O presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu no sábado, 9, mais um sinal de alinhamento à Rússia ao dizer que Vladimir Putin — com um mandado de prisão nas costas emitido pelo Tribunal de Haia desde março por crimes de guerra na Ucrânia — não será preso se vier ao Brasil. O País sediará no ano que vem a cúpula anual do G-20 e a Rússia, como país-membro, está convidada.
“O que eu posso dizer é que, se eu sou o presidente do Brasil e ele for para o Brasil, não há por que ele ser preso”, afirmou em entrevista ao canal indiano Firstpost.
“Ninguém vai desrespeitar o Brasil, porque tentar prender ele no Brasil é desrespeitar o Brasil”, completou Lula.
Um blefe?
A exagerada demonstração de soberania tem pinta de blefe. As declarações não fazem sentido do ponto de vista jurídico nem político. Além disso, uma visita do líder russo ao País, no atual contexto geopolítico, traria mais prejuízos que benefícios.
O Tribunal Penal Internacional não tem poder de polícia, nem como obrigar, pela força, países signatários do Estatuto de Roma a cumprir seus mandados de prisão. Tampouco tem condições de desrespeitar um de seus Estados-parte. O Tribunal apenas envia os mandados de prisão a quem, como o Brasil, topou fazer parte da Corte.
Esse trâmite está previsto no artigo 59 do Estatuto de Roma, que define o funcionamento do TPI. Segundo o texto, o Estado-parte que receber um pedido de prisão preventiva adotará imediatamente as medidas necessárias para cumpri-lo. Caso isso não ocorra, o Estado-parte é denunciado à Assembleia-Geral da ONU, e no limite, ao Conselho de Segurança, que podem adotar medidas contra ele.
Quem pode prender Putin?
Quando o Brasil assinou o Estatuto de Roma, em 2002, ficou de definir, via Congresso, a lei que detalharia juridicamente a cooperação internacional com o TPI. O problema é que o projeto de lei que diz qual o caminho jurídico para cumprir os mandados vindos de Haia está parado na Câmara desde 2013.
Mas, sem esse projeto de lei, caberia a Lula decidir sobre isso? A resposta é não.
Em 2009, O TPI enviou ao Brasil, via a embaixada brasileira na Holanda, o pedido de prisão do ditador sudanês Omar Bashir, por crimes de guerra e genocídio em Darfur, e o STF se manifestou sobre o tema.
Relatora do caso, a ministra Rosa Weber decidiu que caberia a um juiz federal de primeira instância se pronunciar, já que o Supremo não poderia julgá-lo por analogia a um processo de extradição. Isso, segundo Rosa, seria extrapolar os limites constitucionais da Corte.
Ou seja, a decisão caberia ao Judiciário, não ao presidente, que pode muito, mas não pode tudo.
Bashir acabou derrubado em um golpe de Estado e julgado por outros crimes cometidos no Sudão. Os militares que o substituíram prometeram em 2021 entregá-lo ao TPI, mas até agora nada foi feito. Seu caso, no entanto, é um exemplo de como é difícil que um mandado de prisão seja cumprido.
Apenas na América Latina e na Europa a adesão ao TPI é majoritária. Países como EUA, Israel, Rússia, Cuba e China não fazem parte do acordo.
Prejuízo político
Os mandados de prisão em Haia tem um valor mais político do que prático. Visam constranger o líder suspeito de crimes de guerra e contra a humanidade perante a comunidade internacional, além de pressionar aliados desses líderes a evitar desagravos como o de Lula na entrevista de ontem.
Em julho deste ano, Putin desistiu de uma viagem à cúpula do Brics na África do Sul em comum acordo com o presidente Cyrill Ramaphosa. Assim como o Brasil, o país africano faz parte do Estatuto de Roma, e assim como Lula, Ramaphosa tem uma relação próxima com o líder russo.
Caso recebesse Putin e passasse por cima da obrigação legal de prendê-lo, Ramaphosa arrumaria para si uma dor de cabeça desnecessária, em um momento em que Pretória, cada vez mais próxima de Rússia e China, não quer queimar pontes com americanos e europeus.
O paralelo do caso sul-africano com o Brasil, aqui, é óbvio. Ambos são membros do Brics, neutros no conflito na Ucrânia e adeptos de uma certa independência diplomática entre Ocidente e Oriente.
A questão que fica é: o que o Brasil ganha politicamente com isso? Lula marcou alguns pontos com o Kremlin, mas isso faz pouco pela sua pretensão de se colocar como um negociador pelo fim da guerra na arena internacional.
Além disso, Lula pode afagar Putin e criticar o dólar o quanto quiser, mas sabe que precisa de Washington e Bruxelas quando o tema é transição energética e mudança climática. Se ele quer financiamento para ações pelo clima, declarações do tipo não ajudam. Lula sabe também que a rápida reação do Departamento de Estado e do presidente Joe Biden à sua vitória em outubro contribuiu para a normalidade democrática no País.
Receber o líder russo também confirmaria ao resto do mundo a ideia de que Putin tem amigos em Brasília e a neutralidade brasileira na Ucrânia, na verdade, é uma posição pró-Moscou.
Resta saber se o próprio Putin deixará o conforto do Kremlin para atender o convite e o que teria a ganhar com isso. Afinal, a Índia não é signatária do Estatuto de Roma e Vladimir preferiu ficar em casa a ir ao G-20 este ano.
Como diria Mané Garrincha, falta combinar com os russos.
*É subeditor de Internacional