Após tanta especulação a respeito de parecer que os meios de comunicação dos EUA vinham apenas repetindo ecos, um júri decidiu de fato abrir um processo criminal contra o 45.º presidente americano. Isto é – definindo com um termo usado até a exaustão no fim do mandato de Donald Trump – histórico. Nenhum ex-presidente jamais tinha sido indiciado antes. E este não será o único indiciamento que Trump encarará.
Para outro político, isso poderia sinalizar o fim de sua carreira política. Mas no caso de Trump, a dúvida é o quanto essa acusação servirá como combustível para um movimento que parecia enfraquecer. Trump tem levantado recursos de campanha há semanas valendo-se de seu indiciamento, que, no dia 18, ele previu nas redes sociais estar a caminho. Resultou que essa postagem foi uma de suas declarações mais acuradas.
Se Trump cometeu algum crime, seria errado evitar processá-lo somente porque isso colocaria pressão sobre instituições de governo dos EUA. Outros países processaram com sucesso ex-presidentes e ex-premiês: lembre-se de Silvio Berlusconi, na Itália, ou Nicolas Sarkozy, na França. Os EUA não deveriam endossar a visão de Richard Nixon de que se um presidente – ou candidato à presidência – comete o delito a violação não existe.
Mas tratar um ex-presidente como um cidadão qualquer é uma faca de dois gumes. Procuradores como o promotor de Justiça de Manhattan possuem critério e arbítrio para decidir que casos investigam. Eles devem levar em conta a gravidade do caso, a probabilidade de garantir uma condenação e o interesse público no processo. O último elemento é o mais contencioso. Aproximadamente metade do público americano tem total interesse em responsabilizar Trump; a outra metade crê que ele é vítima dos promotores e dificilmente percebe a decisão da corte de ir adiante com o julgamento como imparcial.
Despesas jurídicas
O que dizer, então, dos argumentos jurídicos? As suspeitas específicas contra Trump só serão conhecidas quando ele for acusado formalmente, mas os fatos são os seguintes: na campanha para a eleição presidencial de 2016, o advogado de Trump organizou o pagamento de uma atriz de filmes pornôs para ela se calar a respeito de uma suposta aventura amorosa ocorrida uma década antes; a operação cala-boca ocorreu pouco antes da eleição de 2016, e o pagamento foi descrito nos registros financeiros da Organização Trump como “despesas jurídicas”; o pagamento foi feito pelo advogado de Trump, que foi ressarcido posteriormente por ele.
No passado, republicanos poderiam ter considerado esse tipo de comportamento inaceitável: uma geração atrás, muitos dos que atualmente acham que Trump está sendo perseguido injustamente argumentaram entusiasticamente em favor da remoção de Bill Clinton da Casa Branca em razão de um caso extraconjugal. Mas alguns democratas, reconhecidamente um número diminuto, conseguem sustentar a posição inversa: de que o impeachment de Clinton foi injusto, apesar de o caso da Promotoria do Estado de Nova York contra Trump ser correto.
Hipocrisia
Mas ética e hipocrisia não estarão em julgamento em Manhattan. O argumento da acusação é que o pagamento de US$ 131 mil (R$ 663 mil) para Stephanie Clifford (mais conhecida como Stormy Daniels) violou regras de financiamento e contabilidade de campanha.
As leis que regem financiamento de campanhas eleitorais nos EUA são muito mais permissivas do que na maioria das democracias ocidentais, e sua aplicação é rara e esporádica. Neste caso, espera-se que Trump seja acusado de ter feito uma doação para a própria campanha, o que é permitido, mas sem declarar, o que provavelmente não é.
Isso não significa que a acusação contra Trump seja inverídica. Sim, seu então advogado, Michael Cohen, já se declarou culpado por violar regras de financiamento de campanha. Mas a equipe de Trump supostamente argumentará que qualquer delito foi somente de Cohen (e isso também aponta para o fato de Cohen ter se declarado culpado por mentir ao Congresso).
E há ainda a teoria jurídica segundo a qual o caso tende a transcorrer. Classificar pagamentos em contas como despesas jurídicas, o outro argumento da acusação, é um delito menor. Mas os promotores argumentarão que esse delito menor tornou possível a violação das regras federais e estaduais de financiamento de campanha. Vincular as duas acusações dessa maneira é novidade. O juiz pode decidir pelo encerramento do caso.
O processo contra Trump no Condado de Fulton, Geórgia, onde ele é acusado de interferir nos resultados da eleição, parece muito mais consistente.
Críticos de Trump que temem a possibilidade de ele concorrer à presidência novamente mencionam, nesse ponto, os arranjos sobre os impostos de Al Capone. Isso é meio injusto para Trump, que não é afeito a assassinar rivais – e também não dá conta da maneira que o processo de indicação eleitoral funciona.
Se Trump for considerado culpado, ele ainda poderá concorrer para a presidência. E se for considerado inocente, ele alegará que foi absolvido e adicionará o episódio à lista de acusações das quais se livrou.
‘Vítima’
Nenhum desses desfechos alteraria necessariamente as chances de Trump vencer a eleição geral: poucos americanos ainda não têm opinião formada sobre ele. Mas transformar esse caso em uma prova de fogo para outros candidatos o ajudaria a prevalecer nas primárias republicanas.
Afinal, será difícil para outros candidatos concorrerem com uma pessoa que, todos concordam, é vítima de um processo judicial motivado politicamente.
Antes de Trump ser eleito, em 2016, The Economist previu que ele seria um péssimo presidente. O fato de ele ter atiçado a multidão em Washington em 6 de janeiro de 2021 deveria ser argumento suficiente para desqualificá-lo. Trump segue sendo uma ameaça não apenas para os EUA, mas para todo o Ocidente. Mas isso não deve nublar o julgamento sobre o caso.
Qualquer um pensando que agora é a hora que Trump finalmente receberá o castigo que merece se decepcionará dolorosamente. Se for para Trump ser processado, que seja por algo que não possa ser classificado como uma tecnicalidade e em um campo em que a lei seja mais clara. O processo na Promotoria de Manhattan parece um erro. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO