente.
Mesmo assim.
Que é um crime. A Constituição Portuguesa também veda incitação a violência, a discriminação.
Uma determinada expressão, um determinado comportamento, não é nem o meu amigo (o repórter), nem eu, nem um deputado, nem um jornalista que vai qualificar. Quem qualifica são os tribunais. A liberdade de expressão tem um paralelo que é, quanto maior a liberdade de expressão, maior a responsabilização. E quem expressa um determinado pensamento, uma determinada ideia, um determinado conteúdo, é responsável pelo que diz.
Se o que é dito tem uma qualificação de poder ser considerado crime, são os tribunais que a fazem. Aí que entram os tribunais, é aí que entra, no caso, a Procuradoria da República, que tem de abrir um inquérito, tem de fazer o pronunciamento se aquela situação configura um crime e, se configurar um crime, pode fazer o respectivo processo, pode pedir à Assembleia o levantamento da imunidade parlamentar e a Assembleia dirá se sim ou se não, ou se está ou se não está protegido. Mas não é o Presidente que vai dizer “o senhor não pode dizer isso”. Porque eu aí estaria a ser um censor, aí estaria a impedir a liberdade de expressão, ainda que tenha a ver com ideias abjetas. Mas é possível, por exemplo, no nosso Parlamento, sabe possível, que um deputado diga assim, eu estou aqui mas não acredito na democracia.
O ex-presidente Jair Bolsonaro passou anos no Brasil como deputado e deu entrevistas dizendo que a ditadura matou pouco.
Não posso me pronunciar sobre o que aconteceu aqui. Se um deputado no Parlamento português diz assim, eu estou aqui mas não gosto da democracia e entendo que o melhor regime seria um regime de ditadura, ele é responsável pelo que diz, ele tem eleitores, os eleitores fazem um juízo crítico e tem de ser contraditado por outros deputados.
O que leva o senhor a agir dessa maneira? É um pensamento, uma questão de princípio ou também influencia a dificuldade de governabilidade do atual governo do PSD?
É uma questão de cultura democrática. Aplicarei o que estou a dizer, independentemente da cor política, desde a extrema-esquerda que está no Parlamento até à extrema-direita.
A imagem do Parlamento português corre o risco de ficar manchada com episódios como esse, assim como a sua, por ser o presidente nesse momento de muita radicalidade, discursos que incitam ódio, claramente ofensivos?
Não é todos os dias que estamos com situações dessa natureza. Nosso Parlamento funciona, tem vivência democrática, faz várias maiorias de geometria variável. Agora aprovou o orçamento.
Foi muito difícil aprová-lo.
Isso é a natureza que temos. Se está muito fragmentado, se existe muitos partidos é natural que seja mais difícil, mas o que é o resultado final? Existe um orçamento, vai ser viabilizado, o governo vai poder governar, num clima onde tantas vezes criam situações difíceis em Portugal e no mundo, a verdade é que o nosso Parlamento funciona, as instituições funcionam, os órgãos de segurança funcionam e os portugueses podem exercer a democracia em plenitude.
Seria muito mais grave, seria uma situação até diria dramática para a democracia se achassem bem que o presidente da Assembleia da República fosse um censor. Eu entendo que o que está a dizer pode ser ou não ser simpático, pode estar de acordo ou não estar de acordo, no meu juízo isso significa que potencialmente é um ilícito e por isso o senhor não fala. Não. Num estado de direito... Num Estado de Direito nós temos de ter a separação dos poderes muito bem definidos.
O tempo em que um político julgava outro político pelo discurso que faz, em Portugal, acabou em 1974. Acabou quando nós tivemos a revolução que implantou a democracia. Quem faz a configuração e faz a qualificação jurídica de um crime e depois leva a quem faz, responsabilizado por isso, e são os tribunais.
O senhor enquadra na mesma lógica o caso mais recente de outro deputado do Chega, o Pedro Pinto? Após o assassinato de um imigrante cabo-verdiano pela polícia ele sugeriu que, em nome da ordem, deveriam “atirar mais para matar”.
Não foi no Parlamento, mas é o que eu estava dizendo, a liberdade de expressão tem um parente muito próximo que é a responsabilização.
E haverá consequências judiciais?
A Procuradoria Geral da República informou que instaurou um inquérito relativamente às declarações e a ver vamos qual é o desenvolvimento. Em Portugal, quem tem a iniciativa do procedimento criminal é a Procuradoria Geral da República e tem até a obrigação de o fazer quando a prática dos atos configura um chamado crime público. À Justiça o que é da justiça, e na política tínhamos respeito por aquilo que deve ser a liberdade de expressão e deve ser a liberdade também de expressão/ responsabilização e se a responsabilização conduzir à prática de um crime, pois os tribunais serão esses a entidade que é adequada para julgar e punir.
O senhor é muito citado como possível candidato a presidente em 2026. Essa polêmica pode prejudicá-lo?
Eu estou a atuar como Presidente da Assembleia da República, focado em prestigiar o parlamento, focado em ser equidistante, focado em preservar a liberdade de expressão tal como a nossa Constituição consagra, focado em que os órgãos de soberania funcionem o melhor possível, focado que a democracia em Portugal, 50 anos depois, tenha a maturidade para poder viver com esta fragmentação e funcionar a bem do povo português, e isto é um trabalho muito exigente, é no que eu estou focado. Quando uma pessoa está focada numa função, deve só focar-se nela, porque se estiver a fazer uma coisa e a pensar na outra, vai fazer mal as duas. E eu tenho um mandato para cumprir, esse mandato em princípio está em exercício até setembro de 2026, e é nisso que eu estou focado. As presidenciais não são tema da agenda política, neste momento os portugueses estão preocupados com o orçamento, estão preocupados em que haja no orçamento as condições para poder combater as dificuldades da habitação, o melhor emprego para os jovens, as condições dos mais desfavorecidos, haver condições para poder aumentar as pensões, para poder que as diversas forças de segurança dos professores, das diversas carreiras profissionais possam ter uma qualidade de vida melhor, é nisso que os portugueses estão preocupados. As presenciais são em 2026, até lá temos as autárquicas. É o respeito pelo calendário que importa aos portugueses. Seguramente se for fazer uma conversa com alguém na rua, um popular, e lhe perguntar sobre as presidenciais, ela vai dizer que não está interessada em nada a ter a ver com isso.
Mas lá adiante, enfim, o senhor tem algum desejo de disputar?
Estou focado só na minha atividade como presidente da Assembleia, ficarei muito satisfeito se tiver contribuído para que a democracia em Portugal saia reforçada depois do meu mandato.