O presidente da Rússia, Vladimir Putin, anunciou a assinatura de acordos de cooperação militar com mais de 40 países do continente — um símbolo dos seus esforços por mais influência na região.
Na sexta-feira, último dia da cúpula Rússia-África em São Petersburgo, Putin garantiu os acordos militares depois de garantir a doação de até 50 mil toneladas de grãos a aliados na quinta. Segundo Putin, “uma ampla gama de armas e equipamentos de defesa” será fornecida, alguns com entrega gratuita.
“A fim de fortalecer as capacidades de defesa dos países do continente, estamos desenvolvendo a cooperação nas esferas militar e técnico-militar”, disse Putin na cúpula, destacando que as nações poderão participar de exercícios militares em território russo para se familiarizar com armamentos de nova geração.
Na última edição da cúpula, em 2019, a Rússia já havia assinado contratos de cooperação militar no valor de US$ 10 bilhões (R$ 47 bilhões). Sistemas de defesa aérea do consórcio militar russo Almaz-Antéi também foram expostos aos líderes na ocasião.
Graças ao apoio do Kremlin, alguns países africanos abdicaram da aliança que tinham com a França — que possui um longo histórico de colonização no continente — em favor de Moscou. Desde 2020, ano seguinte ao fórum Rússia-África, quatro países sob influência russa sofreram golpes militares: Mali, Burkina Faso, Guiné e, nesta semana, o Níger, último aliado do Ocidente no Sahel.
50 mil toneladas de grãos
A promessa de Putin ocorre após o fim do acordo de exportação de grãos do Mar Negro, que foi costurado pela ONU e Turquia para que a Ucrânia pudesse exportar grãos. Após o fim do acordo, existia um temor pela disparada dos preços dos alimentos.
“Nos próximos meses poderemos garantir remessas gratuitas de 25 mil a 50 mil toneladas de grãos para Burkina Faso, Zimbábue, Mali, Somália, República Centro-Africana e Eritreia”, disse ele, em um discurso transmitido pela televisão russa.
Execrado no Ocidente e com a autoridade testada dentro de seu país por um motim fracassado, Putin precisa projetar normalidade e assegurar apoio de aliados. Portanto, nesta quinta-feira, ele recebeu líderes da África para uma cúpula relâmpago como parte de sua contínua projeção em um continente que se tornou crítico para a política externa de Moscou.
Saiba mais sobre a Rússia
Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, alguns países africanos têm apoiado Putin nas Nações Unidas, recebido seus enviados e navios de guerra e oferecido controle de ativos lucrativos, como uma mina de ouro na República Centro-Africana que, estimam autoridades dos Estados Unidos, contém uma reserva de US$ 1 bilhão do minério.
Cúpula esvaziada
Mas ainda que Putin tenha buscado se aproximar de líderes africanos à medida que foi adiante com sua guerra, neste momento o conflito de 17 meses tensiona as relações. A cúpula recebeu apenas metade do número de chefes de Estado ou governo africanos em comparação à última reunião, em 2019, situação que o Kremlin atribuiu na quarta-feira à “interferência insolente” dos EUA e seus aliados.
A cúpula ocorre em meio a um cenário de tensões em escalada no Mar Negro em razão da recente decisão de Putin de pôr fim a um acordo que permitia à Ucrânia exportar grãos para mercados globais. A retirada da Rússia tem feito preços de alimentos aumentar, agravando a miséria nos países mais pobres do mundo, incluindo alguns cujos líderes compareceram à cúpula Rússia-África.
Enquanto as autoridades africanas se preparavam para o encontro com Putin, a Força Aérea russa pulverizou o porto ucraniano de Odessa, um entreposto de distribuição crucial para a exportação de grãos. E em dias recentes, autoridades americanas e britânicas alertaram a respeito das ações cada vez mais agressivas da Rússia no Mar Negro.
A indignação provocada pelo fim do acordo de grãos — o ministério queniano de Relações Exteriores classificou a decisão de Putin como uma “facada nas costas” — colocou o líder russo na defensiva. Em um artigo publicado anteriormente à cúpula, o presidente afirmou que pretende compensar os países africanos fornecendo-lhes grãos russos, mesmo que gratuitamente.
Simultaneamente, as nações ocidentais aproveitaram a oportunidade para desgastar a relação de Putin com seus convidados africanos. “O presidente Putin parece determinado em causar tanto sofrimento no mundo quanto puder”, afirmou a embaixadora dos EUA na ONU, Barbara Woodward, na terça-feira. “A Rússia está levando a África à pobreza.”
Grupo Wagner
Ainda que a política em torno dos grãos tenha dominado o debate público da cúpula, privadamente, alguns líderes africanos pressionaram Putin a respeito do destino do grupo paramilitar Wagner, que praticou uma tentativa fracassada de motim contra a liderança militar da Rússia no mês passado.
Apesar de ser mais conhecido por combater na Ucrânia, o Grupo Wagner tem forças estacionadas na África em países como República Centro-Africana e Mali, onde os mercenários exploram minas de ouro e diamantes em troca de apoio a frágeis regimes autoritários.
Na cúpula, Putin assegurou pessoalmente seus parceiros africanos de que, aconteça o que acontecer ao Grupo Wagner, sua parceria com a Rússia “não evaporará proximamente”, afirmou a analista Catrina Doxsee, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, um instituto sem fins lucrativos.
A cúpula ocorre conforme Putin busca demonstrar que a Rússia ainda tem poder de fogo geopolítico apesar do isolamento no tempo de guerra. Desde a invasão à Ucrânia, o Kremlin incrementou a atividade diplomática junto a países em desenvolvimento, tentando angariar apoio classificando o conflito na Ucrânia como uma reação contra o Ocidente imperialista e sedento de poder.
A cúpula desta quinta e sexta-feira é o mais recente de uma série de pomposos eventos em capitais mundiais — incluindo Pequim, Bruxelas, Istambul e Washington — organizados por governos em busca de fortalecer laços com a África. Projeta-se que população do continente dobrará no próximo quarto de século, e os países africanos possuem grandes reservas dos minerais necessários às indústrias do futuro, como veículos elétricos.
Esforços diplomáticos com o continente africano
O governo Biden organizou sua cúpula com líderes africanos em dezembro, recebendo quase 50 líderes do continente em Washington e anunciando bilhões em ajudas e investimentos. Uma torrente de graduadas autoridades americanas viajou à África desde então, incluindo a vice-presidente Kamala Harris. O governo americano afirma que ajudou a firmar 75 contratos comerciais que totalizam US$ 5,7 bilhões.
Os esforços de Washington foram em parte vistos como uma resposta à projeção diplomática cada vez maior de Moscou na África. Desde fevereiro, por exemplo, o ministro russo das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, visitou uma dúzia de países africanos, incluindo aliados dos EUA em segurança, como o Quênia.
Em São Petersburgo, Putin teve chance de maravilhar seus convidados africanos com a beleza monumental de sua cidade-natal. A cúpula ocorre em um centro de exibição próximo a dois dos mais extravagantes palácios imperiais da Rússia.
Ainda assim, um número considerável de líderes africanos escolheu ficar longe. Quarenta e cinco chefes de Estado ou governo compareceram à cúpula Rússia-África anterior, realizada na cidade costeira de Sochi, em 2019. Desta vez, 21 confirmaram presença, segundo informou na terça-feira o conselheiro de política externa do Kremlin, Yuri Ushakov — outros países africanos seriam representados por ministros ou autoridades graduadas.
Na quarta-feira, o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, atribuiu o baixo comparecimento em parte à “interferência absolutamente aberta e insolente de EUA, França e outros governos por meio de representantes em países africanos”.
Confirmaram presença os presidentes Cyril Ramaphosa, da África do Sul, Macky Sall, do Senegal, e Azali Assoumani, de Comores, que atualmente preside a União Africana. Eles compuseram uma delegação de líderes africanos que viajou à Ucrânia e à Russia em junho numa tentativa de intermediar uma negociação para o pôr fim à guerra. Mas retornaram com pouco a mostrar por seus esforços — depararam-se com ataques aéreos russos em Kiev e se reuniram com Putin em São Petersburgo, onde o líder russo mostrou pouco interesse na paz.
Grande influência na África durante a Guerra Fria, Moscou praticamente desapareceu do continente nos anos 90 e início da década de 2000. Mas Putin se dedicou a revigorar essas relações como parte de seu esforço para restabelecer na arena internacional o que ele considera a glória perdida da Rússia.
Prejudicado por sanções internacionais e uma economia que diminui, o líder russo não pode gastar muito: Moscou não envia quase nenhuma ajuda humanitária para a África e seu comércio com o continente totaliza em torno de US$ 18 bilhões há anos, apesar de Putin ter prometido, em 2019, aumentar o montante para US$ 40 bilhões. Além disso, a Rússia oferece pouca ou nenhuma ajuda em áreas importantes para a maioria dos países africanos, como mudanças climáticas, renegociações de dívidas e tecnologia.
Laços com Moscou
Mas os laços educacionais inaugurados durante a Guerra Fria permanecem firmes. Pelo menos 35 mil africanos estudam atualmente na Rússia, mais de 6 mil com bolsas de estudo do governo, de acordo com o Kremlin. E o continente é um forte mercado para armas e mercenários russos.
De 2018 a 2022, a Rússia desbancou a China tornando-se a maior fornecedora de armas à África Subsaariana, suprindo 26% de todas as importações de armas na região, de acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo. Ao mesmo tempo, mercenários Wagner se instalaram na República Centro-Africana, na Líbia, no Mali e no Sudão.
Putin ampliou essas relações depois de invadir a Ucrânia, aproximando-se de países africanos tão rapidamente quanto o Ocidente o isolava.
Contribuindo com a energética diplomacia de Lavrov, os líderes da África do Sul, ainda gratos pelo apoio soviético na luta contra o apartheid, permitiram que a Rússia realizasse exercícios militares conjuntos com a China em águas sul-africanas em fevereiro.
A África emergiu como o bloco mais simpático à Rússia nas Nações Unidas: numa votação de fevereiro, conclamando a Rússia a retirar-se da Ucrânia, 22 países da União Africana, de 54 membros, se abstiveram ou não votaram. Eritreia e Mali votaram contra a resolução.
O Tribunal Penal Internacional, que emitiu um mandato de prisão contra Putin em março, complicou a reaproximação dele com a África. Putin teve de cancelar uma viagem marcada no próximo mês para a África do Sul para a cúpula anual do BRICS, bloco que reúne nações em desenvolvimento. Isso poupou as autoridades sul-africanas de um problema espinhoso: enquanto signatária da corte criminal, a África do Sul estaria legalmente obrigada a prender Putin.
As relações dos EUA com a África do Sul estão tensas desde maio, quando o embaixador americano acusou o governo sul-africano de enviar armas para Moscou.
Em seu artigo que tratou da cúpula, Putin retratou a si próprio como um defensor da causa africana de extirpar o “amargo legado do colonialismo e neocolonialismo”. O líder russo reivindicou mais representação para a África em organismos globais como o Conselho de Segurança da ONU e o Banco Mundial.
O presidente Joe Biden, contudo, emitiu chamados similares, e muitos países africanos condenaram a agressão russa à Ucrânia. O Grupo Wagner tem hoje combatentes estacionados em apenas quatro países da África (apesar de sua influência, por meio das campanhas russas de propaganda, abranger várias nações do continente). Mas para muitos líderes africanos a questão determinante pode ser se Putin continua ou não o homem-forte que ele há muito afirma ser — especialmente após o motim que minou sua autoridade tanto dentro da Rússia quanto na África./NY TIMES e AFP