Primeira ‘fiscal do calor’ da África luta para tornar sua cidade mais habitável


Eugenia Kargbo tem o desafio de lidar com altas temperaturas da capital de Serra Leoa, Freetown, em meio a falta de verba e disputas políticas

Por Elian Peltier

THE NEW YORK TIMES - Antes da capital de Serra Leoa, Freetown, crescer explosivamente e se tornar uma metrópole gigantesca — devorando colinas cobertas de floresta e avançando sobre o Atlântico — Eugenia Kargbo adorava a cidade em razão das praias virgens e matas exuberantes que no passado a cercavam e por sua paisagem verdejante.

Kargbo, que cresceu em Freetown ao longo dos anos 90, gostaria de ver a cidade recuperar essas vistas. E como primeira fiscal-chefe do calor de Freetown, uma função criada em 2021, sua aparentemente impossível missão é a seguinte: tornar a cidade verde e habitável novamente, ajudando-a a lidar com as temperaturas em ascensão e outras mudanças climáticas. Essas perturbações, juntamente a décadas de desenvolvimento humano descontrolado, deixaram a capital vulnerável a deslizamentos de encostas e enchentes anuais, com ondas de calor que duram quase um ano inteiro.

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“O calor é invisível, mas está matando as pessoas silenciosamente”, afirmou Kargbo em entrevista, em um dos andares mais altos da prefeitura de Freetown, que fica em um edifício enorme, com ar-condicionado, que desponta em meio a dezenas de assentamentos informais, pontuando a capital da pequena nação africana. “As crianças não dormem à noite por causa da temperatura extrema”, afirmou ela. “Isso afeta sua capacidade de aprender e a produtividade de seus pais.”

Eugenia Kargbo com seus filhos Zoe e Dennis em uma das praias de Freetown  Foto: Yagazie Emezi/The New York Times - 19/11/2022

Mas trata-se de uma cidade de 1,2 milhão de habitantes, onde até 60% das pessoas vivem em moradias improvisadas, construídas sob tetos de ferro ondulados e com paredes conjugadas que transformam o lugar em um forno durante a maior parte do ano. Serra Leoa é um dos países mais pobres do mundo, poucos têm ar-condicionado, e realmente não há dinheiro suficiente para financiar soluções ambiciosas, afirmou Kargbo. Então por onde começar?

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Kargbo aposta primeiramente em soluções a curto prazo. “As pessoas estão sofrendo agora”, afirmou ela.

Kargbo, de 35 anos, mãe de dois, era criança quando Serra Leoa mergulhou em uma guerra civil de uma década, que deixou pelo menos 50 mil mortos. Ela estudou na Universidade de Serra Leoa e em Milão e iniciou carreira como banqueira.

Conforme ela começava a criar os filhos, Freetown passou a testemunhar dias mais quentes e outros desastres relacionados ao tempo, e Kargbo foi convidada para trabalhar no governo. Em 2017, um deslizamento de encostas na capital que deixou mais de 1,1 mil mortos. “Abriu meus olhos para os problemas que nós enfrentamos”, afirmou ela.

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A função de Kargbo como fiscal do calor é parte de um plano mais abrangente, conhecido como “Transforme Freetown”, liderado por sua chefe, a prefeita Yvonne Aki-Sawyerr. O cargo de Kargbo foi criado e é financiado pelo Centro de Resiliência da Fundação Adrienne Arsht-Rockefeller, que integra o Atlantic Council, de Washington.

Kargbo afirmou que quis criar seu filho e sua filha, hoje com 11 e 8 anos, em uma cidade com fontes e parques públicos. Ela sonha com uma Freetown mais verde e fresca, na qual as praias intocadas que ela caminhava na juventude são preservadas em vez de sujeitas a mineração ilegal de areia; e onde as árvores sob as quais ela encontrou alento sejam protegidas em vez de derrubadas para a construção de mais casas. “Freetown era linda, e eu vi essa beleza se esvair”, afirmou ela.

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Como fiscal do calor, Kargbo instalou alguns jardins públicos para fornecer pequenos oásis de refresco para idosos que tomam chá debaixo da sombra das árvores. O gabinete dela também instalou toldos em mercados a céu aberto destinados a proteger vendedores de peixe, carne e vegetais durante as longas horas que eles passam sob o sol escaldante. Ela quer fornecer telhados brancos aos edifícios, que reflitam o calor em vez de absorvê-lo, instalar fontes públicas e plantar muito, muito mais árvores.

Sem refresco

Kargbo também é encarregada das políticas de saneamento da cidade, e prometeu substituir a maioria dos lixões ilegais da cidade por espaços verdes.

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Resta saber se ela será capaz disso tudo. Calor extremo e prolongado pode debilitar corpos; alguns dos efeitos mais severos do calor extremo já estão castigando grande parte dos países do mundo.

Freetown possui um clima equatorial que ocasiona pouca mudança de temperatura ao longo do ano e refresca pouco durante a noite.

As temperaturas médias variam entre cerca de 25ºC a mais de 30ºC, com picos regulares de 37ºC a 43ºC. Em 2020, houve pouco mais de 30 dias com temperaturas médias acima de 27ºC durante o dia. Mas até 2050 a previsão para a cidade é de temperaturas nessa faixa durante quase a metade do ano, de acordo com a consultoria Vivid Economics, de Londres.

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O mercado Congo em Freetown ganhou novos toldos para proteger seus frequentadores; cidade possui um clima equatorial que ocasiona pouca mudança de temperatura ao longo do ano Foto: Yagazie Emezi/The New York Times - 17/11/2022

Em Kroo Bay, um assentamento de 18 mil habitantes a pouco mais de 500 metros do gabinete de Kargbo, as famílias com frequência dormem ao ar livre, porque fica quente demais dentro de suas residências durante a noite.

“O verão passado na Europa fez muita gente perceber que o aquecimento global está acontecendo agora, mas nós estamos testemunhando isso há anos”, afirmou Kargbo.

Kargbo é uma das sete mulheres nomeadas fiscais-chefe do calor pela Fundação Arsht-Rockefeller em quatro continentes. Kathy McLeod, diretora do programa, disse esperar que a função de Kargbo seja replicada em outros países africanos.

“Essa função ou algum cargo similar aparecerá por toda parte, porque os líderes precisarão adotar ações visíveis e tangíveis para proteger as pessoas”, afirmou McLeod. “Eugenia é a face do controle de calor.”

Estrela em ascensão

Mas por enquanto o trabalho e o salário de Kargbo dependem de financiamento estrangeiro. O Banco Mundial, agências das Nações Unidas e parceiros privados, como instituições financeiras, pagam por seus projetos.

“Câmaras municipais na África não estão bem equipadas para lidar com problemas cruciais, mas não óbvios” como a elevação das temperaturas nas ilhas urbanas de calor, afirmou a ambientalista queniana Wanjira Mathai, que qualificou o trabalho de Kargbo como “notável”.

Na última primavera, Kargbo entrou na lista das 100 estrelas em ascensão da revista Time. E ela está trabalhando no esboço de uma estratégia para combater o calor em outras cidades africanas.

Críticos, porém, afirmam que o poder de transformação dela é limitado porque o problema é grande demais para qualquer um enfrentar sozinho. Da mineração descontrolada de areia nas praias aos deslizamentos de encostas, “Freetown constitui um risco geográfico impossível de ser consertado”, afirmou Alhaji N’jai, professor de ciência ambiental da Faculdade de Fourah Bay, da Universidade de Serra Leoa.

Na imagem, o bairro de Mayenkineh, um dos beneficiados pelo projeto de plantio de árvores de Eugenia Kargbo, em Freetown Foto: Yagazie Emezi/The New York Times - 17/11/2022

Em uma tarde recente, Kargbo caminhava despercebida no Congo Market, um dos maiores mercados da cidade, onde funcionários municipais instalaram cerca de 40 toldos de acrílico para proteger os comerciantes do calor. Muitos em volta não sabiam que ela estava por trás da iniciativa.

Muito mais chamativa, a chefe de Kargbo, a prefeita Aki-Sawyerr, chegou ao mercado em um carro com ar-condicionado e foi saudada por centenas de pessoas no local ao baixar o vidro do veículo — com o ar-condicionado ainda ligado.

Nem todos os comerciantes receberam um toldo. Muitos se protegiam sob guarda-sóis de praia cobertos por sacos pretos de plástico. “Por que alguns ganham a cobertura e outros não?”, perguntou a comerciante Mavel Dixon, de 45 anos, enquanto enxugava o suor da testa e apontava para sua banca.

Eugenia Kargbo é uma das sete mulheres nomeadas fiscais-chefe do calor pela Fundação Arsht-Rockefeller em quatro continentes Foto: Yagazie Emezi/The New York Times

Outro projeto liderado por Kargbo que chegou às manchetes é um plano de plantar 1 milhão de árvores até o fim de 2022. A iniciativa foi apelidada “Freetown the tree town” (Freetown, a cidade das árvores). Mas uma escassez de financiamento atrasou o esforço quando pouco mais de 550 mil árvores tinham sido plantadas — das quais 450 mil sobreviveram.

Kargbo afirmou que os desafios da cidade em lidar com os problemas causados pelo calor se agravam em razão da relação tensa que o governo tem com Aki-Sawyerr, uma ex-contadora que está no partido de oposição.

“As causas fundamentais não são enfrentadas: as árvores ainda estão sendo cortadas em Serra Leoa, as casas ainda estão sendo construídas em encostas, as pessoas continuam usando lixo para avançar sobre o mar”, afirmou ela. “Nós recebemos muito pouco financiamento do governo, mas quando o desastre acontece, as pessoas nos perguntam o que fazer.”

Por agora, o calor intenso torna a vida diária em Freetown insuportável para muitos moradores, afirmou Kargbo, com relatos de insolação, tontura e doenças renais. O clima também esquenta os ânimos. “Eu também explodo com os outros quando as temperaturas estão altas”, afirmou ela. “Nós não atentamos para isso, mas o calor suscita violência.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

THE NEW YORK TIMES - Antes da capital de Serra Leoa, Freetown, crescer explosivamente e se tornar uma metrópole gigantesca — devorando colinas cobertas de floresta e avançando sobre o Atlântico — Eugenia Kargbo adorava a cidade em razão das praias virgens e matas exuberantes que no passado a cercavam e por sua paisagem verdejante.

Kargbo, que cresceu em Freetown ao longo dos anos 90, gostaria de ver a cidade recuperar essas vistas. E como primeira fiscal-chefe do calor de Freetown, uma função criada em 2021, sua aparentemente impossível missão é a seguinte: tornar a cidade verde e habitável novamente, ajudando-a a lidar com as temperaturas em ascensão e outras mudanças climáticas. Essas perturbações, juntamente a décadas de desenvolvimento humano descontrolado, deixaram a capital vulnerável a deslizamentos de encostas e enchentes anuais, com ondas de calor que duram quase um ano inteiro.

“O calor é invisível, mas está matando as pessoas silenciosamente”, afirmou Kargbo em entrevista, em um dos andares mais altos da prefeitura de Freetown, que fica em um edifício enorme, com ar-condicionado, que desponta em meio a dezenas de assentamentos informais, pontuando a capital da pequena nação africana. “As crianças não dormem à noite por causa da temperatura extrema”, afirmou ela. “Isso afeta sua capacidade de aprender e a produtividade de seus pais.”

Eugenia Kargbo com seus filhos Zoe e Dennis em uma das praias de Freetown  Foto: Yagazie Emezi/The New York Times - 19/11/2022

Mas trata-se de uma cidade de 1,2 milhão de habitantes, onde até 60% das pessoas vivem em moradias improvisadas, construídas sob tetos de ferro ondulados e com paredes conjugadas que transformam o lugar em um forno durante a maior parte do ano. Serra Leoa é um dos países mais pobres do mundo, poucos têm ar-condicionado, e realmente não há dinheiro suficiente para financiar soluções ambiciosas, afirmou Kargbo. Então por onde começar?

Kargbo aposta primeiramente em soluções a curto prazo. “As pessoas estão sofrendo agora”, afirmou ela.

Kargbo, de 35 anos, mãe de dois, era criança quando Serra Leoa mergulhou em uma guerra civil de uma década, que deixou pelo menos 50 mil mortos. Ela estudou na Universidade de Serra Leoa e em Milão e iniciou carreira como banqueira.

Conforme ela começava a criar os filhos, Freetown passou a testemunhar dias mais quentes e outros desastres relacionados ao tempo, e Kargbo foi convidada para trabalhar no governo. Em 2017, um deslizamento de encostas na capital que deixou mais de 1,1 mil mortos. “Abriu meus olhos para os problemas que nós enfrentamos”, afirmou ela.

A função de Kargbo como fiscal do calor é parte de um plano mais abrangente, conhecido como “Transforme Freetown”, liderado por sua chefe, a prefeita Yvonne Aki-Sawyerr. O cargo de Kargbo foi criado e é financiado pelo Centro de Resiliência da Fundação Adrienne Arsht-Rockefeller, que integra o Atlantic Council, de Washington.

Kargbo afirmou que quis criar seu filho e sua filha, hoje com 11 e 8 anos, em uma cidade com fontes e parques públicos. Ela sonha com uma Freetown mais verde e fresca, na qual as praias intocadas que ela caminhava na juventude são preservadas em vez de sujeitas a mineração ilegal de areia; e onde as árvores sob as quais ela encontrou alento sejam protegidas em vez de derrubadas para a construção de mais casas. “Freetown era linda, e eu vi essa beleza se esvair”, afirmou ela.

Como fiscal do calor, Kargbo instalou alguns jardins públicos para fornecer pequenos oásis de refresco para idosos que tomam chá debaixo da sombra das árvores. O gabinete dela também instalou toldos em mercados a céu aberto destinados a proteger vendedores de peixe, carne e vegetais durante as longas horas que eles passam sob o sol escaldante. Ela quer fornecer telhados brancos aos edifícios, que reflitam o calor em vez de absorvê-lo, instalar fontes públicas e plantar muito, muito mais árvores.

Sem refresco

Kargbo também é encarregada das políticas de saneamento da cidade, e prometeu substituir a maioria dos lixões ilegais da cidade por espaços verdes.

Resta saber se ela será capaz disso tudo. Calor extremo e prolongado pode debilitar corpos; alguns dos efeitos mais severos do calor extremo já estão castigando grande parte dos países do mundo.

Freetown possui um clima equatorial que ocasiona pouca mudança de temperatura ao longo do ano e refresca pouco durante a noite.

As temperaturas médias variam entre cerca de 25ºC a mais de 30ºC, com picos regulares de 37ºC a 43ºC. Em 2020, houve pouco mais de 30 dias com temperaturas médias acima de 27ºC durante o dia. Mas até 2050 a previsão para a cidade é de temperaturas nessa faixa durante quase a metade do ano, de acordo com a consultoria Vivid Economics, de Londres.

O mercado Congo em Freetown ganhou novos toldos para proteger seus frequentadores; cidade possui um clima equatorial que ocasiona pouca mudança de temperatura ao longo do ano Foto: Yagazie Emezi/The New York Times - 17/11/2022

Em Kroo Bay, um assentamento de 18 mil habitantes a pouco mais de 500 metros do gabinete de Kargbo, as famílias com frequência dormem ao ar livre, porque fica quente demais dentro de suas residências durante a noite.

“O verão passado na Europa fez muita gente perceber que o aquecimento global está acontecendo agora, mas nós estamos testemunhando isso há anos”, afirmou Kargbo.

Kargbo é uma das sete mulheres nomeadas fiscais-chefe do calor pela Fundação Arsht-Rockefeller em quatro continentes. Kathy McLeod, diretora do programa, disse esperar que a função de Kargbo seja replicada em outros países africanos.

“Essa função ou algum cargo similar aparecerá por toda parte, porque os líderes precisarão adotar ações visíveis e tangíveis para proteger as pessoas”, afirmou McLeod. “Eugenia é a face do controle de calor.”

Estrela em ascensão

Mas por enquanto o trabalho e o salário de Kargbo dependem de financiamento estrangeiro. O Banco Mundial, agências das Nações Unidas e parceiros privados, como instituições financeiras, pagam por seus projetos.

“Câmaras municipais na África não estão bem equipadas para lidar com problemas cruciais, mas não óbvios” como a elevação das temperaturas nas ilhas urbanas de calor, afirmou a ambientalista queniana Wanjira Mathai, que qualificou o trabalho de Kargbo como “notável”.

Na última primavera, Kargbo entrou na lista das 100 estrelas em ascensão da revista Time. E ela está trabalhando no esboço de uma estratégia para combater o calor em outras cidades africanas.

Críticos, porém, afirmam que o poder de transformação dela é limitado porque o problema é grande demais para qualquer um enfrentar sozinho. Da mineração descontrolada de areia nas praias aos deslizamentos de encostas, “Freetown constitui um risco geográfico impossível de ser consertado”, afirmou Alhaji N’jai, professor de ciência ambiental da Faculdade de Fourah Bay, da Universidade de Serra Leoa.

Na imagem, o bairro de Mayenkineh, um dos beneficiados pelo projeto de plantio de árvores de Eugenia Kargbo, em Freetown Foto: Yagazie Emezi/The New York Times - 17/11/2022

Em uma tarde recente, Kargbo caminhava despercebida no Congo Market, um dos maiores mercados da cidade, onde funcionários municipais instalaram cerca de 40 toldos de acrílico para proteger os comerciantes do calor. Muitos em volta não sabiam que ela estava por trás da iniciativa.

Muito mais chamativa, a chefe de Kargbo, a prefeita Aki-Sawyerr, chegou ao mercado em um carro com ar-condicionado e foi saudada por centenas de pessoas no local ao baixar o vidro do veículo — com o ar-condicionado ainda ligado.

Nem todos os comerciantes receberam um toldo. Muitos se protegiam sob guarda-sóis de praia cobertos por sacos pretos de plástico. “Por que alguns ganham a cobertura e outros não?”, perguntou a comerciante Mavel Dixon, de 45 anos, enquanto enxugava o suor da testa e apontava para sua banca.

Eugenia Kargbo é uma das sete mulheres nomeadas fiscais-chefe do calor pela Fundação Arsht-Rockefeller em quatro continentes Foto: Yagazie Emezi/The New York Times

Outro projeto liderado por Kargbo que chegou às manchetes é um plano de plantar 1 milhão de árvores até o fim de 2022. A iniciativa foi apelidada “Freetown the tree town” (Freetown, a cidade das árvores). Mas uma escassez de financiamento atrasou o esforço quando pouco mais de 550 mil árvores tinham sido plantadas — das quais 450 mil sobreviveram.

Kargbo afirmou que os desafios da cidade em lidar com os problemas causados pelo calor se agravam em razão da relação tensa que o governo tem com Aki-Sawyerr, uma ex-contadora que está no partido de oposição.

“As causas fundamentais não são enfrentadas: as árvores ainda estão sendo cortadas em Serra Leoa, as casas ainda estão sendo construídas em encostas, as pessoas continuam usando lixo para avançar sobre o mar”, afirmou ela. “Nós recebemos muito pouco financiamento do governo, mas quando o desastre acontece, as pessoas nos perguntam o que fazer.”

Por agora, o calor intenso torna a vida diária em Freetown insuportável para muitos moradores, afirmou Kargbo, com relatos de insolação, tontura e doenças renais. O clima também esquenta os ânimos. “Eu também explodo com os outros quando as temperaturas estão altas”, afirmou ela. “Nós não atentamos para isso, mas o calor suscita violência.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

THE NEW YORK TIMES - Antes da capital de Serra Leoa, Freetown, crescer explosivamente e se tornar uma metrópole gigantesca — devorando colinas cobertas de floresta e avançando sobre o Atlântico — Eugenia Kargbo adorava a cidade em razão das praias virgens e matas exuberantes que no passado a cercavam e por sua paisagem verdejante.

Kargbo, que cresceu em Freetown ao longo dos anos 90, gostaria de ver a cidade recuperar essas vistas. E como primeira fiscal-chefe do calor de Freetown, uma função criada em 2021, sua aparentemente impossível missão é a seguinte: tornar a cidade verde e habitável novamente, ajudando-a a lidar com as temperaturas em ascensão e outras mudanças climáticas. Essas perturbações, juntamente a décadas de desenvolvimento humano descontrolado, deixaram a capital vulnerável a deslizamentos de encostas e enchentes anuais, com ondas de calor que duram quase um ano inteiro.

“O calor é invisível, mas está matando as pessoas silenciosamente”, afirmou Kargbo em entrevista, em um dos andares mais altos da prefeitura de Freetown, que fica em um edifício enorme, com ar-condicionado, que desponta em meio a dezenas de assentamentos informais, pontuando a capital da pequena nação africana. “As crianças não dormem à noite por causa da temperatura extrema”, afirmou ela. “Isso afeta sua capacidade de aprender e a produtividade de seus pais.”

Eugenia Kargbo com seus filhos Zoe e Dennis em uma das praias de Freetown  Foto: Yagazie Emezi/The New York Times - 19/11/2022

Mas trata-se de uma cidade de 1,2 milhão de habitantes, onde até 60% das pessoas vivem em moradias improvisadas, construídas sob tetos de ferro ondulados e com paredes conjugadas que transformam o lugar em um forno durante a maior parte do ano. Serra Leoa é um dos países mais pobres do mundo, poucos têm ar-condicionado, e realmente não há dinheiro suficiente para financiar soluções ambiciosas, afirmou Kargbo. Então por onde começar?

Kargbo aposta primeiramente em soluções a curto prazo. “As pessoas estão sofrendo agora”, afirmou ela.

Kargbo, de 35 anos, mãe de dois, era criança quando Serra Leoa mergulhou em uma guerra civil de uma década, que deixou pelo menos 50 mil mortos. Ela estudou na Universidade de Serra Leoa e em Milão e iniciou carreira como banqueira.

Conforme ela começava a criar os filhos, Freetown passou a testemunhar dias mais quentes e outros desastres relacionados ao tempo, e Kargbo foi convidada para trabalhar no governo. Em 2017, um deslizamento de encostas na capital que deixou mais de 1,1 mil mortos. “Abriu meus olhos para os problemas que nós enfrentamos”, afirmou ela.

A função de Kargbo como fiscal do calor é parte de um plano mais abrangente, conhecido como “Transforme Freetown”, liderado por sua chefe, a prefeita Yvonne Aki-Sawyerr. O cargo de Kargbo foi criado e é financiado pelo Centro de Resiliência da Fundação Adrienne Arsht-Rockefeller, que integra o Atlantic Council, de Washington.

Kargbo afirmou que quis criar seu filho e sua filha, hoje com 11 e 8 anos, em uma cidade com fontes e parques públicos. Ela sonha com uma Freetown mais verde e fresca, na qual as praias intocadas que ela caminhava na juventude são preservadas em vez de sujeitas a mineração ilegal de areia; e onde as árvores sob as quais ela encontrou alento sejam protegidas em vez de derrubadas para a construção de mais casas. “Freetown era linda, e eu vi essa beleza se esvair”, afirmou ela.

Como fiscal do calor, Kargbo instalou alguns jardins públicos para fornecer pequenos oásis de refresco para idosos que tomam chá debaixo da sombra das árvores. O gabinete dela também instalou toldos em mercados a céu aberto destinados a proteger vendedores de peixe, carne e vegetais durante as longas horas que eles passam sob o sol escaldante. Ela quer fornecer telhados brancos aos edifícios, que reflitam o calor em vez de absorvê-lo, instalar fontes públicas e plantar muito, muito mais árvores.

Sem refresco

Kargbo também é encarregada das políticas de saneamento da cidade, e prometeu substituir a maioria dos lixões ilegais da cidade por espaços verdes.

Resta saber se ela será capaz disso tudo. Calor extremo e prolongado pode debilitar corpos; alguns dos efeitos mais severos do calor extremo já estão castigando grande parte dos países do mundo.

Freetown possui um clima equatorial que ocasiona pouca mudança de temperatura ao longo do ano e refresca pouco durante a noite.

As temperaturas médias variam entre cerca de 25ºC a mais de 30ºC, com picos regulares de 37ºC a 43ºC. Em 2020, houve pouco mais de 30 dias com temperaturas médias acima de 27ºC durante o dia. Mas até 2050 a previsão para a cidade é de temperaturas nessa faixa durante quase a metade do ano, de acordo com a consultoria Vivid Economics, de Londres.

O mercado Congo em Freetown ganhou novos toldos para proteger seus frequentadores; cidade possui um clima equatorial que ocasiona pouca mudança de temperatura ao longo do ano Foto: Yagazie Emezi/The New York Times - 17/11/2022

Em Kroo Bay, um assentamento de 18 mil habitantes a pouco mais de 500 metros do gabinete de Kargbo, as famílias com frequência dormem ao ar livre, porque fica quente demais dentro de suas residências durante a noite.

“O verão passado na Europa fez muita gente perceber que o aquecimento global está acontecendo agora, mas nós estamos testemunhando isso há anos”, afirmou Kargbo.

Kargbo é uma das sete mulheres nomeadas fiscais-chefe do calor pela Fundação Arsht-Rockefeller em quatro continentes. Kathy McLeod, diretora do programa, disse esperar que a função de Kargbo seja replicada em outros países africanos.

“Essa função ou algum cargo similar aparecerá por toda parte, porque os líderes precisarão adotar ações visíveis e tangíveis para proteger as pessoas”, afirmou McLeod. “Eugenia é a face do controle de calor.”

Estrela em ascensão

Mas por enquanto o trabalho e o salário de Kargbo dependem de financiamento estrangeiro. O Banco Mundial, agências das Nações Unidas e parceiros privados, como instituições financeiras, pagam por seus projetos.

“Câmaras municipais na África não estão bem equipadas para lidar com problemas cruciais, mas não óbvios” como a elevação das temperaturas nas ilhas urbanas de calor, afirmou a ambientalista queniana Wanjira Mathai, que qualificou o trabalho de Kargbo como “notável”.

Na última primavera, Kargbo entrou na lista das 100 estrelas em ascensão da revista Time. E ela está trabalhando no esboço de uma estratégia para combater o calor em outras cidades africanas.

Críticos, porém, afirmam que o poder de transformação dela é limitado porque o problema é grande demais para qualquer um enfrentar sozinho. Da mineração descontrolada de areia nas praias aos deslizamentos de encostas, “Freetown constitui um risco geográfico impossível de ser consertado”, afirmou Alhaji N’jai, professor de ciência ambiental da Faculdade de Fourah Bay, da Universidade de Serra Leoa.

Na imagem, o bairro de Mayenkineh, um dos beneficiados pelo projeto de plantio de árvores de Eugenia Kargbo, em Freetown Foto: Yagazie Emezi/The New York Times - 17/11/2022

Em uma tarde recente, Kargbo caminhava despercebida no Congo Market, um dos maiores mercados da cidade, onde funcionários municipais instalaram cerca de 40 toldos de acrílico para proteger os comerciantes do calor. Muitos em volta não sabiam que ela estava por trás da iniciativa.

Muito mais chamativa, a chefe de Kargbo, a prefeita Aki-Sawyerr, chegou ao mercado em um carro com ar-condicionado e foi saudada por centenas de pessoas no local ao baixar o vidro do veículo — com o ar-condicionado ainda ligado.

Nem todos os comerciantes receberam um toldo. Muitos se protegiam sob guarda-sóis de praia cobertos por sacos pretos de plástico. “Por que alguns ganham a cobertura e outros não?”, perguntou a comerciante Mavel Dixon, de 45 anos, enquanto enxugava o suor da testa e apontava para sua banca.

Eugenia Kargbo é uma das sete mulheres nomeadas fiscais-chefe do calor pela Fundação Arsht-Rockefeller em quatro continentes Foto: Yagazie Emezi/The New York Times

Outro projeto liderado por Kargbo que chegou às manchetes é um plano de plantar 1 milhão de árvores até o fim de 2022. A iniciativa foi apelidada “Freetown the tree town” (Freetown, a cidade das árvores). Mas uma escassez de financiamento atrasou o esforço quando pouco mais de 550 mil árvores tinham sido plantadas — das quais 450 mil sobreviveram.

Kargbo afirmou que os desafios da cidade em lidar com os problemas causados pelo calor se agravam em razão da relação tensa que o governo tem com Aki-Sawyerr, uma ex-contadora que está no partido de oposição.

“As causas fundamentais não são enfrentadas: as árvores ainda estão sendo cortadas em Serra Leoa, as casas ainda estão sendo construídas em encostas, as pessoas continuam usando lixo para avançar sobre o mar”, afirmou ela. “Nós recebemos muito pouco financiamento do governo, mas quando o desastre acontece, as pessoas nos perguntam o que fazer.”

Por agora, o calor intenso torna a vida diária em Freetown insuportável para muitos moradores, afirmou Kargbo, com relatos de insolação, tontura e doenças renais. O clima também esquenta os ânimos. “Eu também explodo com os outros quando as temperaturas estão altas”, afirmou ela. “Nós não atentamos para isso, mas o calor suscita violência.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

THE NEW YORK TIMES - Antes da capital de Serra Leoa, Freetown, crescer explosivamente e se tornar uma metrópole gigantesca — devorando colinas cobertas de floresta e avançando sobre o Atlântico — Eugenia Kargbo adorava a cidade em razão das praias virgens e matas exuberantes que no passado a cercavam e por sua paisagem verdejante.

Kargbo, que cresceu em Freetown ao longo dos anos 90, gostaria de ver a cidade recuperar essas vistas. E como primeira fiscal-chefe do calor de Freetown, uma função criada em 2021, sua aparentemente impossível missão é a seguinte: tornar a cidade verde e habitável novamente, ajudando-a a lidar com as temperaturas em ascensão e outras mudanças climáticas. Essas perturbações, juntamente a décadas de desenvolvimento humano descontrolado, deixaram a capital vulnerável a deslizamentos de encostas e enchentes anuais, com ondas de calor que duram quase um ano inteiro.

“O calor é invisível, mas está matando as pessoas silenciosamente”, afirmou Kargbo em entrevista, em um dos andares mais altos da prefeitura de Freetown, que fica em um edifício enorme, com ar-condicionado, que desponta em meio a dezenas de assentamentos informais, pontuando a capital da pequena nação africana. “As crianças não dormem à noite por causa da temperatura extrema”, afirmou ela. “Isso afeta sua capacidade de aprender e a produtividade de seus pais.”

Eugenia Kargbo com seus filhos Zoe e Dennis em uma das praias de Freetown  Foto: Yagazie Emezi/The New York Times - 19/11/2022

Mas trata-se de uma cidade de 1,2 milhão de habitantes, onde até 60% das pessoas vivem em moradias improvisadas, construídas sob tetos de ferro ondulados e com paredes conjugadas que transformam o lugar em um forno durante a maior parte do ano. Serra Leoa é um dos países mais pobres do mundo, poucos têm ar-condicionado, e realmente não há dinheiro suficiente para financiar soluções ambiciosas, afirmou Kargbo. Então por onde começar?

Kargbo aposta primeiramente em soluções a curto prazo. “As pessoas estão sofrendo agora”, afirmou ela.

Kargbo, de 35 anos, mãe de dois, era criança quando Serra Leoa mergulhou em uma guerra civil de uma década, que deixou pelo menos 50 mil mortos. Ela estudou na Universidade de Serra Leoa e em Milão e iniciou carreira como banqueira.

Conforme ela começava a criar os filhos, Freetown passou a testemunhar dias mais quentes e outros desastres relacionados ao tempo, e Kargbo foi convidada para trabalhar no governo. Em 2017, um deslizamento de encostas na capital que deixou mais de 1,1 mil mortos. “Abriu meus olhos para os problemas que nós enfrentamos”, afirmou ela.

A função de Kargbo como fiscal do calor é parte de um plano mais abrangente, conhecido como “Transforme Freetown”, liderado por sua chefe, a prefeita Yvonne Aki-Sawyerr. O cargo de Kargbo foi criado e é financiado pelo Centro de Resiliência da Fundação Adrienne Arsht-Rockefeller, que integra o Atlantic Council, de Washington.

Kargbo afirmou que quis criar seu filho e sua filha, hoje com 11 e 8 anos, em uma cidade com fontes e parques públicos. Ela sonha com uma Freetown mais verde e fresca, na qual as praias intocadas que ela caminhava na juventude são preservadas em vez de sujeitas a mineração ilegal de areia; e onde as árvores sob as quais ela encontrou alento sejam protegidas em vez de derrubadas para a construção de mais casas. “Freetown era linda, e eu vi essa beleza se esvair”, afirmou ela.

Como fiscal do calor, Kargbo instalou alguns jardins públicos para fornecer pequenos oásis de refresco para idosos que tomam chá debaixo da sombra das árvores. O gabinete dela também instalou toldos em mercados a céu aberto destinados a proteger vendedores de peixe, carne e vegetais durante as longas horas que eles passam sob o sol escaldante. Ela quer fornecer telhados brancos aos edifícios, que reflitam o calor em vez de absorvê-lo, instalar fontes públicas e plantar muito, muito mais árvores.

Sem refresco

Kargbo também é encarregada das políticas de saneamento da cidade, e prometeu substituir a maioria dos lixões ilegais da cidade por espaços verdes.

Resta saber se ela será capaz disso tudo. Calor extremo e prolongado pode debilitar corpos; alguns dos efeitos mais severos do calor extremo já estão castigando grande parte dos países do mundo.

Freetown possui um clima equatorial que ocasiona pouca mudança de temperatura ao longo do ano e refresca pouco durante a noite.

As temperaturas médias variam entre cerca de 25ºC a mais de 30ºC, com picos regulares de 37ºC a 43ºC. Em 2020, houve pouco mais de 30 dias com temperaturas médias acima de 27ºC durante o dia. Mas até 2050 a previsão para a cidade é de temperaturas nessa faixa durante quase a metade do ano, de acordo com a consultoria Vivid Economics, de Londres.

O mercado Congo em Freetown ganhou novos toldos para proteger seus frequentadores; cidade possui um clima equatorial que ocasiona pouca mudança de temperatura ao longo do ano Foto: Yagazie Emezi/The New York Times - 17/11/2022

Em Kroo Bay, um assentamento de 18 mil habitantes a pouco mais de 500 metros do gabinete de Kargbo, as famílias com frequência dormem ao ar livre, porque fica quente demais dentro de suas residências durante a noite.

“O verão passado na Europa fez muita gente perceber que o aquecimento global está acontecendo agora, mas nós estamos testemunhando isso há anos”, afirmou Kargbo.

Kargbo é uma das sete mulheres nomeadas fiscais-chefe do calor pela Fundação Arsht-Rockefeller em quatro continentes. Kathy McLeod, diretora do programa, disse esperar que a função de Kargbo seja replicada em outros países africanos.

“Essa função ou algum cargo similar aparecerá por toda parte, porque os líderes precisarão adotar ações visíveis e tangíveis para proteger as pessoas”, afirmou McLeod. “Eugenia é a face do controle de calor.”

Estrela em ascensão

Mas por enquanto o trabalho e o salário de Kargbo dependem de financiamento estrangeiro. O Banco Mundial, agências das Nações Unidas e parceiros privados, como instituições financeiras, pagam por seus projetos.

“Câmaras municipais na África não estão bem equipadas para lidar com problemas cruciais, mas não óbvios” como a elevação das temperaturas nas ilhas urbanas de calor, afirmou a ambientalista queniana Wanjira Mathai, que qualificou o trabalho de Kargbo como “notável”.

Na última primavera, Kargbo entrou na lista das 100 estrelas em ascensão da revista Time. E ela está trabalhando no esboço de uma estratégia para combater o calor em outras cidades africanas.

Críticos, porém, afirmam que o poder de transformação dela é limitado porque o problema é grande demais para qualquer um enfrentar sozinho. Da mineração descontrolada de areia nas praias aos deslizamentos de encostas, “Freetown constitui um risco geográfico impossível de ser consertado”, afirmou Alhaji N’jai, professor de ciência ambiental da Faculdade de Fourah Bay, da Universidade de Serra Leoa.

Na imagem, o bairro de Mayenkineh, um dos beneficiados pelo projeto de plantio de árvores de Eugenia Kargbo, em Freetown Foto: Yagazie Emezi/The New York Times - 17/11/2022

Em uma tarde recente, Kargbo caminhava despercebida no Congo Market, um dos maiores mercados da cidade, onde funcionários municipais instalaram cerca de 40 toldos de acrílico para proteger os comerciantes do calor. Muitos em volta não sabiam que ela estava por trás da iniciativa.

Muito mais chamativa, a chefe de Kargbo, a prefeita Aki-Sawyerr, chegou ao mercado em um carro com ar-condicionado e foi saudada por centenas de pessoas no local ao baixar o vidro do veículo — com o ar-condicionado ainda ligado.

Nem todos os comerciantes receberam um toldo. Muitos se protegiam sob guarda-sóis de praia cobertos por sacos pretos de plástico. “Por que alguns ganham a cobertura e outros não?”, perguntou a comerciante Mavel Dixon, de 45 anos, enquanto enxugava o suor da testa e apontava para sua banca.

Eugenia Kargbo é uma das sete mulheres nomeadas fiscais-chefe do calor pela Fundação Arsht-Rockefeller em quatro continentes Foto: Yagazie Emezi/The New York Times

Outro projeto liderado por Kargbo que chegou às manchetes é um plano de plantar 1 milhão de árvores até o fim de 2022. A iniciativa foi apelidada “Freetown the tree town” (Freetown, a cidade das árvores). Mas uma escassez de financiamento atrasou o esforço quando pouco mais de 550 mil árvores tinham sido plantadas — das quais 450 mil sobreviveram.

Kargbo afirmou que os desafios da cidade em lidar com os problemas causados pelo calor se agravam em razão da relação tensa que o governo tem com Aki-Sawyerr, uma ex-contadora que está no partido de oposição.

“As causas fundamentais não são enfrentadas: as árvores ainda estão sendo cortadas em Serra Leoa, as casas ainda estão sendo construídas em encostas, as pessoas continuam usando lixo para avançar sobre o mar”, afirmou ela. “Nós recebemos muito pouco financiamento do governo, mas quando o desastre acontece, as pessoas nos perguntam o que fazer.”

Por agora, o calor intenso torna a vida diária em Freetown insuportável para muitos moradores, afirmou Kargbo, com relatos de insolação, tontura e doenças renais. O clima também esquenta os ânimos. “Eu também explodo com os outros quando as temperaturas estão altas”, afirmou ela. “Nós não atentamos para isso, mas o calor suscita violência.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

THE NEW YORK TIMES - Antes da capital de Serra Leoa, Freetown, crescer explosivamente e se tornar uma metrópole gigantesca — devorando colinas cobertas de floresta e avançando sobre o Atlântico — Eugenia Kargbo adorava a cidade em razão das praias virgens e matas exuberantes que no passado a cercavam e por sua paisagem verdejante.

Kargbo, que cresceu em Freetown ao longo dos anos 90, gostaria de ver a cidade recuperar essas vistas. E como primeira fiscal-chefe do calor de Freetown, uma função criada em 2021, sua aparentemente impossível missão é a seguinte: tornar a cidade verde e habitável novamente, ajudando-a a lidar com as temperaturas em ascensão e outras mudanças climáticas. Essas perturbações, juntamente a décadas de desenvolvimento humano descontrolado, deixaram a capital vulnerável a deslizamentos de encostas e enchentes anuais, com ondas de calor que duram quase um ano inteiro.

“O calor é invisível, mas está matando as pessoas silenciosamente”, afirmou Kargbo em entrevista, em um dos andares mais altos da prefeitura de Freetown, que fica em um edifício enorme, com ar-condicionado, que desponta em meio a dezenas de assentamentos informais, pontuando a capital da pequena nação africana. “As crianças não dormem à noite por causa da temperatura extrema”, afirmou ela. “Isso afeta sua capacidade de aprender e a produtividade de seus pais.”

Eugenia Kargbo com seus filhos Zoe e Dennis em uma das praias de Freetown  Foto: Yagazie Emezi/The New York Times - 19/11/2022

Mas trata-se de uma cidade de 1,2 milhão de habitantes, onde até 60% das pessoas vivem em moradias improvisadas, construídas sob tetos de ferro ondulados e com paredes conjugadas que transformam o lugar em um forno durante a maior parte do ano. Serra Leoa é um dos países mais pobres do mundo, poucos têm ar-condicionado, e realmente não há dinheiro suficiente para financiar soluções ambiciosas, afirmou Kargbo. Então por onde começar?

Kargbo aposta primeiramente em soluções a curto prazo. “As pessoas estão sofrendo agora”, afirmou ela.

Kargbo, de 35 anos, mãe de dois, era criança quando Serra Leoa mergulhou em uma guerra civil de uma década, que deixou pelo menos 50 mil mortos. Ela estudou na Universidade de Serra Leoa e em Milão e iniciou carreira como banqueira.

Conforme ela começava a criar os filhos, Freetown passou a testemunhar dias mais quentes e outros desastres relacionados ao tempo, e Kargbo foi convidada para trabalhar no governo. Em 2017, um deslizamento de encostas na capital que deixou mais de 1,1 mil mortos. “Abriu meus olhos para os problemas que nós enfrentamos”, afirmou ela.

A função de Kargbo como fiscal do calor é parte de um plano mais abrangente, conhecido como “Transforme Freetown”, liderado por sua chefe, a prefeita Yvonne Aki-Sawyerr. O cargo de Kargbo foi criado e é financiado pelo Centro de Resiliência da Fundação Adrienne Arsht-Rockefeller, que integra o Atlantic Council, de Washington.

Kargbo afirmou que quis criar seu filho e sua filha, hoje com 11 e 8 anos, em uma cidade com fontes e parques públicos. Ela sonha com uma Freetown mais verde e fresca, na qual as praias intocadas que ela caminhava na juventude são preservadas em vez de sujeitas a mineração ilegal de areia; e onde as árvores sob as quais ela encontrou alento sejam protegidas em vez de derrubadas para a construção de mais casas. “Freetown era linda, e eu vi essa beleza se esvair”, afirmou ela.

Como fiscal do calor, Kargbo instalou alguns jardins públicos para fornecer pequenos oásis de refresco para idosos que tomam chá debaixo da sombra das árvores. O gabinete dela também instalou toldos em mercados a céu aberto destinados a proteger vendedores de peixe, carne e vegetais durante as longas horas que eles passam sob o sol escaldante. Ela quer fornecer telhados brancos aos edifícios, que reflitam o calor em vez de absorvê-lo, instalar fontes públicas e plantar muito, muito mais árvores.

Sem refresco

Kargbo também é encarregada das políticas de saneamento da cidade, e prometeu substituir a maioria dos lixões ilegais da cidade por espaços verdes.

Resta saber se ela será capaz disso tudo. Calor extremo e prolongado pode debilitar corpos; alguns dos efeitos mais severos do calor extremo já estão castigando grande parte dos países do mundo.

Freetown possui um clima equatorial que ocasiona pouca mudança de temperatura ao longo do ano e refresca pouco durante a noite.

As temperaturas médias variam entre cerca de 25ºC a mais de 30ºC, com picos regulares de 37ºC a 43ºC. Em 2020, houve pouco mais de 30 dias com temperaturas médias acima de 27ºC durante o dia. Mas até 2050 a previsão para a cidade é de temperaturas nessa faixa durante quase a metade do ano, de acordo com a consultoria Vivid Economics, de Londres.

O mercado Congo em Freetown ganhou novos toldos para proteger seus frequentadores; cidade possui um clima equatorial que ocasiona pouca mudança de temperatura ao longo do ano Foto: Yagazie Emezi/The New York Times - 17/11/2022

Em Kroo Bay, um assentamento de 18 mil habitantes a pouco mais de 500 metros do gabinete de Kargbo, as famílias com frequência dormem ao ar livre, porque fica quente demais dentro de suas residências durante a noite.

“O verão passado na Europa fez muita gente perceber que o aquecimento global está acontecendo agora, mas nós estamos testemunhando isso há anos”, afirmou Kargbo.

Kargbo é uma das sete mulheres nomeadas fiscais-chefe do calor pela Fundação Arsht-Rockefeller em quatro continentes. Kathy McLeod, diretora do programa, disse esperar que a função de Kargbo seja replicada em outros países africanos.

“Essa função ou algum cargo similar aparecerá por toda parte, porque os líderes precisarão adotar ações visíveis e tangíveis para proteger as pessoas”, afirmou McLeod. “Eugenia é a face do controle de calor.”

Estrela em ascensão

Mas por enquanto o trabalho e o salário de Kargbo dependem de financiamento estrangeiro. O Banco Mundial, agências das Nações Unidas e parceiros privados, como instituições financeiras, pagam por seus projetos.

“Câmaras municipais na África não estão bem equipadas para lidar com problemas cruciais, mas não óbvios” como a elevação das temperaturas nas ilhas urbanas de calor, afirmou a ambientalista queniana Wanjira Mathai, que qualificou o trabalho de Kargbo como “notável”.

Na última primavera, Kargbo entrou na lista das 100 estrelas em ascensão da revista Time. E ela está trabalhando no esboço de uma estratégia para combater o calor em outras cidades africanas.

Críticos, porém, afirmam que o poder de transformação dela é limitado porque o problema é grande demais para qualquer um enfrentar sozinho. Da mineração descontrolada de areia nas praias aos deslizamentos de encostas, “Freetown constitui um risco geográfico impossível de ser consertado”, afirmou Alhaji N’jai, professor de ciência ambiental da Faculdade de Fourah Bay, da Universidade de Serra Leoa.

Na imagem, o bairro de Mayenkineh, um dos beneficiados pelo projeto de plantio de árvores de Eugenia Kargbo, em Freetown Foto: Yagazie Emezi/The New York Times - 17/11/2022

Em uma tarde recente, Kargbo caminhava despercebida no Congo Market, um dos maiores mercados da cidade, onde funcionários municipais instalaram cerca de 40 toldos de acrílico para proteger os comerciantes do calor. Muitos em volta não sabiam que ela estava por trás da iniciativa.

Muito mais chamativa, a chefe de Kargbo, a prefeita Aki-Sawyerr, chegou ao mercado em um carro com ar-condicionado e foi saudada por centenas de pessoas no local ao baixar o vidro do veículo — com o ar-condicionado ainda ligado.

Nem todos os comerciantes receberam um toldo. Muitos se protegiam sob guarda-sóis de praia cobertos por sacos pretos de plástico. “Por que alguns ganham a cobertura e outros não?”, perguntou a comerciante Mavel Dixon, de 45 anos, enquanto enxugava o suor da testa e apontava para sua banca.

Eugenia Kargbo é uma das sete mulheres nomeadas fiscais-chefe do calor pela Fundação Arsht-Rockefeller em quatro continentes Foto: Yagazie Emezi/The New York Times

Outro projeto liderado por Kargbo que chegou às manchetes é um plano de plantar 1 milhão de árvores até o fim de 2022. A iniciativa foi apelidada “Freetown the tree town” (Freetown, a cidade das árvores). Mas uma escassez de financiamento atrasou o esforço quando pouco mais de 550 mil árvores tinham sido plantadas — das quais 450 mil sobreviveram.

Kargbo afirmou que os desafios da cidade em lidar com os problemas causados pelo calor se agravam em razão da relação tensa que o governo tem com Aki-Sawyerr, uma ex-contadora que está no partido de oposição.

“As causas fundamentais não são enfrentadas: as árvores ainda estão sendo cortadas em Serra Leoa, as casas ainda estão sendo construídas em encostas, as pessoas continuam usando lixo para avançar sobre o mar”, afirmou ela. “Nós recebemos muito pouco financiamento do governo, mas quando o desastre acontece, as pessoas nos perguntam o que fazer.”

Por agora, o calor intenso torna a vida diária em Freetown insuportável para muitos moradores, afirmou Kargbo, com relatos de insolação, tontura e doenças renais. O clima também esquenta os ânimos. “Eu também explodo com os outros quando as temperaturas estão altas”, afirmou ela. “Nós não atentamos para isso, mas o calor suscita violência.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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