MOSCOU - A guerra da Rússia na Ucrânia se revelou uma poderosa iniciativa anticorrupção – pelo menos no Ministério da Defesa.
Durante anos, a Rússia tolerou a corrupção desenfreada dentro do seu Exército e do Ministério da Defesa. Mas, em uma tentativa de garantir que os crescentes gastos militares e de segurança do país resultem em mais soldados, armas e outros equipamentos e suprimentos na linha de frente, o Kremlin subitamente empreendeu uma repressão agressiva, expurgando funcionários com estilos de vida extravagantes ou que tenham sido críticos do comando militar.
No mês passado, o presidente Vladimir Putin transferiu o antigo ministro da Defesa, Serguei Shoigu, para chefiar o conselho de segurança nacional da Rússia. No lugar de Shoigu, Putin nomeou um antigo ministro da Economia, Andrei Belousov, com o mandato de utilizar o crescente orçamento de Defesa do país “com moderação, mas de forma eficaz”.
Mais dramaticamente, porém, cinco funcionários do alto escalão, incluindo um vice-ministro, foram presos desde abril conforme o Kremlin envia uma mensagem incisiva de que nem o excesso nem a deslealdade serão tolerados em tempo de guerra.
Gosto pelo luxo
O funcionário mais graduado a ser preso, o vice-ministro da Defesa, Timur Ivanov, levava um estilo de vida de ostentação, típico da elite russa, mas inalcançável para um funcionário do governo.
O gosto de Ivanov pelo luxo ocidental entrou em conflito com o impulso de Putin para forjar uma nova ideologia baseada em valores tradicionais e em oposição à permissividade liberal ocidental.
Ivanov, chefe do grupo de construção militar Oboronstroi de 2013 a 2016 e desde então vice-ministro da Defesa, foi acusado de aceitar subornos especialmente elevados e de fraude. Ele esteve à frente de projetos de reconstrução em Mariupol, uma cidade ucraniana ocupada e deixada em ruínas pelos intensos bombardeios russos.
Ivanov deu festas com o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, e outros russos da elite, construiu casas luxuosas repletas de antiguidades raras e desfrutou de férias anuais de verão em St. Tropez com sua família, onde supostamente gastou quase US$ 1,4 milhão de 2013 a 2018 em mansões luxuosas, iates e um Rolls-Royce, detalhes revelados em relatórios da Fundação Anticorrupção criada pelo falecido líder da oposição russa, Alexei Navalni.
Pressão por eficiência
Juntamente com grandes aumentos nas despesas militares e de segurança, que devem saltar para 8,7% da produção econômica total este ano, Putin exigiu mais eficiência. O Serviço Federal de Segurança, ou FSB, e o Comitê de Investigação, um importante órgão nacional de aplicação da lei, criaram uma força de investigação especial para erradicar a corrupção militar, e é provável que ocorram mais detenções, de acordo com o Kommersant, um jornal russo.
Embora Putin tenha recentemente enfatizado sua campanha de combate à corrupção, os analistas não veem nenhuma mudança fundamental nas tendências cleptocráticas do seu regime, incluindo o patrocínio do Kremlin a um círculo de oligarcas leais e funcionários de segurança.
“Todos, absolutamente todos, devem trabalhar como se estivessem na linha da frente”, disse ele, exigindo um novo sentido de mobilização e urgência dos altos funcionários do Conselho para o Desenvolvimento Estratégico e Projetos Nacionais e das comissões do Conselho de Estado em 29 de maio.
“Todos devem atuar como pessoal mobilizado, e só assim conseguiremos atingir os objetivos que nos propusemos”, disse, acrescentando: “Todos temos consciência de que os principais objetivos do futuro do país são em grande parte resolvidos na linha de frente.”
Em 19 de fevereiro, Putin ordenou ao FSB que investigasse a corrupção em aquisições de Defesa e em projetos do governo. Em abril, ele exortou um conselho do Ministério do Interior a intensificar a luta contra a corrupção, que, segundo ele, estava “envenenando a nossa sociedade” e “roubando o dinheiro que precisamos para a defesa do país”.
Leia Também:
Corrupção intrínseca
A corrupção no alto escalão era intrínseca à Rússia e era utilizada como meio de controle político, disse Kirill Shamiev, analista militar do Conselho Europeu de Relações Exteriores, que escreveu um relatório analisando os fracassos nos repetidos esforços para reformar as forças armadas da Rússia. “Quando alguém precisa ser removido, quase sempre pode-se recorrer à corrupção e dizer que essa pessoa cometeu um crime e precisa de ser colocada na prisão”, disse Shamiev.
A Fundação Anticorrupção de Navalny obteve seis anos de e-mails da segunda mulher de Ivanov, Svetlana Maniovich, incluindo vídeos constrangedores e imagens de festas e férias da elite regadas a champanhe, bem como faturas de pagamentos de joias, haras de cavalos, móveis, roupas de grife e diárias de aluguel de iates.
Vários meses após a invasão da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2022, Ivanov se divorciou de Maniovich e envolveu-se brevemente com Maria Kitaeva, que teve três filhos com outro vice-ministro da defesa. Ambas as mulheres são ex-apresentadoras de TV glamourosas, que postam com frequência no Instagram, exibindo seus gostos caros.
O advogado de Ivanov disse a um tribunal russo que o ex-ministro da Defesa formou uma família com Kitaeva e ela deu à luz um filho, o quinto, em janeiro.
De acordo com o relato da Fundação Anticorrupção a respeito dos e-mails de Maniovich, ela realizou uma festa de aniversário em 2019 no distrito de elite de Rublyovka, em Moscou, onde Peskov fez um brinde, usando um relógio Richard Mille no pulso. Ivanov correu e cobriu o relógio com a manga de Peskov, como visto em um vídeo que foi assistido mais de 9 milhões de vezes.
Peskov não respondeu às perguntas da reportagem a respeito do incidente e da campanha anticorrupção.
A fundação informou que a Olimpsitistroi, uma grande empreiteira contratada pelo Ministério da Defesa para reconstruir partes de Mariupol, ofereceu propinas a Ivanov: materiais luxuosos para construir uma mansão de campo perto de Tver e outras propriedades.
A acusação contra Ivanov se baseia nos subornos de Tver, de acordo com a mídia russa. O advogado de Ivanov disse à imprensa russa que “filmes” levaram à prisão de Ivanov, em uma aparente alusão aos relatórios da fundação. Dois empresários, incluindo Alexander Fomin, cofundador da Olimpsitistroi, também foram presos, assim como outros oficiais militares em casos não relacionados.
Outros casos
O tenente-general Yuri Kuznetsov foi acusado de aceitar subornos especialmente altos (uma casa e um terreno) de um empresário, em troca de contratos militares. Os investigadores relataram ter encontrado moedas de ouro, uma coleção de relógios e outros itens de luxo na casa dele.
O tenente-general Vadim Shamarin, chefe das comunicações militares, foi acusado de aceitar subornos especialmente altos de uma empresa de telecomunicações em troca de contratos estatais. Outro funcionário do Ministério da Defesa, Vladimir Verteletsky, chefe do departamento encarregado das ordens de compra de defesa, foi preso por abuso de poder.
Também foi preso e acusado de fraude em grande escala o ex-comandante do 58º Exército, major-general Ivan Popov, que foi demitido no ano passado depois de criticar o comando militar da Rússia na sequência da rebelião do ano passado pelo líder mercenário Yevgeniy Prigozhin.
Os investigadores não encontraram dinheiro ou itens de luxo na casa de Popov, informou a mídia russa, levando muitos a concluir que Popov estava sendo perseguido por deslealdade. Ele é acusado de roubar mais de 1.700 toneladas de metal compradas para estruturas defensivas na linha de frente.
A transferência de Shoigu para outra posição do alto escalão destacou o quanto Putin valoriza a lealdade. Shamiev, o analista, disse que as recentes detenções tinham como objetivo incutir medo e respeito após a nomeação de Belousov como ministro da defesa.
“Também transmite ao público russo uma mensagem de que todos os fracassos na guerra se devem aos militares, exclusivamente, isentando especialmente o próprio Putin”, disse ele.
Dimitri Minic, especialista em forças armadas russas no Instituto Francês de Relações Internacionais, disse que as prisões faziam parte de um esforço para maximizar os recursos militares. Mas Minic disse que a corrupção foi usada como pretexto para remover funcionários incompetentes ou para um acerto de contas político. Muitas vezes, isso sinalizava lutas internas entre agências, disse ele.
Um aumento de queixas a respeito da condução da guerra “abre o caminho para um acerto de contas total conduzido com a aquiescência do Kremlin, tendo como pano de fundo um influxo de recursos para o Ministério da Defesa e lutas internas pelo seu controle e captura”, disse ele.
Outros generais do alto escalão com propriedades que parecem exceder em muito o que poderiam pagar com seus rendimentos oficiais foram investigados pela Fundação Anticorrupção, mas não foram acusados.
Peskov, o porta-voz do Kremlin, negou qualquer expurgo ou campanha anticorrupção em comentários feitos em uma teleconferência diária com jornalistas. “A luta contra a corrupção é um esforço consistente”, disse ele. “Não se trata de uma campanha, e sim um trabalho constante e contínuo.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL