Fumio Kishida passou anos tentando emergir da sombra de Shinzo Abe, ex-primeiro-ministro do Japão que foi morto a tiros em um comício de campanha eleitoral, em 8 de julho. Desde que ambos foram eleitos, em 1993, para o Parlamento japonês, Abe sempre foi mais proeminente entre os dois.
Com sua presença carismática, ele ofuscava Kishida, político que pode parecer tão rígido que uma menina em idade escolar recentemente lhe perguntou quando foi a última vez que ele sorriu de verdade. Sua resposta: sempre que seu amado time de beisebol, o Hiroshima Toyo Carp, vence.
Após Kishida finalmente ascender – em sua segunda tentativa – ao cargo de primeiro-ministro, Abe continuou incomodando na periferia. Ele ventilava ideias controvertidas, como a proposta para o Japão servir como base para armamentos nucleares americanos, e alertava que os mercados financeiros poderiam considerar as políticas econômicas de Kishida “socialistas” e reagir mal a elas.
Agora, depois do assassinato do ex-primeiro-ministro, Kishida, de 64 anos, tenta honrar Abe e, ao mesmo tempo, provar que é capaz de se diferenciar em relação ao legado do premiê que governou o Japão por mais tempo em sua história.
”Dois anos atrás, Kishida quase foi considerado um político sem nenhuma chance de se tornar primeiro-ministro”, afirmou Mikitaka Masuyama, professor de ciência política do Instituto Nacional de Graduação em Estudos Políticos, em Tóquio.
Agora, disse ele, “nos resta descobrir se Kishida realmente possui a capacidade e as qualidades de liderança para governar e controlar” seu Partido Liberal Democrata.
A dúvida que paira sobre Kishida é como ele investirá seu capital político, impulsionado pela vitória nas eleições para a Câmara Alta do Parlamento, uma semana atrás.
O primeiro-ministro já indicou que se movimentará para colocar em prática os objetivos mais acalentados por Abe, incluindo uma revisão na cláusula pacifista da Constituição do Japão, que renuncia à guerra, assim como um aumento no gasto em defesa.
Na semana passada, Kishida se apressou em afirmar que enfrentaria “questões difíceis” a que Abe “se dedicou com paixão”, mas “não conseguiu alcançar”. Ele prometeu “aumentar drasticamente as capacidades de defesa do Japão nos próximos cinco anos”.
Tanto quanto a morte de Abe, as circunstâncias geopolíticas ditarão as escolhas de Kishida. A guerra na Ucrânia e as crescentes ameaças da China e da Coreia do Norte fizeram com que Kishida, que anteriormente se classificava como um membro progressista e pacifista dos liberal-democratas, assumisse uma posição mais belicosa.
“Dadas as pressões regionais, Tóquio não tem a opção de não aumentar gastos em defesa”, afirmou Titli Basu, pesquisadora do Instituto para Estudos de Defesa e Análise, em Nova Délhi.
A maior parte dos japoneses reconhece essa ameaça: nas pesquisas de opinião, a maioria apoia o aumento no orçamento da defesa. E ainda que antes o público se opusesse vocalmente à revisão da Constituição pacifista, sondagens realizadas recentemente indicaram que agora a maioria dos japoneses aceitaria esse movimento.
Kishida está “dizendo coisas que, no passado, quem quer que afirmasse isso teria ocasionado discordância política”, afirmou o embaixador dos Estados Unidos no Japão, Rahm Emanuel. “Há uma construção de consenso que se deve em parte a ele e em parte aos eventos”, acrescentou.
Nos noves meses que se passaram desde que o partido escolheu Kishida como primeiro-ministro, ele ampliou constantemente a infatigável diplomacia que marcou o governo de Abe.
Silenciosamente, Kishida também se diferenciou em relação ao seu antecessor. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em 24 de fevereiro, Kishida condenou veementemente as ações da Rússia sem hesitação e adotou as sanções imediatamente. Oito anos antes, Abe, inclinado a propiciar uma relação com o presidente russo, Vladimir Putin, relutou em impor sanções depois que a Rússia anexou a península ucraniana da Crimeia.
Desde outubro, Kishida visitou 11 países. No mês passado, ele se tornou o primeiro chefe do Executivo japonês a comparecer a uma reunião da Otan. Em maio, quando Kishida visitou o Vietnã, um dos poucos países que havia votado contra a resolução das Nações Unidas para suspender a Rússia do Conselho de Direitos Humanos, ele e o primeiro-ministro, Pham Minh Chinh, concordaram a respeito da importância de um cessar-fogo imediato na Ucrânia, e Chinh anunciou US$ 500 mil em assistência humanitária para a Ucrânia.
Como Abe, Kishida é filho e neto de ex-membros do Parlamento. Quando ambos eram jovens parlamentares, que entraram na Câmara Baixa no mesmo ano, eles às vezes trabalhavam em parceria.
O comentarista político Shinobu Konno relembrou recentemente na emissora de TV japonesa ANN News que Kishida e Abe viajaram juntos a Taiwan, em 1997, em uma missão diplomática chefiada por Abe, na qual Kishida atuou como seu subchefe.
”Kishida bebia bem, mas era enfadonho quando falava”, afirmou Konno. “E Abe falava bem, mas não sabia beber. Então, eles dividiam responsabilidades. Kishida ficava encarregado de beber e competia com os mais fortes beberrões taiwaneses, enquanto Abe ficava encarregado de falar e empolgar a todos.”
Durante o primeiro – e breve – mandato de Abe como primeiro-ministro, de 2006 a 2007, Kishida atuou como o ministro de Estado encarregado de Okinawa e dos Territórios do Norte. Depois que Abe voltou ao poder, em 2012, ele nomeou seu velho amigo ministro de Relações Exteriores, função que Kishida ocupou por mais tempo do que qualquer outra pessoa na história do Japão pós-2.ª Guerra.
Mas quando Abe renunciou, em 2020, ele apoiou outro político, Yoshihide Suga, para suceder ao amigo. Suga obteve quase quatro vezes mais votos do que Kishida na votação do partido.
Um ano depois, após Suga ser forçado a renunciar e Kishida concorrer novamente pela liderança do partido, Abe, que liderava a maior – e mais à direita – facção do PLD no Parlamento, escolheu um outro sucessor. Somente após Sanae Takaichi fracassar em obter votos suficientes em primeiro turno, Abe apoiou Kishida, que finalmente venceu.
Kishida começou seu mandato tentando se distinguir em relação a Abe, apresentando um “novo capitalismo” como alternativa à bem conhecida plataforma econômica de Abe, apelidada de “abeconomia”. Kishida afirmou que pretendia reduzir a desigualdade de renda e propôs aumentar certos impostos.
Desde então, o premiê japonês recuou dessa retórica e pareceu aceitar os clamores de Abe por dobrar o gasto em defesa e emendar a Constituição.
Ainda assim, analistas veem sinais de que Kishida tenta encontrar a própria personalidade. No mês passado, fazendo o discurso de abertura de um fórum de segurança organizado em Cingapura, ele notou que a Alemanha anunciou que elevará seu orçamento de defesa para 2% de seu PIB – uma meta que Abe almejou para o Japão.
Mas Kishida não citou nenhum número e, em vez disso, prometeu um “aumento substancial”. Além disso, ele afirmou que o Japão “procederá dentro do escopo da nossa Constituição”.
Yuki Tatsumi, diretora do departamento japonês do Stimson Center, em Washington, disse ver Kishida “recuando em relação a alguns dos pontos que Abe lhe havia imposto perante a opinião pública”.
Já na quinta feira, Kishida, referindo-se aos gastos com a defesa, disse que “devemos ser realistas e concretos nos nossos debates, mas, ao mesmo tempo, não devemos nos pautar pelos números”.
A realidade econômica pode dificultar a possibilidade de se definir metas drásticas. Com a inflação aumentando, o iene em desvalorização, as infecções pelo coronavírus em alta e, no longo prazo, o envelhecimento da população e a queda na natalidade, talvez Kishida descubra que não tem recursos para arcar com todas as prioridades do governo.
O tradicional ritmo da mudança no Japão pode estar do lado de Kishida. A formação de um consenso é valorizada e o progresso gradual é a norma, e não a transformação radical.
”Foi uma evolução lenta ao longo do tempo. O desgaste cada vez maior à segurança japonesa, causado por Coreia do Norte e China, tornou o público e os políticos mais conscientes da necessidade de se fazer mais”, disse Jeffrey Hornung, analista político da Rand Corporation, especializado em segurança e política externa do Japão. “Se Kishida seguir avançando com vagar e firmeza, acho que ele ficará bem.”