As declarações do presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, apontando que o governo brasileiro estuda tirar o país do Tribunal Penal Internacional (TPI) não são condizentes com as posições históricas do País em relação a Corte, segundo Sylvia Steiner, juíza do TPI entre 2003 e 2016 e única brasileira a ter integrado o colegiado.
Durante a cúpula do G-20, o presidente brasileiro defendeu a presença do presidente da Rússia, Vladimir Putin, na próxima reunião do bloco, que será realizada no Rio de Janeiro. Contudo, o Brasil é signatário da Corte internacional, que tem um mandado de prisão emitido pelo TPI.
“O Brasil se empenhou muito na criação desse tribunal na época da Conferência de Roma em 1998, a delegação brasileira teve uma participação ativa e se esforçou muito para criação e aprovação do Estatuto de Roma em julho de 98″, avalia Steiner. “Depois teve um empenho do próprio governo Lula de eleger uma representante do Brasil para a Corte. Então é difícil entender que agora o TPI não receba mais o apoio brasileiro porque tem um mandado de prisão contra Vladimir Putin”, acrescenta a ex-juíza do TPI.
Steiner também sinaliza que uma saída do TPI proposta por Lula é inviável, porque o Estatuto de Roma, aprovado no Brasil em 2002, foi incluído no Artigo 5º da Constituição, e é considerado uma cláusula pétrea da Carta Magna, ou seja, não pode ser alterado por PEC.
Confira trechos da entrevista.
O Brasil pode deixar o TPI?
Não, na minha avaliação não, de maneira alguma. Desde 2005 com a emenda constitucional 45 a submissão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional, foi acrescida como Parágrafo 4º do artigo 5°, que é o capítulo dos direitos e garantias fundamentais e existe outra previsão na Constituição que é o artigo 60, parágrafo 4º, dizendo que não será sequer objeto de deliberação qualquer emenda que pretenda subtrair direitos e garantias fundamentais, então é cláusula pétrea e não há a menor possibilidade de ser alterada essa cláusula nem por emenda constitucional, então não há do ponto de vista jurídico. Na minha opinião não há como.
É constitucional o Brasil deixar o TPI? Não é cláusula pétrea?
Não é constitucional de jeito nenhum, não há essa possibilidade. O presidente Lula teria que convocar uma nova Constituinte com essa finalidade, porque emenda constitucional não pode, então teria que ser uma nova Constituição e com essa finalidade eu acredito que é meio desproporcional.
Eu gostaria de entender porque parece que de repente de um momento para outro o tribunal parece incomodar tanto. O Brasil sempre foi um grande apoiador do tribunal, menos durante o governo Bolsonaro. Agora um governo progressista e democrático não tem porque se revoltar ou pretender retirar sua adesão ao estatuto de Roma, eu não vejo porque.
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Qual é o impacto disso tudo para a imagem do Brasil?
Eu acho que se tivesse ficado só na declaração do presidente Lula, existia uma chance de avaliarmos apenas como uma escorregada e isso acontece no meio de uma entrevista, mas a continuidade do assunto que foi dada pelo ministro Flávio Dino me pareceu mais preocupante, dizendo que vai estudar as possibilidades, ele foi juiz federal, ele deveria saber que não há essa possibilidade.
Então acredito que no momento em que Lula tem desempenhado um papel importante do Brasil de tentar retomar os espaços que o País perdeu no cenário da diplomacia internacional, é um contrassenso essa discussão de ao mesmo tempo realizar grandes conquistas na arena internacional e querer retroceder em um espaço de garantias contra violações de direitos fundamentais, um governo progressista e democrático não faz isso, é inexplicável.
Quais são os limites do TPI?
O TPI e a justiça brasileira são esferas paralelas que não deveriam se chocar em nenhum momento. Acontece que o Brasil ratificou o tratado do Estatuto de Roma e através de uma emenda constitucional transformou esse tratado em norma constitucional, então do ponto de vista interno há uma limitação ao legislador interno de alterar essa norma constitucional.
E do ponto de vista internacional, as declarações de Lula demonstram um retrocesso muito grande porque o Brasil sempre ratificou todos os tratados e convenções de proteção de direitos fundamentais e de repente o Brasil poderia sair do TPI;
Não é um tribunal de direitos humanos, mas é um tribunal que põem fim à impunidade das violações de direitos humanos, então é uma mensagem que o governo brasileiro manda para a comunidade internacional de que direitos humanos já não têm a importância que tinham antes, o que não combina com Lula. Poderia combinar com o governo anterior, mas com esse governo não combina.
Porque países como Estados Unidos, Rússia e China não estão no TPI? Seria por medo de serem punidos?
Cada país tem a sua desculpa. Os Estados Unidos nunca ratificaram convenção nenhuma de direitos humanos, nem a Convenção Interamericana, é uma tradição dos norte-americanos não se submeterem nem a organismos internacionais e muito menos ao poder jurisdicional internacional, então isso foi na época do presidente Bush, imagina só ele chegou a determinar e isso fazia parte do chamado Patriot Act que se algum norte-americano fosse preso pelo Tribunal Penal Internacional, os Estados Unidos se sentiam no direito de invadir a Holanda para resgatar o preso.
Outros países como por exemplo a Índia ou a Rússia, que têm um histórico de intervenção militar em outros Estados, têm medo da intervenção do tribunal. A intervenção em outro Estado é crime de agressão, que é da competência do tribunal. A China também tem um histórico de problemas sérios em relação a Taiwan.
Então eu acho que esses países, apesar de serem politicamente importantes no cenário internacional, estão do lado errado da história.
Nós estamos do lado certo da história junto com mais 122 países. Inclusive contrariamente do que o Lula falou, dois países do Conselho de Segurança da ONU, a França e o Reino Unido, estão no TPI, então estamos juntos com toda a Europa, América Latina, Canadá, Japão, Coreia do Sul e Austrália. A legitimidade e a representatividade do tribunal são inegáveis, o TPI é um avanço civilizatório.
Não entendo essa postura vinda de um governo progressista.
Porque o TPI se tornou alvo de repente do presidente Lula, do ministro Dino e de parte da esquerda?
Eu confesso para você que eu não entendo. Acho que em um primeiro momento algumas declarações foram feitas por conta da desinformação, de pessoas que não sabem ou não se lembram porque foi criado o TPI.
Essa desinformação também existe quando muitos líderes de países africanos afirmam que o TPI persegue esses países, que é uma competição entre os países do Ocidente contra o Sul Global, mas as pessoas esquecem que os primeiros casos do TPI foram trazidos pelos países africanos, não foi o tribunal que foi atrás, eles vieram pedir ajuda.
Talvez o ministro Dino e o presidente Lula não saibam, mas o tribunal tem um olhar especial para as vítimas, têm uma finalidade restaurativa, de dar voz e reparação às vítimas.
O Brasil se empenhou muito na criação desse tribunal na época da conferência de Roma em 1998, a delegação brasileira chefiada pelo Embaixador Gilberto Saboia fez história com toda a sua participação ativa e o esforço para criação e aprovação do Estatuto de Roma em julho de 98.
Depois disso, o Brasil participou por dois anos da elaboração dos dois anexos do estatuto e depois teve um empenho do próprio governo Lula de eleger uma representante do Brasil para o tribunal. Então é difícil entender que agora, de repente, o tribunal não recebe o apoio brasileiro porque tem mandado de prisão contra o presidente da Rússia, Vladimir Putin. Eu acho que deveriam tomar mais cuidado, porque a finalidade do tribunal é muito importante.