Opinião|Putin continua ameaçando usar armas nucleares. Ele faria isso?


Mudanças da Rússia na doutrina nuclear aumentam temores de ameaça presente desde o início da guerra na Ucrânia

Por Lawrence Freedman
Atualização:

No dia 25 de setembro, o presidente Vladimir Putin anunciou um plano para mudar a doutrina nuclear da Rússia. Ele disse que a Rússia estaria preparada para usar uma arma nuclear em resposta a um ataque com armas convencionais que criasse uma “ameaça crítica à nossa soberania” e trataria “a agressão contra a Rússia por qualquer estado não nuclear, mas com a participação ou apoio de um estado nuclear”, como um “ataque conjunto à Federação Russa”.

Esta é a mudança fundamental, e não é sutil. Nem é para ser. Seu propósito é influenciar Washington na questão específica de atender ou não ao pedido da Ucrânia de usar sistemas de armas americanos contra alvos dentro da Rússia e, de forma mais geral, persuadir os líderes ocidentais a levar as ameaças de Putin mais a sério. Seu problema é que, por mais beligerante que seja sua retórica, ele é incapaz de descrever situações nas quais o uso de armas nucleares faria sentido.

Desde que a Rússia anexou a Crimeia, em 2014, Putin tem sinalizado aos países da Otan que eles correm o risco de uma guerra nuclear se interferirem em favor da Ucrânia. Seja na forma de propaganda tempestuosa, anúncios sombrios ou exercícios, esses sinais têm sido consistentemente projetados para exalar uma aura ameaçadora sem nunca se comprometerem com o uso nuclear.

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Imagem do dia 30 de setembro mostra presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante uma reunião em Moscou. Putin anunciou mudanças na doutrina militar nuclear do país, aumentando ameaças ao Ocidente Foto: Mikhail Metzel/AFP

Quando Putin anunciou a invasão em larga escala da Ucrânia em fevereiro de 2022, ele alertou que aqueles que estão “em nosso caminho” devem saber “que a Rússia responderá imediatamente, e as consequências serão como vocês nunca viram em toda a sua história”. Em setembro de 2022 (quando as autoridades dos EUA estavam particularmente preocupadas com uma escalada nuclear), ele disse: “Se a integridade territorial do nosso país for ameaçada, certamente usaremos todos os meios à nossa disposição para proteger a Rússia e nosso povo. Isso não é um blefe”.

Em 13 de setembro, ele disse que, se os países da Otan permitirem que a Ucrânia use “armas de precisão” de longo alcance para atingir alvos dentro da Rússia, eles estariam “em guerra com a Rússia”. Como consequência, ele disse, “tendo em mente a mudança na essência do conflito, tomaremos decisões apropriadas em resposta às ameaças que serão colocadas contra nós”. Cabe a nós inferir o que ele quer dizer com “apropriadas”.

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Cada uma dessas declarações, em momentos diferentes, foi projetada para dissuadir os países da Otan de certas ações — Suécia e Finlândia e a adesão à Otan, o Ocidente e o fornecimento de armas para a Ucrânia — sem se comprometer com nenhum curso de ação específico se essas ações fossem adiante. Mas, como sabemos, a Suécia e a Finlândia se juntaram à Otan, e a Europa e os Estados Unidos forneceram lançadores de foguetes, tanques, caças F-16 e mísseis de longo alcance para a Ucrânia. Não houve resposta nuclear.

Por que isso? Nenhuma das ações acima justificava uma escalada tão drástica. Qualquer tipo de uso nuclear elevaria o que ainda é chamado de “operação militar especial” limitada, na Ucrânia, a um novo nível excepcionalmente perigoso. Atacar países da Otan ou outros países com armas nucleares arriscaria uma retaliação da mesma espécie contra a Rússia (um ponto que provavelmente não passará despercebido pelas populações de Moscou e São Petersburgo). Limitar o uso às chamadas armas nucleares táticas, que têm ogivas menores e são projetadas para uso no campo de batalha, contra as forças da linha de frente da Ucrânia poderia levar a uma intervenção direta da Otan, mesmo que apenas com forças convencionais (Jake Sullivan, o conselheiro de segurança nacional, alertou em setembro de 2022 para “consequências catastróficas”).

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Qualquer uso de forças nucleares levaria à indignação internacional, parte da qual Putin poderia se sentir capaz de ignorar, mas nem tanto se viesse de estados amigáveis como a Índia e a China. Ele poderia tentar limitar essa indignação usando apenas armas suficientes para mostrar que estava preparado para cruzar esse limite — e poderia ir mais longe. Mas isso poderia ser embaraçoso se as armas fossem ruins — muitas foram testadas faz tempo — ou se os veículos de entrega fossem abatidos pelas defesas aéreas ucranianas.

Diante de tudo isso, como devemos entender a “linha vermelha” atual e a suposta razão para as mudanças na doutrina nuclear da Rússia? Se os Estados Unidos e a Europa permitissem que a Ucrânia atacasse alvos bem no interior da Rússia com armas fornecidas pelo Ocidente, isso seria uma escalada séria o suficiente para justificar o uso nuclear, da perspectiva de Putin?

Há muito pouco no debate atual que seja novo. Com isso não se pretende descartar as ameaças de Putin como pura conversa fiada e blefe, e sim reconhecer que o uso nuclear, embora seja sem dúvida a opção mais perigosa, não é a mais provável

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Se Putin realmente acredita, como ele afirma, que a Ucrânia pode operar sistemas de armas ocidentais precisos apenas com apoio ocidental, então isso já aconteceu: armas ocidentais guiadas com precisão já foram usadas contra alvos russos em território ucraniano, incluindo na península da Crimeia. Se o problema é atingir alvos dentro da Rússia, então a Ucrânia tem feito isso há algum tempo com seus sistemas caseiros — e com eficácia crescente. A Ucrânia até mesmo montou uma invasão convencional da Rússia em agosto, em Kursk, de onde ainda não foi expulsa (na verdade, em vez de soar o alarme, Putin minimizou essa incursão porque o próprio fato dela ocorrer era constrangedor).

Há muito pouco no debate atual que seja novo. Com isso não se pretende descartar as ameaças de Putin como pura conversa fiada e blefe, e sim reconhecer que o uso nuclear, embora seja sem dúvida a opção mais perigosa, não é a mais provável. Não é que ele seja avesso à escalada; ele já escalou — de uma invasão em grande escala para a ordem de anexação de território soberano, atacando infraestrutura de energia e bombardeando áreas civis. Ele procurou punir o Ocidente por meio de crises de energia, campanhas de sabotagem e subversão e causando problemas ao redor do mundo. O presidente Biden ainda não concordou com os pedidos ucranianos de usar mísseis ocidentais contra alvos dentro da Rússia. Isso ocorre em parte porque a inteligência dos EUA acredita que esse seria um mau uso de recursos escassos, mas também por causa de preocupações com essas outras formas não nucleares de escalada do conflito.

Isso tampouco significa que não haja circunstâncias nas quais Putin possa considerar o uso de armas nucleares. O cenário que ele mais mencionou é aquele em que as forças da Otan estão lutando ao lado das forças ucranianas, uma situação que pode rapidamente colocar as forças russas em desvantagem. Esse é um cenário em que podemos imaginar Putin desesperado, preparado para embarcar em uma guerra mais ampla. Ele se vê preso no paradoxo clássico da era nuclear. Putin não se considera irracional, mas, para tornar suas ameaças críveis, tem que apostar que seus adversários acreditam que ele poderia cometer alguma loucura. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

No dia 25 de setembro, o presidente Vladimir Putin anunciou um plano para mudar a doutrina nuclear da Rússia. Ele disse que a Rússia estaria preparada para usar uma arma nuclear em resposta a um ataque com armas convencionais que criasse uma “ameaça crítica à nossa soberania” e trataria “a agressão contra a Rússia por qualquer estado não nuclear, mas com a participação ou apoio de um estado nuclear”, como um “ataque conjunto à Federação Russa”.

Esta é a mudança fundamental, e não é sutil. Nem é para ser. Seu propósito é influenciar Washington na questão específica de atender ou não ao pedido da Ucrânia de usar sistemas de armas americanos contra alvos dentro da Rússia e, de forma mais geral, persuadir os líderes ocidentais a levar as ameaças de Putin mais a sério. Seu problema é que, por mais beligerante que seja sua retórica, ele é incapaz de descrever situações nas quais o uso de armas nucleares faria sentido.

Desde que a Rússia anexou a Crimeia, em 2014, Putin tem sinalizado aos países da Otan que eles correm o risco de uma guerra nuclear se interferirem em favor da Ucrânia. Seja na forma de propaganda tempestuosa, anúncios sombrios ou exercícios, esses sinais têm sido consistentemente projetados para exalar uma aura ameaçadora sem nunca se comprometerem com o uso nuclear.

Imagem do dia 30 de setembro mostra presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante uma reunião em Moscou. Putin anunciou mudanças na doutrina militar nuclear do país, aumentando ameaças ao Ocidente Foto: Mikhail Metzel/AFP

Quando Putin anunciou a invasão em larga escala da Ucrânia em fevereiro de 2022, ele alertou que aqueles que estão “em nosso caminho” devem saber “que a Rússia responderá imediatamente, e as consequências serão como vocês nunca viram em toda a sua história”. Em setembro de 2022 (quando as autoridades dos EUA estavam particularmente preocupadas com uma escalada nuclear), ele disse: “Se a integridade territorial do nosso país for ameaçada, certamente usaremos todos os meios à nossa disposição para proteger a Rússia e nosso povo. Isso não é um blefe”.

Em 13 de setembro, ele disse que, se os países da Otan permitirem que a Ucrânia use “armas de precisão” de longo alcance para atingir alvos dentro da Rússia, eles estariam “em guerra com a Rússia”. Como consequência, ele disse, “tendo em mente a mudança na essência do conflito, tomaremos decisões apropriadas em resposta às ameaças que serão colocadas contra nós”. Cabe a nós inferir o que ele quer dizer com “apropriadas”.

Cada uma dessas declarações, em momentos diferentes, foi projetada para dissuadir os países da Otan de certas ações — Suécia e Finlândia e a adesão à Otan, o Ocidente e o fornecimento de armas para a Ucrânia — sem se comprometer com nenhum curso de ação específico se essas ações fossem adiante. Mas, como sabemos, a Suécia e a Finlândia se juntaram à Otan, e a Europa e os Estados Unidos forneceram lançadores de foguetes, tanques, caças F-16 e mísseis de longo alcance para a Ucrânia. Não houve resposta nuclear.

Por que isso? Nenhuma das ações acima justificava uma escalada tão drástica. Qualquer tipo de uso nuclear elevaria o que ainda é chamado de “operação militar especial” limitada, na Ucrânia, a um novo nível excepcionalmente perigoso. Atacar países da Otan ou outros países com armas nucleares arriscaria uma retaliação da mesma espécie contra a Rússia (um ponto que provavelmente não passará despercebido pelas populações de Moscou e São Petersburgo). Limitar o uso às chamadas armas nucleares táticas, que têm ogivas menores e são projetadas para uso no campo de batalha, contra as forças da linha de frente da Ucrânia poderia levar a uma intervenção direta da Otan, mesmo que apenas com forças convencionais (Jake Sullivan, o conselheiro de segurança nacional, alertou em setembro de 2022 para “consequências catastróficas”).

Qualquer uso de forças nucleares levaria à indignação internacional, parte da qual Putin poderia se sentir capaz de ignorar, mas nem tanto se viesse de estados amigáveis como a Índia e a China. Ele poderia tentar limitar essa indignação usando apenas armas suficientes para mostrar que estava preparado para cruzar esse limite — e poderia ir mais longe. Mas isso poderia ser embaraçoso se as armas fossem ruins — muitas foram testadas faz tempo — ou se os veículos de entrega fossem abatidos pelas defesas aéreas ucranianas.

Diante de tudo isso, como devemos entender a “linha vermelha” atual e a suposta razão para as mudanças na doutrina nuclear da Rússia? Se os Estados Unidos e a Europa permitissem que a Ucrânia atacasse alvos bem no interior da Rússia com armas fornecidas pelo Ocidente, isso seria uma escalada séria o suficiente para justificar o uso nuclear, da perspectiva de Putin?

Há muito pouco no debate atual que seja novo. Com isso não se pretende descartar as ameaças de Putin como pura conversa fiada e blefe, e sim reconhecer que o uso nuclear, embora seja sem dúvida a opção mais perigosa, não é a mais provável

Se Putin realmente acredita, como ele afirma, que a Ucrânia pode operar sistemas de armas ocidentais precisos apenas com apoio ocidental, então isso já aconteceu: armas ocidentais guiadas com precisão já foram usadas contra alvos russos em território ucraniano, incluindo na península da Crimeia. Se o problema é atingir alvos dentro da Rússia, então a Ucrânia tem feito isso há algum tempo com seus sistemas caseiros — e com eficácia crescente. A Ucrânia até mesmo montou uma invasão convencional da Rússia em agosto, em Kursk, de onde ainda não foi expulsa (na verdade, em vez de soar o alarme, Putin minimizou essa incursão porque o próprio fato dela ocorrer era constrangedor).

Há muito pouco no debate atual que seja novo. Com isso não se pretende descartar as ameaças de Putin como pura conversa fiada e blefe, e sim reconhecer que o uso nuclear, embora seja sem dúvida a opção mais perigosa, não é a mais provável. Não é que ele seja avesso à escalada; ele já escalou — de uma invasão em grande escala para a ordem de anexação de território soberano, atacando infraestrutura de energia e bombardeando áreas civis. Ele procurou punir o Ocidente por meio de crises de energia, campanhas de sabotagem e subversão e causando problemas ao redor do mundo. O presidente Biden ainda não concordou com os pedidos ucranianos de usar mísseis ocidentais contra alvos dentro da Rússia. Isso ocorre em parte porque a inteligência dos EUA acredita que esse seria um mau uso de recursos escassos, mas também por causa de preocupações com essas outras formas não nucleares de escalada do conflito.

Isso tampouco significa que não haja circunstâncias nas quais Putin possa considerar o uso de armas nucleares. O cenário que ele mais mencionou é aquele em que as forças da Otan estão lutando ao lado das forças ucranianas, uma situação que pode rapidamente colocar as forças russas em desvantagem. Esse é um cenário em que podemos imaginar Putin desesperado, preparado para embarcar em uma guerra mais ampla. Ele se vê preso no paradoxo clássico da era nuclear. Putin não se considera irracional, mas, para tornar suas ameaças críveis, tem que apostar que seus adversários acreditam que ele poderia cometer alguma loucura. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

No dia 25 de setembro, o presidente Vladimir Putin anunciou um plano para mudar a doutrina nuclear da Rússia. Ele disse que a Rússia estaria preparada para usar uma arma nuclear em resposta a um ataque com armas convencionais que criasse uma “ameaça crítica à nossa soberania” e trataria “a agressão contra a Rússia por qualquer estado não nuclear, mas com a participação ou apoio de um estado nuclear”, como um “ataque conjunto à Federação Russa”.

Esta é a mudança fundamental, e não é sutil. Nem é para ser. Seu propósito é influenciar Washington na questão específica de atender ou não ao pedido da Ucrânia de usar sistemas de armas americanos contra alvos dentro da Rússia e, de forma mais geral, persuadir os líderes ocidentais a levar as ameaças de Putin mais a sério. Seu problema é que, por mais beligerante que seja sua retórica, ele é incapaz de descrever situações nas quais o uso de armas nucleares faria sentido.

Desde que a Rússia anexou a Crimeia, em 2014, Putin tem sinalizado aos países da Otan que eles correm o risco de uma guerra nuclear se interferirem em favor da Ucrânia. Seja na forma de propaganda tempestuosa, anúncios sombrios ou exercícios, esses sinais têm sido consistentemente projetados para exalar uma aura ameaçadora sem nunca se comprometerem com o uso nuclear.

Imagem do dia 30 de setembro mostra presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante uma reunião em Moscou. Putin anunciou mudanças na doutrina militar nuclear do país, aumentando ameaças ao Ocidente Foto: Mikhail Metzel/AFP

Quando Putin anunciou a invasão em larga escala da Ucrânia em fevereiro de 2022, ele alertou que aqueles que estão “em nosso caminho” devem saber “que a Rússia responderá imediatamente, e as consequências serão como vocês nunca viram em toda a sua história”. Em setembro de 2022 (quando as autoridades dos EUA estavam particularmente preocupadas com uma escalada nuclear), ele disse: “Se a integridade territorial do nosso país for ameaçada, certamente usaremos todos os meios à nossa disposição para proteger a Rússia e nosso povo. Isso não é um blefe”.

Em 13 de setembro, ele disse que, se os países da Otan permitirem que a Ucrânia use “armas de precisão” de longo alcance para atingir alvos dentro da Rússia, eles estariam “em guerra com a Rússia”. Como consequência, ele disse, “tendo em mente a mudança na essência do conflito, tomaremos decisões apropriadas em resposta às ameaças que serão colocadas contra nós”. Cabe a nós inferir o que ele quer dizer com “apropriadas”.

Cada uma dessas declarações, em momentos diferentes, foi projetada para dissuadir os países da Otan de certas ações — Suécia e Finlândia e a adesão à Otan, o Ocidente e o fornecimento de armas para a Ucrânia — sem se comprometer com nenhum curso de ação específico se essas ações fossem adiante. Mas, como sabemos, a Suécia e a Finlândia se juntaram à Otan, e a Europa e os Estados Unidos forneceram lançadores de foguetes, tanques, caças F-16 e mísseis de longo alcance para a Ucrânia. Não houve resposta nuclear.

Por que isso? Nenhuma das ações acima justificava uma escalada tão drástica. Qualquer tipo de uso nuclear elevaria o que ainda é chamado de “operação militar especial” limitada, na Ucrânia, a um novo nível excepcionalmente perigoso. Atacar países da Otan ou outros países com armas nucleares arriscaria uma retaliação da mesma espécie contra a Rússia (um ponto que provavelmente não passará despercebido pelas populações de Moscou e São Petersburgo). Limitar o uso às chamadas armas nucleares táticas, que têm ogivas menores e são projetadas para uso no campo de batalha, contra as forças da linha de frente da Ucrânia poderia levar a uma intervenção direta da Otan, mesmo que apenas com forças convencionais (Jake Sullivan, o conselheiro de segurança nacional, alertou em setembro de 2022 para “consequências catastróficas”).

Qualquer uso de forças nucleares levaria à indignação internacional, parte da qual Putin poderia se sentir capaz de ignorar, mas nem tanto se viesse de estados amigáveis como a Índia e a China. Ele poderia tentar limitar essa indignação usando apenas armas suficientes para mostrar que estava preparado para cruzar esse limite — e poderia ir mais longe. Mas isso poderia ser embaraçoso se as armas fossem ruins — muitas foram testadas faz tempo — ou se os veículos de entrega fossem abatidos pelas defesas aéreas ucranianas.

Diante de tudo isso, como devemos entender a “linha vermelha” atual e a suposta razão para as mudanças na doutrina nuclear da Rússia? Se os Estados Unidos e a Europa permitissem que a Ucrânia atacasse alvos bem no interior da Rússia com armas fornecidas pelo Ocidente, isso seria uma escalada séria o suficiente para justificar o uso nuclear, da perspectiva de Putin?

Há muito pouco no debate atual que seja novo. Com isso não se pretende descartar as ameaças de Putin como pura conversa fiada e blefe, e sim reconhecer que o uso nuclear, embora seja sem dúvida a opção mais perigosa, não é a mais provável

Se Putin realmente acredita, como ele afirma, que a Ucrânia pode operar sistemas de armas ocidentais precisos apenas com apoio ocidental, então isso já aconteceu: armas ocidentais guiadas com precisão já foram usadas contra alvos russos em território ucraniano, incluindo na península da Crimeia. Se o problema é atingir alvos dentro da Rússia, então a Ucrânia tem feito isso há algum tempo com seus sistemas caseiros — e com eficácia crescente. A Ucrânia até mesmo montou uma invasão convencional da Rússia em agosto, em Kursk, de onde ainda não foi expulsa (na verdade, em vez de soar o alarme, Putin minimizou essa incursão porque o próprio fato dela ocorrer era constrangedor).

Há muito pouco no debate atual que seja novo. Com isso não se pretende descartar as ameaças de Putin como pura conversa fiada e blefe, e sim reconhecer que o uso nuclear, embora seja sem dúvida a opção mais perigosa, não é a mais provável. Não é que ele seja avesso à escalada; ele já escalou — de uma invasão em grande escala para a ordem de anexação de território soberano, atacando infraestrutura de energia e bombardeando áreas civis. Ele procurou punir o Ocidente por meio de crises de energia, campanhas de sabotagem e subversão e causando problemas ao redor do mundo. O presidente Biden ainda não concordou com os pedidos ucranianos de usar mísseis ocidentais contra alvos dentro da Rússia. Isso ocorre em parte porque a inteligência dos EUA acredita que esse seria um mau uso de recursos escassos, mas também por causa de preocupações com essas outras formas não nucleares de escalada do conflito.

Isso tampouco significa que não haja circunstâncias nas quais Putin possa considerar o uso de armas nucleares. O cenário que ele mais mencionou é aquele em que as forças da Otan estão lutando ao lado das forças ucranianas, uma situação que pode rapidamente colocar as forças russas em desvantagem. Esse é um cenário em que podemos imaginar Putin desesperado, preparado para embarcar em uma guerra mais ampla. Ele se vê preso no paradoxo clássico da era nuclear. Putin não se considera irracional, mas, para tornar suas ameaças críveis, tem que apostar que seus adversários acreditam que ele poderia cometer alguma loucura. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

No dia 25 de setembro, o presidente Vladimir Putin anunciou um plano para mudar a doutrina nuclear da Rússia. Ele disse que a Rússia estaria preparada para usar uma arma nuclear em resposta a um ataque com armas convencionais que criasse uma “ameaça crítica à nossa soberania” e trataria “a agressão contra a Rússia por qualquer estado não nuclear, mas com a participação ou apoio de um estado nuclear”, como um “ataque conjunto à Federação Russa”.

Esta é a mudança fundamental, e não é sutil. Nem é para ser. Seu propósito é influenciar Washington na questão específica de atender ou não ao pedido da Ucrânia de usar sistemas de armas americanos contra alvos dentro da Rússia e, de forma mais geral, persuadir os líderes ocidentais a levar as ameaças de Putin mais a sério. Seu problema é que, por mais beligerante que seja sua retórica, ele é incapaz de descrever situações nas quais o uso de armas nucleares faria sentido.

Desde que a Rússia anexou a Crimeia, em 2014, Putin tem sinalizado aos países da Otan que eles correm o risco de uma guerra nuclear se interferirem em favor da Ucrânia. Seja na forma de propaganda tempestuosa, anúncios sombrios ou exercícios, esses sinais têm sido consistentemente projetados para exalar uma aura ameaçadora sem nunca se comprometerem com o uso nuclear.

Imagem do dia 30 de setembro mostra presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante uma reunião em Moscou. Putin anunciou mudanças na doutrina militar nuclear do país, aumentando ameaças ao Ocidente Foto: Mikhail Metzel/AFP

Quando Putin anunciou a invasão em larga escala da Ucrânia em fevereiro de 2022, ele alertou que aqueles que estão “em nosso caminho” devem saber “que a Rússia responderá imediatamente, e as consequências serão como vocês nunca viram em toda a sua história”. Em setembro de 2022 (quando as autoridades dos EUA estavam particularmente preocupadas com uma escalada nuclear), ele disse: “Se a integridade territorial do nosso país for ameaçada, certamente usaremos todos os meios à nossa disposição para proteger a Rússia e nosso povo. Isso não é um blefe”.

Em 13 de setembro, ele disse que, se os países da Otan permitirem que a Ucrânia use “armas de precisão” de longo alcance para atingir alvos dentro da Rússia, eles estariam “em guerra com a Rússia”. Como consequência, ele disse, “tendo em mente a mudança na essência do conflito, tomaremos decisões apropriadas em resposta às ameaças que serão colocadas contra nós”. Cabe a nós inferir o que ele quer dizer com “apropriadas”.

Cada uma dessas declarações, em momentos diferentes, foi projetada para dissuadir os países da Otan de certas ações — Suécia e Finlândia e a adesão à Otan, o Ocidente e o fornecimento de armas para a Ucrânia — sem se comprometer com nenhum curso de ação específico se essas ações fossem adiante. Mas, como sabemos, a Suécia e a Finlândia se juntaram à Otan, e a Europa e os Estados Unidos forneceram lançadores de foguetes, tanques, caças F-16 e mísseis de longo alcance para a Ucrânia. Não houve resposta nuclear.

Por que isso? Nenhuma das ações acima justificava uma escalada tão drástica. Qualquer tipo de uso nuclear elevaria o que ainda é chamado de “operação militar especial” limitada, na Ucrânia, a um novo nível excepcionalmente perigoso. Atacar países da Otan ou outros países com armas nucleares arriscaria uma retaliação da mesma espécie contra a Rússia (um ponto que provavelmente não passará despercebido pelas populações de Moscou e São Petersburgo). Limitar o uso às chamadas armas nucleares táticas, que têm ogivas menores e são projetadas para uso no campo de batalha, contra as forças da linha de frente da Ucrânia poderia levar a uma intervenção direta da Otan, mesmo que apenas com forças convencionais (Jake Sullivan, o conselheiro de segurança nacional, alertou em setembro de 2022 para “consequências catastróficas”).

Qualquer uso de forças nucleares levaria à indignação internacional, parte da qual Putin poderia se sentir capaz de ignorar, mas nem tanto se viesse de estados amigáveis como a Índia e a China. Ele poderia tentar limitar essa indignação usando apenas armas suficientes para mostrar que estava preparado para cruzar esse limite — e poderia ir mais longe. Mas isso poderia ser embaraçoso se as armas fossem ruins — muitas foram testadas faz tempo — ou se os veículos de entrega fossem abatidos pelas defesas aéreas ucranianas.

Diante de tudo isso, como devemos entender a “linha vermelha” atual e a suposta razão para as mudanças na doutrina nuclear da Rússia? Se os Estados Unidos e a Europa permitissem que a Ucrânia atacasse alvos bem no interior da Rússia com armas fornecidas pelo Ocidente, isso seria uma escalada séria o suficiente para justificar o uso nuclear, da perspectiva de Putin?

Há muito pouco no debate atual que seja novo. Com isso não se pretende descartar as ameaças de Putin como pura conversa fiada e blefe, e sim reconhecer que o uso nuclear, embora seja sem dúvida a opção mais perigosa, não é a mais provável

Se Putin realmente acredita, como ele afirma, que a Ucrânia pode operar sistemas de armas ocidentais precisos apenas com apoio ocidental, então isso já aconteceu: armas ocidentais guiadas com precisão já foram usadas contra alvos russos em território ucraniano, incluindo na península da Crimeia. Se o problema é atingir alvos dentro da Rússia, então a Ucrânia tem feito isso há algum tempo com seus sistemas caseiros — e com eficácia crescente. A Ucrânia até mesmo montou uma invasão convencional da Rússia em agosto, em Kursk, de onde ainda não foi expulsa (na verdade, em vez de soar o alarme, Putin minimizou essa incursão porque o próprio fato dela ocorrer era constrangedor).

Há muito pouco no debate atual que seja novo. Com isso não se pretende descartar as ameaças de Putin como pura conversa fiada e blefe, e sim reconhecer que o uso nuclear, embora seja sem dúvida a opção mais perigosa, não é a mais provável. Não é que ele seja avesso à escalada; ele já escalou — de uma invasão em grande escala para a ordem de anexação de território soberano, atacando infraestrutura de energia e bombardeando áreas civis. Ele procurou punir o Ocidente por meio de crises de energia, campanhas de sabotagem e subversão e causando problemas ao redor do mundo. O presidente Biden ainda não concordou com os pedidos ucranianos de usar mísseis ocidentais contra alvos dentro da Rússia. Isso ocorre em parte porque a inteligência dos EUA acredita que esse seria um mau uso de recursos escassos, mas também por causa de preocupações com essas outras formas não nucleares de escalada do conflito.

Isso tampouco significa que não haja circunstâncias nas quais Putin possa considerar o uso de armas nucleares. O cenário que ele mais mencionou é aquele em que as forças da Otan estão lutando ao lado das forças ucranianas, uma situação que pode rapidamente colocar as forças russas em desvantagem. Esse é um cenário em que podemos imaginar Putin desesperado, preparado para embarcar em uma guerra mais ampla. Ele se vê preso no paradoxo clássico da era nuclear. Putin não se considera irracional, mas, para tornar suas ameaças críveis, tem que apostar que seus adversários acreditam que ele poderia cometer alguma loucura. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Opinião por Lawrence Freedman

Professor emérito de estudos de guerra no King's College de Londres. Publicou, mais recentemente, "Command: The Politics of Military Operations From Korea to Ukraine". Escreveu de Londres.

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