Protestos no Irã: como a repressão e a crise econômica turbinam a fúria contra o regime


Protestos, que completaram um mês nesta semana já deixaram ao menos 240 mortos e 8 mil detidos no país

Por Luiz Raatz e Luiz Henrique Gomes
Atualização:

Os protestos contra a morte da jovem curda Mahsa Amini no Irã completaram um mês nesta semana sem sinal de que a mobilização, uma das maiores dos últimos anos contra o regime teocrático xiita, estejam perdendo força. O agravamento da crise econômica provocada pelas sanções americanas impostas ao país e a insatisfação contra o regime, principalmente das camadas mais jovens da população, tem alimentado a fúria dos manifestantes que tomam as ruas. Os protestos já deixaram ao menos 240 mortos e 8 mil detidos no país, segundo a Anistia Internacional.

Desde que os protestos começaram no dia 16 de setembro, Samanta, uma iraniana que reside na Itália há mais de uma década, tem a sensação de que o país em que ela nasceu vive uma guerra.

“É uma coisa inacreditável o que estão fazendo. Eles matam os jovens nas ruas. Espancam as mulheres até a morte. Estupram prisioneiros”, relatou ao Estadão antes de uma viagem a Teerã no domingo, 16, para encontrar familiares. “Agora não é repressão, é uma guerra”.

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Ela e o marido, Jan, contam que os relatos que vêm do Irã indicam que as manifestações atuais têm algumas diferenças importantes em relação aos protestos contra o custo de vida que abalaram o país entre 2017 e 2018.

Embora a crise econômica seja comum nos dois casos, o cenário atual é muito pior e o desespero das pessoas, crescente. “O povo iraniano está cheio de não ter nenhum direito e nem liberdades. Acrescenta-se a isso os problemas econômicos que as pessoas ainda têm de conviver”, disse Samanta.

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Frustração coletiva

Para o professor da Universidade de Londres, Karabekir Akkoyunlu, especialista em Oriente Médio, os protestos são resultados de uma frustração coletiva gerada pela falta das liberdades individuais e deterioração econômica do país. Esses dois fatores, diz ele, estão intimamente relacionados. Isso explica por que os protestos não retrocederam com a repressão e por que mais setores do país passaram a aderir a eles nas últimas semanas.

“Depois de anos tentando mudar o sistema por dentro, muitos iranianos desistiram da ideia de reforma”, resume Akkoyunlu.

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Na semana passada, por exemplo, trabalhadores do setor petrolífero entraram em greve e profissionais liberais como médicos e advogados começaram a fazer críticas abertas ao regime. Universidades e setores comerciais do país também estão parados.

Iranianos protestam contra a morte de Mahsa Amini em Teerã  Foto: AP / AP

Sanções e pobreza

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Um ponto crucial para a piora econômica do Irã foi o colapso do acordo nuclear com os Estados Unidos, no governo de Donald Trump. As sanções que se seguiram ao fim do pacto agravaram sensivelmente os problemas econômicos do país.

O PIB caiu pela metade entre 2017 e 2020. A inflação anual, que em 2016 tinha recuado abaixo de 10%, voltou a subir e fechou 2021 com uma alta de 43,4%, segundo o Banco Central do Irã. Nos últimos cinco anos, o valor da moeda iraniana, o rial, caiu quase 90%. Em 2017, um dólar americano no mercado aberto valia pouco menos de 40 mil riais. Hoje, vale mais de 330 mil riais.

Com isso, o custo de vida disparou. Pão, carne e legumes estão cada vez mais caros. Os preços dos remédios também dispararam.

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“Muitos iranianos estão consumindo menos carne, comprando menos alimentos especiais e estão até se preocupando com o custo de alimentos básicos, como arroz e pão”, disse Esfyandar Batmanghlidj, do Conselho Europeu de Relações Exteriores. ”Embora o Irã não esteja enfrentando uma crise de fome, a perda de poder de compra é uma espécie de crise humanitária.”

Jovens na vanguarda

A participação dos jovens nos protestos, contam Jan e Samanta, também é maior que nos protestos anteriores. Além disso, os homens têm se unido às mulheres em suas demandas, algo raro numa sociedade como a do Irã.

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“Nos últimos quatro anos houve manifestações, mas desta vez elas são diferentes. Agora, mais mulheres estão participando e demandando sua liberdade. Além disso, os jovens estão mais ativos em comparação com anos anteriores”, diz Jan. “Mais da metade dos manifestantes são mulheres jovens entre 17 e 25 anos e o restante são meninos jovens que as apoiam”

Especialistas que acompanham de perto o Irã também veem com otimismo a adesão dos jovens às manifestações. “O fato de os homens terem se unido às mulheres em sua batalha épica pela igualdade, e de que os jovens tenham dado as mãos para criar um amanhã melhor, é o motivo do número notável de manifestantes nas cidades e vilarejos. todo o país”, disse Abbas Milani, diretor de estudos iranianos da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos.

Outra questão que diferencia os protestos deste ano está relacionada aos curdos – etnia a qual Mahsa Amini fazia parte e historicamente marginalizada no Irã e nos países vizinhos onde são minoria. “Os protestos foram muito mais intensos nas cidades curdas e encontraram uma resposta violenta do Estado. Sua escalada pode ter efeitos no Iraque e na Turquia”, acrescentou Akkoyunlu.

Polícia da Moral

As manifestações no país foram desencadeadas pela morte da morte da jovem Mahsa Amini, em 16 de setembro, após ser presa pela polícia moral do Irã acusada de não usar o véu corretamente sobre os cabelos. Milhares de mulheres do país, sobretudo jovens, foram às ruas e queimaram as vestes numa das maiores demonstrações de desafio ao governo islâmico e reivindicação de mais liberdades individuais.

Os gritos ouvidos nas ruas carregam os lemas “Mulheres, Vida, Liberdade” (ou Zan, Zendeghi, Azadi, em árabe) e “Morte ao ditador”, em referência ao aiatolá Ali Khamenei, líder supremo do Irã.

Em resposta, forças de segurança do país atiraram à luz do dia contra iranianos, como mostram vídeos espalhados nas redes sociais e checados por diversas organizações e jornais ocidentais, como o The New York Times. Também crescem as dúvidas sobre o envolvimento do governo no incêndio na prisão de Evin, onde centenas de dissidentes e prisioneiros políticos estão detidos, com tiros e explosões ouvidas nas proximidades.

Entre os mortos pela repressão, estão duas adolescentes iranianas de 16 anos que aderiram às manifestações identificadas como Nika Shakarami e Sarina Esmailzadeh. Os corpos das duas foram encontrados com marcas de espancamento. Segundo o Times, o crânio de uma estava esmagado; a outra estava com a cabeça quebrada por golpes de bastão. As famílias e entidades de direitos humanos atribuem a violência às forças de segurança.

A violência, no entanto, não detêm os protestos e não os descaracteriza. As adolescentes Nika e Sarina, por exemplo, se tornaram símbolos em cartazes espalhados pelas mobilizações – assim como Mahsa Amini, cuja morte despertou os protestos. Ao contrário, o que se vê no Irã é uma coragem cada vez maior de desafiar o governo. “Tudo começou com as mulheres, e agora meninas adolescentes estão saindo da escola sem véus”, contou Samanta.

Nas últimas décadas, o Irã viveu uma série de protestos contra o regime islâmico que resultaram em centenas de mortes. O primeiro deles ocorreu em 1999, depois que um jornal reformista foi fechado no país. Protagonizado por estudantes universitários a favor das reformas, os protestos deixaram cerca de 4 mortes e mais de 1,5 mil pessoas presas, ainda de acordo com o United States Institute of Peace.

Em 2009, milhares de iranianos saíram às ruas para protestar contra a derrota do reformista Mir-Hossein Mousavi nas eleições daquele ano para o conservador Mahmoud Ahmadinejad. Na ocasião, 100 pessoas morreram e 4 mil foram presas, ainda de acordo com o instituto americano. Durante o chamado Movimento Verde, a revolta durou mais de seis meses e foram os maiores desafios vividos até então pelo governo islâmico.

De 2017 em diante, os protestos contra o governo islâmico começaram a ser cada vez mais frequentes no Irã e ganharam adesão ano após ano, à medida em que a economia foi piorando. Uma reportagem da agência de notícias Reuters estima mais de 1,5 mil manifestantes mortos, de acordo com relatórios do Ministério do Interior iraniano obtidos pelos jornalistas.

Legitimidade em xeque

Para Akkoyunlu, essas manifestações, apesar de suprimidas, forjaram o contexto sociopolítico atual – menos reformista e mais radical, demandando a queda do regime islâmico. “O Irã não chegou aqui da noite para o dia”, explicou. “Como o processo democrático foi suprimido (nos protestos anteriores), a legitimidade popular do regime sofreu um golpe”.

Foi suprimindo esses apelos por mudanças graduais que as demandas se tornaram mais radicalizadas

Karabekir Akkoyunlu, professor da Universidade de Londres

“No passado, as demandas sociais podiam ser parcialmente canalizadas por meio de eleições. Isso proporcionou legitimidade popular muito necessária ao sistema. Mas como os sucessivos governos falharam em cumprir as promessas básicas da revolução de 1979 – ou seja, direitos políticos, prosperidade econômica e justiça social – a insatisfação com todo o sistema cresceu”, acrescentou.

Novas estratégias

Desta vez, os manifestantes voltam às ruas do Irã com estratégias diferentes para escapar da repressão e da censura. De acordo com o serviço persa da BBC, os manifestantes se organizam de maneira espalhada na cidade, para dificultar uma ação centralizada do governo. As manifestações são convocadas pelo Instagram ou outros aplicativos, acessados através de VPNs (redes privadas de internet).

“As informações também chegam por canais de TV de outros países ou rádios piratas”, disse o iraniano Jan. O casal se informa dos protestos através da imprensa do Oriente Médio e amigos e familiares nos momentos em que estes conseguem acesso à internet.

À distância, Jan e Samanta nutrem o desejo de mudança. “Acredito que mais gente deve participar dos protestos para derrubar o regime, porque o governo não vai interromper a repressão contra os protestos. Quanto mais as pessoas participarem, maior a chance de o povo sair vencedor”, concluiu Jan.

Os protestos contra a morte da jovem curda Mahsa Amini no Irã completaram um mês nesta semana sem sinal de que a mobilização, uma das maiores dos últimos anos contra o regime teocrático xiita, estejam perdendo força. O agravamento da crise econômica provocada pelas sanções americanas impostas ao país e a insatisfação contra o regime, principalmente das camadas mais jovens da população, tem alimentado a fúria dos manifestantes que tomam as ruas. Os protestos já deixaram ao menos 240 mortos e 8 mil detidos no país, segundo a Anistia Internacional.

Desde que os protestos começaram no dia 16 de setembro, Samanta, uma iraniana que reside na Itália há mais de uma década, tem a sensação de que o país em que ela nasceu vive uma guerra.

“É uma coisa inacreditável o que estão fazendo. Eles matam os jovens nas ruas. Espancam as mulheres até a morte. Estupram prisioneiros”, relatou ao Estadão antes de uma viagem a Teerã no domingo, 16, para encontrar familiares. “Agora não é repressão, é uma guerra”.

Ela e o marido, Jan, contam que os relatos que vêm do Irã indicam que as manifestações atuais têm algumas diferenças importantes em relação aos protestos contra o custo de vida que abalaram o país entre 2017 e 2018.

Embora a crise econômica seja comum nos dois casos, o cenário atual é muito pior e o desespero das pessoas, crescente. “O povo iraniano está cheio de não ter nenhum direito e nem liberdades. Acrescenta-se a isso os problemas econômicos que as pessoas ainda têm de conviver”, disse Samanta.

Frustração coletiva

Para o professor da Universidade de Londres, Karabekir Akkoyunlu, especialista em Oriente Médio, os protestos são resultados de uma frustração coletiva gerada pela falta das liberdades individuais e deterioração econômica do país. Esses dois fatores, diz ele, estão intimamente relacionados. Isso explica por que os protestos não retrocederam com a repressão e por que mais setores do país passaram a aderir a eles nas últimas semanas.

“Depois de anos tentando mudar o sistema por dentro, muitos iranianos desistiram da ideia de reforma”, resume Akkoyunlu.

Na semana passada, por exemplo, trabalhadores do setor petrolífero entraram em greve e profissionais liberais como médicos e advogados começaram a fazer críticas abertas ao regime. Universidades e setores comerciais do país também estão parados.

Iranianos protestam contra a morte de Mahsa Amini em Teerã  Foto: AP / AP

Sanções e pobreza

Um ponto crucial para a piora econômica do Irã foi o colapso do acordo nuclear com os Estados Unidos, no governo de Donald Trump. As sanções que se seguiram ao fim do pacto agravaram sensivelmente os problemas econômicos do país.

O PIB caiu pela metade entre 2017 e 2020. A inflação anual, que em 2016 tinha recuado abaixo de 10%, voltou a subir e fechou 2021 com uma alta de 43,4%, segundo o Banco Central do Irã. Nos últimos cinco anos, o valor da moeda iraniana, o rial, caiu quase 90%. Em 2017, um dólar americano no mercado aberto valia pouco menos de 40 mil riais. Hoje, vale mais de 330 mil riais.

Com isso, o custo de vida disparou. Pão, carne e legumes estão cada vez mais caros. Os preços dos remédios também dispararam.

“Muitos iranianos estão consumindo menos carne, comprando menos alimentos especiais e estão até se preocupando com o custo de alimentos básicos, como arroz e pão”, disse Esfyandar Batmanghlidj, do Conselho Europeu de Relações Exteriores. ”Embora o Irã não esteja enfrentando uma crise de fome, a perda de poder de compra é uma espécie de crise humanitária.”

Jovens na vanguarda

A participação dos jovens nos protestos, contam Jan e Samanta, também é maior que nos protestos anteriores. Além disso, os homens têm se unido às mulheres em suas demandas, algo raro numa sociedade como a do Irã.

“Nos últimos quatro anos houve manifestações, mas desta vez elas são diferentes. Agora, mais mulheres estão participando e demandando sua liberdade. Além disso, os jovens estão mais ativos em comparação com anos anteriores”, diz Jan. “Mais da metade dos manifestantes são mulheres jovens entre 17 e 25 anos e o restante são meninos jovens que as apoiam”

Especialistas que acompanham de perto o Irã também veem com otimismo a adesão dos jovens às manifestações. “O fato de os homens terem se unido às mulheres em sua batalha épica pela igualdade, e de que os jovens tenham dado as mãos para criar um amanhã melhor, é o motivo do número notável de manifestantes nas cidades e vilarejos. todo o país”, disse Abbas Milani, diretor de estudos iranianos da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos.

Outra questão que diferencia os protestos deste ano está relacionada aos curdos – etnia a qual Mahsa Amini fazia parte e historicamente marginalizada no Irã e nos países vizinhos onde são minoria. “Os protestos foram muito mais intensos nas cidades curdas e encontraram uma resposta violenta do Estado. Sua escalada pode ter efeitos no Iraque e na Turquia”, acrescentou Akkoyunlu.

Polícia da Moral

As manifestações no país foram desencadeadas pela morte da morte da jovem Mahsa Amini, em 16 de setembro, após ser presa pela polícia moral do Irã acusada de não usar o véu corretamente sobre os cabelos. Milhares de mulheres do país, sobretudo jovens, foram às ruas e queimaram as vestes numa das maiores demonstrações de desafio ao governo islâmico e reivindicação de mais liberdades individuais.

Os gritos ouvidos nas ruas carregam os lemas “Mulheres, Vida, Liberdade” (ou Zan, Zendeghi, Azadi, em árabe) e “Morte ao ditador”, em referência ao aiatolá Ali Khamenei, líder supremo do Irã.

Em resposta, forças de segurança do país atiraram à luz do dia contra iranianos, como mostram vídeos espalhados nas redes sociais e checados por diversas organizações e jornais ocidentais, como o The New York Times. Também crescem as dúvidas sobre o envolvimento do governo no incêndio na prisão de Evin, onde centenas de dissidentes e prisioneiros políticos estão detidos, com tiros e explosões ouvidas nas proximidades.

Entre os mortos pela repressão, estão duas adolescentes iranianas de 16 anos que aderiram às manifestações identificadas como Nika Shakarami e Sarina Esmailzadeh. Os corpos das duas foram encontrados com marcas de espancamento. Segundo o Times, o crânio de uma estava esmagado; a outra estava com a cabeça quebrada por golpes de bastão. As famílias e entidades de direitos humanos atribuem a violência às forças de segurança.

A violência, no entanto, não detêm os protestos e não os descaracteriza. As adolescentes Nika e Sarina, por exemplo, se tornaram símbolos em cartazes espalhados pelas mobilizações – assim como Mahsa Amini, cuja morte despertou os protestos. Ao contrário, o que se vê no Irã é uma coragem cada vez maior de desafiar o governo. “Tudo começou com as mulheres, e agora meninas adolescentes estão saindo da escola sem véus”, contou Samanta.

Nas últimas décadas, o Irã viveu uma série de protestos contra o regime islâmico que resultaram em centenas de mortes. O primeiro deles ocorreu em 1999, depois que um jornal reformista foi fechado no país. Protagonizado por estudantes universitários a favor das reformas, os protestos deixaram cerca de 4 mortes e mais de 1,5 mil pessoas presas, ainda de acordo com o United States Institute of Peace.

Em 2009, milhares de iranianos saíram às ruas para protestar contra a derrota do reformista Mir-Hossein Mousavi nas eleições daquele ano para o conservador Mahmoud Ahmadinejad. Na ocasião, 100 pessoas morreram e 4 mil foram presas, ainda de acordo com o instituto americano. Durante o chamado Movimento Verde, a revolta durou mais de seis meses e foram os maiores desafios vividos até então pelo governo islâmico.

De 2017 em diante, os protestos contra o governo islâmico começaram a ser cada vez mais frequentes no Irã e ganharam adesão ano após ano, à medida em que a economia foi piorando. Uma reportagem da agência de notícias Reuters estima mais de 1,5 mil manifestantes mortos, de acordo com relatórios do Ministério do Interior iraniano obtidos pelos jornalistas.

Legitimidade em xeque

Para Akkoyunlu, essas manifestações, apesar de suprimidas, forjaram o contexto sociopolítico atual – menos reformista e mais radical, demandando a queda do regime islâmico. “O Irã não chegou aqui da noite para o dia”, explicou. “Como o processo democrático foi suprimido (nos protestos anteriores), a legitimidade popular do regime sofreu um golpe”.

Foi suprimindo esses apelos por mudanças graduais que as demandas se tornaram mais radicalizadas

Karabekir Akkoyunlu, professor da Universidade de Londres

“No passado, as demandas sociais podiam ser parcialmente canalizadas por meio de eleições. Isso proporcionou legitimidade popular muito necessária ao sistema. Mas como os sucessivos governos falharam em cumprir as promessas básicas da revolução de 1979 – ou seja, direitos políticos, prosperidade econômica e justiça social – a insatisfação com todo o sistema cresceu”, acrescentou.

Novas estratégias

Desta vez, os manifestantes voltam às ruas do Irã com estratégias diferentes para escapar da repressão e da censura. De acordo com o serviço persa da BBC, os manifestantes se organizam de maneira espalhada na cidade, para dificultar uma ação centralizada do governo. As manifestações são convocadas pelo Instagram ou outros aplicativos, acessados através de VPNs (redes privadas de internet).

“As informações também chegam por canais de TV de outros países ou rádios piratas”, disse o iraniano Jan. O casal se informa dos protestos através da imprensa do Oriente Médio e amigos e familiares nos momentos em que estes conseguem acesso à internet.

À distância, Jan e Samanta nutrem o desejo de mudança. “Acredito que mais gente deve participar dos protestos para derrubar o regime, porque o governo não vai interromper a repressão contra os protestos. Quanto mais as pessoas participarem, maior a chance de o povo sair vencedor”, concluiu Jan.

Os protestos contra a morte da jovem curda Mahsa Amini no Irã completaram um mês nesta semana sem sinal de que a mobilização, uma das maiores dos últimos anos contra o regime teocrático xiita, estejam perdendo força. O agravamento da crise econômica provocada pelas sanções americanas impostas ao país e a insatisfação contra o regime, principalmente das camadas mais jovens da população, tem alimentado a fúria dos manifestantes que tomam as ruas. Os protestos já deixaram ao menos 240 mortos e 8 mil detidos no país, segundo a Anistia Internacional.

Desde que os protestos começaram no dia 16 de setembro, Samanta, uma iraniana que reside na Itália há mais de uma década, tem a sensação de que o país em que ela nasceu vive uma guerra.

“É uma coisa inacreditável o que estão fazendo. Eles matam os jovens nas ruas. Espancam as mulheres até a morte. Estupram prisioneiros”, relatou ao Estadão antes de uma viagem a Teerã no domingo, 16, para encontrar familiares. “Agora não é repressão, é uma guerra”.

Ela e o marido, Jan, contam que os relatos que vêm do Irã indicam que as manifestações atuais têm algumas diferenças importantes em relação aos protestos contra o custo de vida que abalaram o país entre 2017 e 2018.

Embora a crise econômica seja comum nos dois casos, o cenário atual é muito pior e o desespero das pessoas, crescente. “O povo iraniano está cheio de não ter nenhum direito e nem liberdades. Acrescenta-se a isso os problemas econômicos que as pessoas ainda têm de conviver”, disse Samanta.

Frustração coletiva

Para o professor da Universidade de Londres, Karabekir Akkoyunlu, especialista em Oriente Médio, os protestos são resultados de uma frustração coletiva gerada pela falta das liberdades individuais e deterioração econômica do país. Esses dois fatores, diz ele, estão intimamente relacionados. Isso explica por que os protestos não retrocederam com a repressão e por que mais setores do país passaram a aderir a eles nas últimas semanas.

“Depois de anos tentando mudar o sistema por dentro, muitos iranianos desistiram da ideia de reforma”, resume Akkoyunlu.

Na semana passada, por exemplo, trabalhadores do setor petrolífero entraram em greve e profissionais liberais como médicos e advogados começaram a fazer críticas abertas ao regime. Universidades e setores comerciais do país também estão parados.

Iranianos protestam contra a morte de Mahsa Amini em Teerã  Foto: AP / AP

Sanções e pobreza

Um ponto crucial para a piora econômica do Irã foi o colapso do acordo nuclear com os Estados Unidos, no governo de Donald Trump. As sanções que se seguiram ao fim do pacto agravaram sensivelmente os problemas econômicos do país.

O PIB caiu pela metade entre 2017 e 2020. A inflação anual, que em 2016 tinha recuado abaixo de 10%, voltou a subir e fechou 2021 com uma alta de 43,4%, segundo o Banco Central do Irã. Nos últimos cinco anos, o valor da moeda iraniana, o rial, caiu quase 90%. Em 2017, um dólar americano no mercado aberto valia pouco menos de 40 mil riais. Hoje, vale mais de 330 mil riais.

Com isso, o custo de vida disparou. Pão, carne e legumes estão cada vez mais caros. Os preços dos remédios também dispararam.

“Muitos iranianos estão consumindo menos carne, comprando menos alimentos especiais e estão até se preocupando com o custo de alimentos básicos, como arroz e pão”, disse Esfyandar Batmanghlidj, do Conselho Europeu de Relações Exteriores. ”Embora o Irã não esteja enfrentando uma crise de fome, a perda de poder de compra é uma espécie de crise humanitária.”

Jovens na vanguarda

A participação dos jovens nos protestos, contam Jan e Samanta, também é maior que nos protestos anteriores. Além disso, os homens têm se unido às mulheres em suas demandas, algo raro numa sociedade como a do Irã.

“Nos últimos quatro anos houve manifestações, mas desta vez elas são diferentes. Agora, mais mulheres estão participando e demandando sua liberdade. Além disso, os jovens estão mais ativos em comparação com anos anteriores”, diz Jan. “Mais da metade dos manifestantes são mulheres jovens entre 17 e 25 anos e o restante são meninos jovens que as apoiam”

Especialistas que acompanham de perto o Irã também veem com otimismo a adesão dos jovens às manifestações. “O fato de os homens terem se unido às mulheres em sua batalha épica pela igualdade, e de que os jovens tenham dado as mãos para criar um amanhã melhor, é o motivo do número notável de manifestantes nas cidades e vilarejos. todo o país”, disse Abbas Milani, diretor de estudos iranianos da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos.

Outra questão que diferencia os protestos deste ano está relacionada aos curdos – etnia a qual Mahsa Amini fazia parte e historicamente marginalizada no Irã e nos países vizinhos onde são minoria. “Os protestos foram muito mais intensos nas cidades curdas e encontraram uma resposta violenta do Estado. Sua escalada pode ter efeitos no Iraque e na Turquia”, acrescentou Akkoyunlu.

Polícia da Moral

As manifestações no país foram desencadeadas pela morte da morte da jovem Mahsa Amini, em 16 de setembro, após ser presa pela polícia moral do Irã acusada de não usar o véu corretamente sobre os cabelos. Milhares de mulheres do país, sobretudo jovens, foram às ruas e queimaram as vestes numa das maiores demonstrações de desafio ao governo islâmico e reivindicação de mais liberdades individuais.

Os gritos ouvidos nas ruas carregam os lemas “Mulheres, Vida, Liberdade” (ou Zan, Zendeghi, Azadi, em árabe) e “Morte ao ditador”, em referência ao aiatolá Ali Khamenei, líder supremo do Irã.

Em resposta, forças de segurança do país atiraram à luz do dia contra iranianos, como mostram vídeos espalhados nas redes sociais e checados por diversas organizações e jornais ocidentais, como o The New York Times. Também crescem as dúvidas sobre o envolvimento do governo no incêndio na prisão de Evin, onde centenas de dissidentes e prisioneiros políticos estão detidos, com tiros e explosões ouvidas nas proximidades.

Entre os mortos pela repressão, estão duas adolescentes iranianas de 16 anos que aderiram às manifestações identificadas como Nika Shakarami e Sarina Esmailzadeh. Os corpos das duas foram encontrados com marcas de espancamento. Segundo o Times, o crânio de uma estava esmagado; a outra estava com a cabeça quebrada por golpes de bastão. As famílias e entidades de direitos humanos atribuem a violência às forças de segurança.

A violência, no entanto, não detêm os protestos e não os descaracteriza. As adolescentes Nika e Sarina, por exemplo, se tornaram símbolos em cartazes espalhados pelas mobilizações – assim como Mahsa Amini, cuja morte despertou os protestos. Ao contrário, o que se vê no Irã é uma coragem cada vez maior de desafiar o governo. “Tudo começou com as mulheres, e agora meninas adolescentes estão saindo da escola sem véus”, contou Samanta.

Nas últimas décadas, o Irã viveu uma série de protestos contra o regime islâmico que resultaram em centenas de mortes. O primeiro deles ocorreu em 1999, depois que um jornal reformista foi fechado no país. Protagonizado por estudantes universitários a favor das reformas, os protestos deixaram cerca de 4 mortes e mais de 1,5 mil pessoas presas, ainda de acordo com o United States Institute of Peace.

Em 2009, milhares de iranianos saíram às ruas para protestar contra a derrota do reformista Mir-Hossein Mousavi nas eleições daquele ano para o conservador Mahmoud Ahmadinejad. Na ocasião, 100 pessoas morreram e 4 mil foram presas, ainda de acordo com o instituto americano. Durante o chamado Movimento Verde, a revolta durou mais de seis meses e foram os maiores desafios vividos até então pelo governo islâmico.

De 2017 em diante, os protestos contra o governo islâmico começaram a ser cada vez mais frequentes no Irã e ganharam adesão ano após ano, à medida em que a economia foi piorando. Uma reportagem da agência de notícias Reuters estima mais de 1,5 mil manifestantes mortos, de acordo com relatórios do Ministério do Interior iraniano obtidos pelos jornalistas.

Legitimidade em xeque

Para Akkoyunlu, essas manifestações, apesar de suprimidas, forjaram o contexto sociopolítico atual – menos reformista e mais radical, demandando a queda do regime islâmico. “O Irã não chegou aqui da noite para o dia”, explicou. “Como o processo democrático foi suprimido (nos protestos anteriores), a legitimidade popular do regime sofreu um golpe”.

Foi suprimindo esses apelos por mudanças graduais que as demandas se tornaram mais radicalizadas

Karabekir Akkoyunlu, professor da Universidade de Londres

“No passado, as demandas sociais podiam ser parcialmente canalizadas por meio de eleições. Isso proporcionou legitimidade popular muito necessária ao sistema. Mas como os sucessivos governos falharam em cumprir as promessas básicas da revolução de 1979 – ou seja, direitos políticos, prosperidade econômica e justiça social – a insatisfação com todo o sistema cresceu”, acrescentou.

Novas estratégias

Desta vez, os manifestantes voltam às ruas do Irã com estratégias diferentes para escapar da repressão e da censura. De acordo com o serviço persa da BBC, os manifestantes se organizam de maneira espalhada na cidade, para dificultar uma ação centralizada do governo. As manifestações são convocadas pelo Instagram ou outros aplicativos, acessados através de VPNs (redes privadas de internet).

“As informações também chegam por canais de TV de outros países ou rádios piratas”, disse o iraniano Jan. O casal se informa dos protestos através da imprensa do Oriente Médio e amigos e familiares nos momentos em que estes conseguem acesso à internet.

À distância, Jan e Samanta nutrem o desejo de mudança. “Acredito que mais gente deve participar dos protestos para derrubar o regime, porque o governo não vai interromper a repressão contra os protestos. Quanto mais as pessoas participarem, maior a chance de o povo sair vencedor”, concluiu Jan.

Os protestos contra a morte da jovem curda Mahsa Amini no Irã completaram um mês nesta semana sem sinal de que a mobilização, uma das maiores dos últimos anos contra o regime teocrático xiita, estejam perdendo força. O agravamento da crise econômica provocada pelas sanções americanas impostas ao país e a insatisfação contra o regime, principalmente das camadas mais jovens da população, tem alimentado a fúria dos manifestantes que tomam as ruas. Os protestos já deixaram ao menos 240 mortos e 8 mil detidos no país, segundo a Anistia Internacional.

Desde que os protestos começaram no dia 16 de setembro, Samanta, uma iraniana que reside na Itália há mais de uma década, tem a sensação de que o país em que ela nasceu vive uma guerra.

“É uma coisa inacreditável o que estão fazendo. Eles matam os jovens nas ruas. Espancam as mulheres até a morte. Estupram prisioneiros”, relatou ao Estadão antes de uma viagem a Teerã no domingo, 16, para encontrar familiares. “Agora não é repressão, é uma guerra”.

Ela e o marido, Jan, contam que os relatos que vêm do Irã indicam que as manifestações atuais têm algumas diferenças importantes em relação aos protestos contra o custo de vida que abalaram o país entre 2017 e 2018.

Embora a crise econômica seja comum nos dois casos, o cenário atual é muito pior e o desespero das pessoas, crescente. “O povo iraniano está cheio de não ter nenhum direito e nem liberdades. Acrescenta-se a isso os problemas econômicos que as pessoas ainda têm de conviver”, disse Samanta.

Frustração coletiva

Para o professor da Universidade de Londres, Karabekir Akkoyunlu, especialista em Oriente Médio, os protestos são resultados de uma frustração coletiva gerada pela falta das liberdades individuais e deterioração econômica do país. Esses dois fatores, diz ele, estão intimamente relacionados. Isso explica por que os protestos não retrocederam com a repressão e por que mais setores do país passaram a aderir a eles nas últimas semanas.

“Depois de anos tentando mudar o sistema por dentro, muitos iranianos desistiram da ideia de reforma”, resume Akkoyunlu.

Na semana passada, por exemplo, trabalhadores do setor petrolífero entraram em greve e profissionais liberais como médicos e advogados começaram a fazer críticas abertas ao regime. Universidades e setores comerciais do país também estão parados.

Iranianos protestam contra a morte de Mahsa Amini em Teerã  Foto: AP / AP

Sanções e pobreza

Um ponto crucial para a piora econômica do Irã foi o colapso do acordo nuclear com os Estados Unidos, no governo de Donald Trump. As sanções que se seguiram ao fim do pacto agravaram sensivelmente os problemas econômicos do país.

O PIB caiu pela metade entre 2017 e 2020. A inflação anual, que em 2016 tinha recuado abaixo de 10%, voltou a subir e fechou 2021 com uma alta de 43,4%, segundo o Banco Central do Irã. Nos últimos cinco anos, o valor da moeda iraniana, o rial, caiu quase 90%. Em 2017, um dólar americano no mercado aberto valia pouco menos de 40 mil riais. Hoje, vale mais de 330 mil riais.

Com isso, o custo de vida disparou. Pão, carne e legumes estão cada vez mais caros. Os preços dos remédios também dispararam.

“Muitos iranianos estão consumindo menos carne, comprando menos alimentos especiais e estão até se preocupando com o custo de alimentos básicos, como arroz e pão”, disse Esfyandar Batmanghlidj, do Conselho Europeu de Relações Exteriores. ”Embora o Irã não esteja enfrentando uma crise de fome, a perda de poder de compra é uma espécie de crise humanitária.”

Jovens na vanguarda

A participação dos jovens nos protestos, contam Jan e Samanta, também é maior que nos protestos anteriores. Além disso, os homens têm se unido às mulheres em suas demandas, algo raro numa sociedade como a do Irã.

“Nos últimos quatro anos houve manifestações, mas desta vez elas são diferentes. Agora, mais mulheres estão participando e demandando sua liberdade. Além disso, os jovens estão mais ativos em comparação com anos anteriores”, diz Jan. “Mais da metade dos manifestantes são mulheres jovens entre 17 e 25 anos e o restante são meninos jovens que as apoiam”

Especialistas que acompanham de perto o Irã também veem com otimismo a adesão dos jovens às manifestações. “O fato de os homens terem se unido às mulheres em sua batalha épica pela igualdade, e de que os jovens tenham dado as mãos para criar um amanhã melhor, é o motivo do número notável de manifestantes nas cidades e vilarejos. todo o país”, disse Abbas Milani, diretor de estudos iranianos da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos.

Outra questão que diferencia os protestos deste ano está relacionada aos curdos – etnia a qual Mahsa Amini fazia parte e historicamente marginalizada no Irã e nos países vizinhos onde são minoria. “Os protestos foram muito mais intensos nas cidades curdas e encontraram uma resposta violenta do Estado. Sua escalada pode ter efeitos no Iraque e na Turquia”, acrescentou Akkoyunlu.

Polícia da Moral

As manifestações no país foram desencadeadas pela morte da morte da jovem Mahsa Amini, em 16 de setembro, após ser presa pela polícia moral do Irã acusada de não usar o véu corretamente sobre os cabelos. Milhares de mulheres do país, sobretudo jovens, foram às ruas e queimaram as vestes numa das maiores demonstrações de desafio ao governo islâmico e reivindicação de mais liberdades individuais.

Os gritos ouvidos nas ruas carregam os lemas “Mulheres, Vida, Liberdade” (ou Zan, Zendeghi, Azadi, em árabe) e “Morte ao ditador”, em referência ao aiatolá Ali Khamenei, líder supremo do Irã.

Em resposta, forças de segurança do país atiraram à luz do dia contra iranianos, como mostram vídeos espalhados nas redes sociais e checados por diversas organizações e jornais ocidentais, como o The New York Times. Também crescem as dúvidas sobre o envolvimento do governo no incêndio na prisão de Evin, onde centenas de dissidentes e prisioneiros políticos estão detidos, com tiros e explosões ouvidas nas proximidades.

Entre os mortos pela repressão, estão duas adolescentes iranianas de 16 anos que aderiram às manifestações identificadas como Nika Shakarami e Sarina Esmailzadeh. Os corpos das duas foram encontrados com marcas de espancamento. Segundo o Times, o crânio de uma estava esmagado; a outra estava com a cabeça quebrada por golpes de bastão. As famílias e entidades de direitos humanos atribuem a violência às forças de segurança.

A violência, no entanto, não detêm os protestos e não os descaracteriza. As adolescentes Nika e Sarina, por exemplo, se tornaram símbolos em cartazes espalhados pelas mobilizações – assim como Mahsa Amini, cuja morte despertou os protestos. Ao contrário, o que se vê no Irã é uma coragem cada vez maior de desafiar o governo. “Tudo começou com as mulheres, e agora meninas adolescentes estão saindo da escola sem véus”, contou Samanta.

Nas últimas décadas, o Irã viveu uma série de protestos contra o regime islâmico que resultaram em centenas de mortes. O primeiro deles ocorreu em 1999, depois que um jornal reformista foi fechado no país. Protagonizado por estudantes universitários a favor das reformas, os protestos deixaram cerca de 4 mortes e mais de 1,5 mil pessoas presas, ainda de acordo com o United States Institute of Peace.

Em 2009, milhares de iranianos saíram às ruas para protestar contra a derrota do reformista Mir-Hossein Mousavi nas eleições daquele ano para o conservador Mahmoud Ahmadinejad. Na ocasião, 100 pessoas morreram e 4 mil foram presas, ainda de acordo com o instituto americano. Durante o chamado Movimento Verde, a revolta durou mais de seis meses e foram os maiores desafios vividos até então pelo governo islâmico.

De 2017 em diante, os protestos contra o governo islâmico começaram a ser cada vez mais frequentes no Irã e ganharam adesão ano após ano, à medida em que a economia foi piorando. Uma reportagem da agência de notícias Reuters estima mais de 1,5 mil manifestantes mortos, de acordo com relatórios do Ministério do Interior iraniano obtidos pelos jornalistas.

Legitimidade em xeque

Para Akkoyunlu, essas manifestações, apesar de suprimidas, forjaram o contexto sociopolítico atual – menos reformista e mais radical, demandando a queda do regime islâmico. “O Irã não chegou aqui da noite para o dia”, explicou. “Como o processo democrático foi suprimido (nos protestos anteriores), a legitimidade popular do regime sofreu um golpe”.

Foi suprimindo esses apelos por mudanças graduais que as demandas se tornaram mais radicalizadas

Karabekir Akkoyunlu, professor da Universidade de Londres

“No passado, as demandas sociais podiam ser parcialmente canalizadas por meio de eleições. Isso proporcionou legitimidade popular muito necessária ao sistema. Mas como os sucessivos governos falharam em cumprir as promessas básicas da revolução de 1979 – ou seja, direitos políticos, prosperidade econômica e justiça social – a insatisfação com todo o sistema cresceu”, acrescentou.

Novas estratégias

Desta vez, os manifestantes voltam às ruas do Irã com estratégias diferentes para escapar da repressão e da censura. De acordo com o serviço persa da BBC, os manifestantes se organizam de maneira espalhada na cidade, para dificultar uma ação centralizada do governo. As manifestações são convocadas pelo Instagram ou outros aplicativos, acessados através de VPNs (redes privadas de internet).

“As informações também chegam por canais de TV de outros países ou rádios piratas”, disse o iraniano Jan. O casal se informa dos protestos através da imprensa do Oriente Médio e amigos e familiares nos momentos em que estes conseguem acesso à internet.

À distância, Jan e Samanta nutrem o desejo de mudança. “Acredito que mais gente deve participar dos protestos para derrubar o regime, porque o governo não vai interromper a repressão contra os protestos. Quanto mais as pessoas participarem, maior a chance de o povo sair vencedor”, concluiu Jan.

Os protestos contra a morte da jovem curda Mahsa Amini no Irã completaram um mês nesta semana sem sinal de que a mobilização, uma das maiores dos últimos anos contra o regime teocrático xiita, estejam perdendo força. O agravamento da crise econômica provocada pelas sanções americanas impostas ao país e a insatisfação contra o regime, principalmente das camadas mais jovens da população, tem alimentado a fúria dos manifestantes que tomam as ruas. Os protestos já deixaram ao menos 240 mortos e 8 mil detidos no país, segundo a Anistia Internacional.

Desde que os protestos começaram no dia 16 de setembro, Samanta, uma iraniana que reside na Itália há mais de uma década, tem a sensação de que o país em que ela nasceu vive uma guerra.

“É uma coisa inacreditável o que estão fazendo. Eles matam os jovens nas ruas. Espancam as mulheres até a morte. Estupram prisioneiros”, relatou ao Estadão antes de uma viagem a Teerã no domingo, 16, para encontrar familiares. “Agora não é repressão, é uma guerra”.

Ela e o marido, Jan, contam que os relatos que vêm do Irã indicam que as manifestações atuais têm algumas diferenças importantes em relação aos protestos contra o custo de vida que abalaram o país entre 2017 e 2018.

Embora a crise econômica seja comum nos dois casos, o cenário atual é muito pior e o desespero das pessoas, crescente. “O povo iraniano está cheio de não ter nenhum direito e nem liberdades. Acrescenta-se a isso os problemas econômicos que as pessoas ainda têm de conviver”, disse Samanta.

Frustração coletiva

Para o professor da Universidade de Londres, Karabekir Akkoyunlu, especialista em Oriente Médio, os protestos são resultados de uma frustração coletiva gerada pela falta das liberdades individuais e deterioração econômica do país. Esses dois fatores, diz ele, estão intimamente relacionados. Isso explica por que os protestos não retrocederam com a repressão e por que mais setores do país passaram a aderir a eles nas últimas semanas.

“Depois de anos tentando mudar o sistema por dentro, muitos iranianos desistiram da ideia de reforma”, resume Akkoyunlu.

Na semana passada, por exemplo, trabalhadores do setor petrolífero entraram em greve e profissionais liberais como médicos e advogados começaram a fazer críticas abertas ao regime. Universidades e setores comerciais do país também estão parados.

Iranianos protestam contra a morte de Mahsa Amini em Teerã  Foto: AP / AP

Sanções e pobreza

Um ponto crucial para a piora econômica do Irã foi o colapso do acordo nuclear com os Estados Unidos, no governo de Donald Trump. As sanções que se seguiram ao fim do pacto agravaram sensivelmente os problemas econômicos do país.

O PIB caiu pela metade entre 2017 e 2020. A inflação anual, que em 2016 tinha recuado abaixo de 10%, voltou a subir e fechou 2021 com uma alta de 43,4%, segundo o Banco Central do Irã. Nos últimos cinco anos, o valor da moeda iraniana, o rial, caiu quase 90%. Em 2017, um dólar americano no mercado aberto valia pouco menos de 40 mil riais. Hoje, vale mais de 330 mil riais.

Com isso, o custo de vida disparou. Pão, carne e legumes estão cada vez mais caros. Os preços dos remédios também dispararam.

“Muitos iranianos estão consumindo menos carne, comprando menos alimentos especiais e estão até se preocupando com o custo de alimentos básicos, como arroz e pão”, disse Esfyandar Batmanghlidj, do Conselho Europeu de Relações Exteriores. ”Embora o Irã não esteja enfrentando uma crise de fome, a perda de poder de compra é uma espécie de crise humanitária.”

Jovens na vanguarda

A participação dos jovens nos protestos, contam Jan e Samanta, também é maior que nos protestos anteriores. Além disso, os homens têm se unido às mulheres em suas demandas, algo raro numa sociedade como a do Irã.

“Nos últimos quatro anos houve manifestações, mas desta vez elas são diferentes. Agora, mais mulheres estão participando e demandando sua liberdade. Além disso, os jovens estão mais ativos em comparação com anos anteriores”, diz Jan. “Mais da metade dos manifestantes são mulheres jovens entre 17 e 25 anos e o restante são meninos jovens que as apoiam”

Especialistas que acompanham de perto o Irã também veem com otimismo a adesão dos jovens às manifestações. “O fato de os homens terem se unido às mulheres em sua batalha épica pela igualdade, e de que os jovens tenham dado as mãos para criar um amanhã melhor, é o motivo do número notável de manifestantes nas cidades e vilarejos. todo o país”, disse Abbas Milani, diretor de estudos iranianos da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos.

Outra questão que diferencia os protestos deste ano está relacionada aos curdos – etnia a qual Mahsa Amini fazia parte e historicamente marginalizada no Irã e nos países vizinhos onde são minoria. “Os protestos foram muito mais intensos nas cidades curdas e encontraram uma resposta violenta do Estado. Sua escalada pode ter efeitos no Iraque e na Turquia”, acrescentou Akkoyunlu.

Polícia da Moral

As manifestações no país foram desencadeadas pela morte da morte da jovem Mahsa Amini, em 16 de setembro, após ser presa pela polícia moral do Irã acusada de não usar o véu corretamente sobre os cabelos. Milhares de mulheres do país, sobretudo jovens, foram às ruas e queimaram as vestes numa das maiores demonstrações de desafio ao governo islâmico e reivindicação de mais liberdades individuais.

Os gritos ouvidos nas ruas carregam os lemas “Mulheres, Vida, Liberdade” (ou Zan, Zendeghi, Azadi, em árabe) e “Morte ao ditador”, em referência ao aiatolá Ali Khamenei, líder supremo do Irã.

Em resposta, forças de segurança do país atiraram à luz do dia contra iranianos, como mostram vídeos espalhados nas redes sociais e checados por diversas organizações e jornais ocidentais, como o The New York Times. Também crescem as dúvidas sobre o envolvimento do governo no incêndio na prisão de Evin, onde centenas de dissidentes e prisioneiros políticos estão detidos, com tiros e explosões ouvidas nas proximidades.

Entre os mortos pela repressão, estão duas adolescentes iranianas de 16 anos que aderiram às manifestações identificadas como Nika Shakarami e Sarina Esmailzadeh. Os corpos das duas foram encontrados com marcas de espancamento. Segundo o Times, o crânio de uma estava esmagado; a outra estava com a cabeça quebrada por golpes de bastão. As famílias e entidades de direitos humanos atribuem a violência às forças de segurança.

A violência, no entanto, não detêm os protestos e não os descaracteriza. As adolescentes Nika e Sarina, por exemplo, se tornaram símbolos em cartazes espalhados pelas mobilizações – assim como Mahsa Amini, cuja morte despertou os protestos. Ao contrário, o que se vê no Irã é uma coragem cada vez maior de desafiar o governo. “Tudo começou com as mulheres, e agora meninas adolescentes estão saindo da escola sem véus”, contou Samanta.

Nas últimas décadas, o Irã viveu uma série de protestos contra o regime islâmico que resultaram em centenas de mortes. O primeiro deles ocorreu em 1999, depois que um jornal reformista foi fechado no país. Protagonizado por estudantes universitários a favor das reformas, os protestos deixaram cerca de 4 mortes e mais de 1,5 mil pessoas presas, ainda de acordo com o United States Institute of Peace.

Em 2009, milhares de iranianos saíram às ruas para protestar contra a derrota do reformista Mir-Hossein Mousavi nas eleições daquele ano para o conservador Mahmoud Ahmadinejad. Na ocasião, 100 pessoas morreram e 4 mil foram presas, ainda de acordo com o instituto americano. Durante o chamado Movimento Verde, a revolta durou mais de seis meses e foram os maiores desafios vividos até então pelo governo islâmico.

De 2017 em diante, os protestos contra o governo islâmico começaram a ser cada vez mais frequentes no Irã e ganharam adesão ano após ano, à medida em que a economia foi piorando. Uma reportagem da agência de notícias Reuters estima mais de 1,5 mil manifestantes mortos, de acordo com relatórios do Ministério do Interior iraniano obtidos pelos jornalistas.

Legitimidade em xeque

Para Akkoyunlu, essas manifestações, apesar de suprimidas, forjaram o contexto sociopolítico atual – menos reformista e mais radical, demandando a queda do regime islâmico. “O Irã não chegou aqui da noite para o dia”, explicou. “Como o processo democrático foi suprimido (nos protestos anteriores), a legitimidade popular do regime sofreu um golpe”.

Foi suprimindo esses apelos por mudanças graduais que as demandas se tornaram mais radicalizadas

Karabekir Akkoyunlu, professor da Universidade de Londres

“No passado, as demandas sociais podiam ser parcialmente canalizadas por meio de eleições. Isso proporcionou legitimidade popular muito necessária ao sistema. Mas como os sucessivos governos falharam em cumprir as promessas básicas da revolução de 1979 – ou seja, direitos políticos, prosperidade econômica e justiça social – a insatisfação com todo o sistema cresceu”, acrescentou.

Novas estratégias

Desta vez, os manifestantes voltam às ruas do Irã com estratégias diferentes para escapar da repressão e da censura. De acordo com o serviço persa da BBC, os manifestantes se organizam de maneira espalhada na cidade, para dificultar uma ação centralizada do governo. As manifestações são convocadas pelo Instagram ou outros aplicativos, acessados através de VPNs (redes privadas de internet).

“As informações também chegam por canais de TV de outros países ou rádios piratas”, disse o iraniano Jan. O casal se informa dos protestos através da imprensa do Oriente Médio e amigos e familiares nos momentos em que estes conseguem acesso à internet.

À distância, Jan e Samanta nutrem o desejo de mudança. “Acredito que mais gente deve participar dos protestos para derrubar o regime, porque o governo não vai interromper a repressão contra os protestos. Quanto mais as pessoas participarem, maior a chance de o povo sair vencedor”, concluiu Jan.

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