Putin reestatiza empresas e cria nova elite de oligarcas, de olho em eleições e guerra na Ucrânia


Kremlin retoma o controle de setores estratégicos durante a guerra prolongada e aumenta o controle sobre a elite econômica russa

Por Jéssica Petrovna

Com o colapso da antiga União Soviética a economia russa passou por uma “terapia de choque”. Esse foi o termo usado pelo então presidente Boris Yeltsin para a transição ao capitalismo, com uma série de privatizações. A abertura criou a figura do oligarca russo que dá sustentação ao sucessor, Vladimir Putin, há mais de 20 anos. É justamente essa elite que agora passa por uma espécie de renovação enquanto o presidente russo avança sem alarde para retomar o controle de empresas estratégicas depois de avançar sobre a Ucrânia.

O processo de privatização da economia russa desacelerou por dez anos até que a tendência se inverteu, mas foi depois da guerra que a retomada das empresas ganhou tração. O ponto de virada foi em 2021, com a nacionalização de uma única empresa produtora de sulfato de sódio (químico usado nas indústrias de vidro e produtos de limpeza). No ano seguinte, já durante a guerra, foram mais quatro companhias. Este ano, já são 18.

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É o que mostra o levantamento enviado ao Estadão por Ilia Shumanov, diretor da ONG Transparência Internacional na Rússia, ou do que sobrou dela — um grupo de pesquisadores que atua de forma independente para manter o trabalho da organização, considerada “indesejável” pelo Kremlin.

Imagem noturna mostra o Kremlin, sede do governo russo em Moscou. Foto: NATALIA KOLESNIKOVA / AFP

Os processos são conduzidos pela procuradoria-geral russa que de modo geral tem apontado supostas ilegalidades nas privatizações, algumas de 30 anos atrás, como justificativa para revertê-las. Foi o que aconteceu este ano com a Metafrax Chemicals, que teve 94% das ações tomadas pela Federação Russa.

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A empresa é um dos maiores produtores de metanol — composto tem diversos usos (da indústria aos biocombustíveis) e a ação acendeu o alerta de analistas russos para um possível efeito cascata. O caso é emblemático porque colocou em xeque a competência do órgão que foi responsável pela privatização, em 1992, e pode servir como base para contestação de outras aquisições após o fim da URSS.

A tomada das empresas pelo Estado está concentrada em áreas estratégicas para economia russa como as indústrias militar e química, energia, portos e agricultura. Para analistas, a jogada tem dois objetivos: retomar o controle sobre áreas estratégicas durante a guerra prolongada ao mesmo tempo em que renova a elite russa. Saem os oligarcas e entram os administradores com menos poder e influência.

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“Essas pessoas deverão sua riqueza pessoalmente a Putin e serão diretamente dependentes do Kremlin para preservar essa riqueza”, afirma Alexandra Prokopenko, pesquisadora em política econômica russa e ex-conselheira do Banco da Rússia ao Estadão.

Na mesma linha, o professor de ciência política em Moscou Nikolai Petrov em artigo publicado na Chatham House compara essa nova elite aos “red directors” da antiga União Soviética: “são administradores e não proprietários, não tem poder político independente”.

A negativa de Putin

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O processo ocorria de forma discreta até que o presidente da União de Indústrias e Empresas da Rússia, Alexander Shokhin, chamou atenção. “Ninguém sabe quem pode ser o próximo da fila”, disse em entrevista à imprensa local, ao ser questionado como as empresas reagiam aos rumores de nacionalização. “Reagem mal”, declarou.

Vladimir Putin então foi obrigado a se explicar e negou. “Não haverá desprivatização. Posso te dizer isso com certeza. A procuradoria-geral está investigando alguns casos pontuais, algumas companhias, mas é diferente”, reagiu Putin durante um fórum econômico na Rússia, no mês passado. “Não tem nada a ver com política ou desprivatização. Isso não vai acontecer”, repetiu. Depois disso, nenhuma nova nacionalização foi concluída.

Putin discursa em fórum econômico em Vladivostok, Rússia. Na ocasião, ele negou que processo de nacionalização esteja em curso.  Foto: Sputnik/Pavel Bednyakov/Pool via Reuters
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A negativa, no entanto, não convence quem acompanha o processo com lupa. “Eu não poderia dizer que houve casos particulares. Essa foi uma enorme onda de nacionalização em vários setores”, aponta Ilia Shumanov.

As justificativas do Kremlin podem ser divididas em basicamente três tipos: irregularidades nas privatizações, violações das leis anti-corrupção e retomada de empresas estratégicas que estavam sob o controle de empresários estrangeiros. “Tudo isso tem levado uma mudança de controle do setor privado para o governamental em empresas estratégicas da Rússia”, enfatiza Shumanov.

Por trás do processo, indicam especialistas, estaria a desconfiança do Kremlin com essa elite política russa, especialmente depois da rebelião do grupo Wagner, que ameaçou o poder de Vladimir Putin.

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‘Putin já tinha “domado” os oligarcas em anos anteriores e aqueles que não se dobraram acabaram presos ou exilados. Ele via o terreno político e econômico como relativamente estabilizado”, lembra o historiador da USP Angelo Segrillo, especializado em Rússia e União Soviética.

“Mas susto do motim de Ievgeni Prigozhin — um ataque súbito no coração do sistema reabriu os olhos de Putin para o fato de que o seu controle não era total como ele imaginava. Essa nova fase de aperto serve para certificar que não sairá nenhum apoio poderoso a tentativas rebeldes dentro do setor econômico russo”.

Os alvos

A lista de alvos inclui alguns dos homens mais poderosos da Rússia e críticos de Vladimir Putin. É o caso, por exemplo, de Boris Mints, que deixou o país depois de se tornar um dos poucos oligarcas russos a contestar abertamente a anexação da Crimeia e, posteriormente, a invasão da Ucrânia.

Exilado no Reino Unido, o magnata declarou à rede britânica BBC no ano passado que a “forma tradicional” da Rússia punir empresários críticos ao Kremlin é “abrir ações criminais fabricadas”.

Queixas de processos com motivações políticas são frequentes na Rússia e tem outro oligarca que reforça esse coro: Ziavudin Magomedov — detido em 2018 e condenado a 19 anos de prisão por fraude. O magnata nega a acusação e diz ser vítima de uma conspiração do governo russo para o confisco da sua operadora de portos, a Fesco, alvo da recente onda de nacionalizações.

O homem mais rico da Rússia Andrei Melnichenko, com uma fortuna estimada em US$ 25 bilhões, também chegou a entrar na lista. O processo tinha como alvo a gigante do setor de energia Sibeko, adquirida há cinco anos, mas a procuradoria acabou desistindo da ação este mês em meio ao escrutínio sobre as nacionalizações. Em nota, a empresa afirmou que os dois lados chegaram a um acordo.

Mesmo no momento em que a nacionalização parece ter entrado em modo de espera, o medo de perder propriedade e status pode ser suficiente para deter os oligarcas de qualquer ação contra o governo. “A elite russa está assustada”, destaca Alexandra Prokopenko.

As ruínas da URSS e ascensão dos oligarcas

Hoje, a Rússia de Vladimir Putin parece caminhar na contramão dos anos que seguiram a derrocada da União Soviética.

Com a economia em frangalhos, o então presidente Mikhail Gorbachev (1985-1991), lançou a “glasnost” (abertura política) e a “perestroika” (reestruturação econômica). A abertura enfrentou resistência da linha dura do partido comunista, que tentou um golpe em 1991. O tiro, no entanto, saiu pela culatra: a tentativa de manter o regime soviético sacramentou o seu fim.

Gorbatchov resistiu ao golpe, mas logo passou o comando para Boris Yeltsin, que aproveitou o apoio angariado contra a tentativa de golpe para avançar com a reabertura. Um processo acelerado e caótico.

Foi neste momento que começaram as privatizações, em 1992, com um sistema de vouchers, distribuídos entre os russos para os leilões de privatização. Acontece que a população média russa, assolada pela inflação e pela crise vendia os tickets para aqueles que já tinham construído os seus negócios durante o afrouxamento do governo Gorbachev.

“Os oligarcas não surgiram do nada”, lembra Angelo Segrillo. “Durante a época experimental de transição da Perestroika, quando foram surgindo as primeiras formas não-estatais de propriedade, eles foram se posicionando. Assim que caiu a URSS, eles estavam pertos dos círculos do poder e puderam abocanhar as empresas estatais quando começaram as privatizações”.

No lugar de uma distribuição dos ativos, o que se viu foi uma concentração da riqueza, acentuada na segunda onda de privatizações, em 1995. Essa poderosa figura do oligarca russo ajudou a manter Boris Yeltsin e eleger o seu sucessor Vladimir Putin.

“Na era Yeltsin, os oligarcas eram bilionários que, além do grande poder econômico, tinham também um grande poder político (plutocratas). Alguns até se tornaram ministros. Putin, por sua vez, controlou os antigos oligarcas da era Yeltsin e os atuais bilionários são mais obedientes as suas ordens”, conclui Segrillo. Pelo menos era isso que parecia até a guerra na Ucrânia e o maior sinal de ameaça ao governo Putin.

Com o colapso da antiga União Soviética a economia russa passou por uma “terapia de choque”. Esse foi o termo usado pelo então presidente Boris Yeltsin para a transição ao capitalismo, com uma série de privatizações. A abertura criou a figura do oligarca russo que dá sustentação ao sucessor, Vladimir Putin, há mais de 20 anos. É justamente essa elite que agora passa por uma espécie de renovação enquanto o presidente russo avança sem alarde para retomar o controle de empresas estratégicas depois de avançar sobre a Ucrânia.

O processo de privatização da economia russa desacelerou por dez anos até que a tendência se inverteu, mas foi depois da guerra que a retomada das empresas ganhou tração. O ponto de virada foi em 2021, com a nacionalização de uma única empresa produtora de sulfato de sódio (químico usado nas indústrias de vidro e produtos de limpeza). No ano seguinte, já durante a guerra, foram mais quatro companhias. Este ano, já são 18.

É o que mostra o levantamento enviado ao Estadão por Ilia Shumanov, diretor da ONG Transparência Internacional na Rússia, ou do que sobrou dela — um grupo de pesquisadores que atua de forma independente para manter o trabalho da organização, considerada “indesejável” pelo Kremlin.

Imagem noturna mostra o Kremlin, sede do governo russo em Moscou. Foto: NATALIA KOLESNIKOVA / AFP

Os processos são conduzidos pela procuradoria-geral russa que de modo geral tem apontado supostas ilegalidades nas privatizações, algumas de 30 anos atrás, como justificativa para revertê-las. Foi o que aconteceu este ano com a Metafrax Chemicals, que teve 94% das ações tomadas pela Federação Russa.

A empresa é um dos maiores produtores de metanol — composto tem diversos usos (da indústria aos biocombustíveis) e a ação acendeu o alerta de analistas russos para um possível efeito cascata. O caso é emblemático porque colocou em xeque a competência do órgão que foi responsável pela privatização, em 1992, e pode servir como base para contestação de outras aquisições após o fim da URSS.

A tomada das empresas pelo Estado está concentrada em áreas estratégicas para economia russa como as indústrias militar e química, energia, portos e agricultura. Para analistas, a jogada tem dois objetivos: retomar o controle sobre áreas estratégicas durante a guerra prolongada ao mesmo tempo em que renova a elite russa. Saem os oligarcas e entram os administradores com menos poder e influência.

“Essas pessoas deverão sua riqueza pessoalmente a Putin e serão diretamente dependentes do Kremlin para preservar essa riqueza”, afirma Alexandra Prokopenko, pesquisadora em política econômica russa e ex-conselheira do Banco da Rússia ao Estadão.

Na mesma linha, o professor de ciência política em Moscou Nikolai Petrov em artigo publicado na Chatham House compara essa nova elite aos “red directors” da antiga União Soviética: “são administradores e não proprietários, não tem poder político independente”.

A negativa de Putin

O processo ocorria de forma discreta até que o presidente da União de Indústrias e Empresas da Rússia, Alexander Shokhin, chamou atenção. “Ninguém sabe quem pode ser o próximo da fila”, disse em entrevista à imprensa local, ao ser questionado como as empresas reagiam aos rumores de nacionalização. “Reagem mal”, declarou.

Vladimir Putin então foi obrigado a se explicar e negou. “Não haverá desprivatização. Posso te dizer isso com certeza. A procuradoria-geral está investigando alguns casos pontuais, algumas companhias, mas é diferente”, reagiu Putin durante um fórum econômico na Rússia, no mês passado. “Não tem nada a ver com política ou desprivatização. Isso não vai acontecer”, repetiu. Depois disso, nenhuma nova nacionalização foi concluída.

Putin discursa em fórum econômico em Vladivostok, Rússia. Na ocasião, ele negou que processo de nacionalização esteja em curso.  Foto: Sputnik/Pavel Bednyakov/Pool via Reuters

A negativa, no entanto, não convence quem acompanha o processo com lupa. “Eu não poderia dizer que houve casos particulares. Essa foi uma enorme onda de nacionalização em vários setores”, aponta Ilia Shumanov.

As justificativas do Kremlin podem ser divididas em basicamente três tipos: irregularidades nas privatizações, violações das leis anti-corrupção e retomada de empresas estratégicas que estavam sob o controle de empresários estrangeiros. “Tudo isso tem levado uma mudança de controle do setor privado para o governamental em empresas estratégicas da Rússia”, enfatiza Shumanov.

Por trás do processo, indicam especialistas, estaria a desconfiança do Kremlin com essa elite política russa, especialmente depois da rebelião do grupo Wagner, que ameaçou o poder de Vladimir Putin.

‘Putin já tinha “domado” os oligarcas em anos anteriores e aqueles que não se dobraram acabaram presos ou exilados. Ele via o terreno político e econômico como relativamente estabilizado”, lembra o historiador da USP Angelo Segrillo, especializado em Rússia e União Soviética.

“Mas susto do motim de Ievgeni Prigozhin — um ataque súbito no coração do sistema reabriu os olhos de Putin para o fato de que o seu controle não era total como ele imaginava. Essa nova fase de aperto serve para certificar que não sairá nenhum apoio poderoso a tentativas rebeldes dentro do setor econômico russo”.

Os alvos

A lista de alvos inclui alguns dos homens mais poderosos da Rússia e críticos de Vladimir Putin. É o caso, por exemplo, de Boris Mints, que deixou o país depois de se tornar um dos poucos oligarcas russos a contestar abertamente a anexação da Crimeia e, posteriormente, a invasão da Ucrânia.

Exilado no Reino Unido, o magnata declarou à rede britânica BBC no ano passado que a “forma tradicional” da Rússia punir empresários críticos ao Kremlin é “abrir ações criminais fabricadas”.

Queixas de processos com motivações políticas são frequentes na Rússia e tem outro oligarca que reforça esse coro: Ziavudin Magomedov — detido em 2018 e condenado a 19 anos de prisão por fraude. O magnata nega a acusação e diz ser vítima de uma conspiração do governo russo para o confisco da sua operadora de portos, a Fesco, alvo da recente onda de nacionalizações.

O homem mais rico da Rússia Andrei Melnichenko, com uma fortuna estimada em US$ 25 bilhões, também chegou a entrar na lista. O processo tinha como alvo a gigante do setor de energia Sibeko, adquirida há cinco anos, mas a procuradoria acabou desistindo da ação este mês em meio ao escrutínio sobre as nacionalizações. Em nota, a empresa afirmou que os dois lados chegaram a um acordo.

Mesmo no momento em que a nacionalização parece ter entrado em modo de espera, o medo de perder propriedade e status pode ser suficiente para deter os oligarcas de qualquer ação contra o governo. “A elite russa está assustada”, destaca Alexandra Prokopenko.

As ruínas da URSS e ascensão dos oligarcas

Hoje, a Rússia de Vladimir Putin parece caminhar na contramão dos anos que seguiram a derrocada da União Soviética.

Com a economia em frangalhos, o então presidente Mikhail Gorbachev (1985-1991), lançou a “glasnost” (abertura política) e a “perestroika” (reestruturação econômica). A abertura enfrentou resistência da linha dura do partido comunista, que tentou um golpe em 1991. O tiro, no entanto, saiu pela culatra: a tentativa de manter o regime soviético sacramentou o seu fim.

Gorbatchov resistiu ao golpe, mas logo passou o comando para Boris Yeltsin, que aproveitou o apoio angariado contra a tentativa de golpe para avançar com a reabertura. Um processo acelerado e caótico.

Foi neste momento que começaram as privatizações, em 1992, com um sistema de vouchers, distribuídos entre os russos para os leilões de privatização. Acontece que a população média russa, assolada pela inflação e pela crise vendia os tickets para aqueles que já tinham construído os seus negócios durante o afrouxamento do governo Gorbachev.

“Os oligarcas não surgiram do nada”, lembra Angelo Segrillo. “Durante a época experimental de transição da Perestroika, quando foram surgindo as primeiras formas não-estatais de propriedade, eles foram se posicionando. Assim que caiu a URSS, eles estavam pertos dos círculos do poder e puderam abocanhar as empresas estatais quando começaram as privatizações”.

No lugar de uma distribuição dos ativos, o que se viu foi uma concentração da riqueza, acentuada na segunda onda de privatizações, em 1995. Essa poderosa figura do oligarca russo ajudou a manter Boris Yeltsin e eleger o seu sucessor Vladimir Putin.

“Na era Yeltsin, os oligarcas eram bilionários que, além do grande poder econômico, tinham também um grande poder político (plutocratas). Alguns até se tornaram ministros. Putin, por sua vez, controlou os antigos oligarcas da era Yeltsin e os atuais bilionários são mais obedientes as suas ordens”, conclui Segrillo. Pelo menos era isso que parecia até a guerra na Ucrânia e o maior sinal de ameaça ao governo Putin.

Com o colapso da antiga União Soviética a economia russa passou por uma “terapia de choque”. Esse foi o termo usado pelo então presidente Boris Yeltsin para a transição ao capitalismo, com uma série de privatizações. A abertura criou a figura do oligarca russo que dá sustentação ao sucessor, Vladimir Putin, há mais de 20 anos. É justamente essa elite que agora passa por uma espécie de renovação enquanto o presidente russo avança sem alarde para retomar o controle de empresas estratégicas depois de avançar sobre a Ucrânia.

O processo de privatização da economia russa desacelerou por dez anos até que a tendência se inverteu, mas foi depois da guerra que a retomada das empresas ganhou tração. O ponto de virada foi em 2021, com a nacionalização de uma única empresa produtora de sulfato de sódio (químico usado nas indústrias de vidro e produtos de limpeza). No ano seguinte, já durante a guerra, foram mais quatro companhias. Este ano, já são 18.

É o que mostra o levantamento enviado ao Estadão por Ilia Shumanov, diretor da ONG Transparência Internacional na Rússia, ou do que sobrou dela — um grupo de pesquisadores que atua de forma independente para manter o trabalho da organização, considerada “indesejável” pelo Kremlin.

Imagem noturna mostra o Kremlin, sede do governo russo em Moscou. Foto: NATALIA KOLESNIKOVA / AFP

Os processos são conduzidos pela procuradoria-geral russa que de modo geral tem apontado supostas ilegalidades nas privatizações, algumas de 30 anos atrás, como justificativa para revertê-las. Foi o que aconteceu este ano com a Metafrax Chemicals, que teve 94% das ações tomadas pela Federação Russa.

A empresa é um dos maiores produtores de metanol — composto tem diversos usos (da indústria aos biocombustíveis) e a ação acendeu o alerta de analistas russos para um possível efeito cascata. O caso é emblemático porque colocou em xeque a competência do órgão que foi responsável pela privatização, em 1992, e pode servir como base para contestação de outras aquisições após o fim da URSS.

A tomada das empresas pelo Estado está concentrada em áreas estratégicas para economia russa como as indústrias militar e química, energia, portos e agricultura. Para analistas, a jogada tem dois objetivos: retomar o controle sobre áreas estratégicas durante a guerra prolongada ao mesmo tempo em que renova a elite russa. Saem os oligarcas e entram os administradores com menos poder e influência.

“Essas pessoas deverão sua riqueza pessoalmente a Putin e serão diretamente dependentes do Kremlin para preservar essa riqueza”, afirma Alexandra Prokopenko, pesquisadora em política econômica russa e ex-conselheira do Banco da Rússia ao Estadão.

Na mesma linha, o professor de ciência política em Moscou Nikolai Petrov em artigo publicado na Chatham House compara essa nova elite aos “red directors” da antiga União Soviética: “são administradores e não proprietários, não tem poder político independente”.

A negativa de Putin

O processo ocorria de forma discreta até que o presidente da União de Indústrias e Empresas da Rússia, Alexander Shokhin, chamou atenção. “Ninguém sabe quem pode ser o próximo da fila”, disse em entrevista à imprensa local, ao ser questionado como as empresas reagiam aos rumores de nacionalização. “Reagem mal”, declarou.

Vladimir Putin então foi obrigado a se explicar e negou. “Não haverá desprivatização. Posso te dizer isso com certeza. A procuradoria-geral está investigando alguns casos pontuais, algumas companhias, mas é diferente”, reagiu Putin durante um fórum econômico na Rússia, no mês passado. “Não tem nada a ver com política ou desprivatização. Isso não vai acontecer”, repetiu. Depois disso, nenhuma nova nacionalização foi concluída.

Putin discursa em fórum econômico em Vladivostok, Rússia. Na ocasião, ele negou que processo de nacionalização esteja em curso.  Foto: Sputnik/Pavel Bednyakov/Pool via Reuters

A negativa, no entanto, não convence quem acompanha o processo com lupa. “Eu não poderia dizer que houve casos particulares. Essa foi uma enorme onda de nacionalização em vários setores”, aponta Ilia Shumanov.

As justificativas do Kremlin podem ser divididas em basicamente três tipos: irregularidades nas privatizações, violações das leis anti-corrupção e retomada de empresas estratégicas que estavam sob o controle de empresários estrangeiros. “Tudo isso tem levado uma mudança de controle do setor privado para o governamental em empresas estratégicas da Rússia”, enfatiza Shumanov.

Por trás do processo, indicam especialistas, estaria a desconfiança do Kremlin com essa elite política russa, especialmente depois da rebelião do grupo Wagner, que ameaçou o poder de Vladimir Putin.

‘Putin já tinha “domado” os oligarcas em anos anteriores e aqueles que não se dobraram acabaram presos ou exilados. Ele via o terreno político e econômico como relativamente estabilizado”, lembra o historiador da USP Angelo Segrillo, especializado em Rússia e União Soviética.

“Mas susto do motim de Ievgeni Prigozhin — um ataque súbito no coração do sistema reabriu os olhos de Putin para o fato de que o seu controle não era total como ele imaginava. Essa nova fase de aperto serve para certificar que não sairá nenhum apoio poderoso a tentativas rebeldes dentro do setor econômico russo”.

Os alvos

A lista de alvos inclui alguns dos homens mais poderosos da Rússia e críticos de Vladimir Putin. É o caso, por exemplo, de Boris Mints, que deixou o país depois de se tornar um dos poucos oligarcas russos a contestar abertamente a anexação da Crimeia e, posteriormente, a invasão da Ucrânia.

Exilado no Reino Unido, o magnata declarou à rede britânica BBC no ano passado que a “forma tradicional” da Rússia punir empresários críticos ao Kremlin é “abrir ações criminais fabricadas”.

Queixas de processos com motivações políticas são frequentes na Rússia e tem outro oligarca que reforça esse coro: Ziavudin Magomedov — detido em 2018 e condenado a 19 anos de prisão por fraude. O magnata nega a acusação e diz ser vítima de uma conspiração do governo russo para o confisco da sua operadora de portos, a Fesco, alvo da recente onda de nacionalizações.

O homem mais rico da Rússia Andrei Melnichenko, com uma fortuna estimada em US$ 25 bilhões, também chegou a entrar na lista. O processo tinha como alvo a gigante do setor de energia Sibeko, adquirida há cinco anos, mas a procuradoria acabou desistindo da ação este mês em meio ao escrutínio sobre as nacionalizações. Em nota, a empresa afirmou que os dois lados chegaram a um acordo.

Mesmo no momento em que a nacionalização parece ter entrado em modo de espera, o medo de perder propriedade e status pode ser suficiente para deter os oligarcas de qualquer ação contra o governo. “A elite russa está assustada”, destaca Alexandra Prokopenko.

As ruínas da URSS e ascensão dos oligarcas

Hoje, a Rússia de Vladimir Putin parece caminhar na contramão dos anos que seguiram a derrocada da União Soviética.

Com a economia em frangalhos, o então presidente Mikhail Gorbachev (1985-1991), lançou a “glasnost” (abertura política) e a “perestroika” (reestruturação econômica). A abertura enfrentou resistência da linha dura do partido comunista, que tentou um golpe em 1991. O tiro, no entanto, saiu pela culatra: a tentativa de manter o regime soviético sacramentou o seu fim.

Gorbatchov resistiu ao golpe, mas logo passou o comando para Boris Yeltsin, que aproveitou o apoio angariado contra a tentativa de golpe para avançar com a reabertura. Um processo acelerado e caótico.

Foi neste momento que começaram as privatizações, em 1992, com um sistema de vouchers, distribuídos entre os russos para os leilões de privatização. Acontece que a população média russa, assolada pela inflação e pela crise vendia os tickets para aqueles que já tinham construído os seus negócios durante o afrouxamento do governo Gorbachev.

“Os oligarcas não surgiram do nada”, lembra Angelo Segrillo. “Durante a época experimental de transição da Perestroika, quando foram surgindo as primeiras formas não-estatais de propriedade, eles foram se posicionando. Assim que caiu a URSS, eles estavam pertos dos círculos do poder e puderam abocanhar as empresas estatais quando começaram as privatizações”.

No lugar de uma distribuição dos ativos, o que se viu foi uma concentração da riqueza, acentuada na segunda onda de privatizações, em 1995. Essa poderosa figura do oligarca russo ajudou a manter Boris Yeltsin e eleger o seu sucessor Vladimir Putin.

“Na era Yeltsin, os oligarcas eram bilionários que, além do grande poder econômico, tinham também um grande poder político (plutocratas). Alguns até se tornaram ministros. Putin, por sua vez, controlou os antigos oligarcas da era Yeltsin e os atuais bilionários são mais obedientes as suas ordens”, conclui Segrillo. Pelo menos era isso que parecia até a guerra na Ucrânia e o maior sinal de ameaça ao governo Putin.

Com o colapso da antiga União Soviética a economia russa passou por uma “terapia de choque”. Esse foi o termo usado pelo então presidente Boris Yeltsin para a transição ao capitalismo, com uma série de privatizações. A abertura criou a figura do oligarca russo que dá sustentação ao sucessor, Vladimir Putin, há mais de 20 anos. É justamente essa elite que agora passa por uma espécie de renovação enquanto o presidente russo avança sem alarde para retomar o controle de empresas estratégicas depois de avançar sobre a Ucrânia.

O processo de privatização da economia russa desacelerou por dez anos até que a tendência se inverteu, mas foi depois da guerra que a retomada das empresas ganhou tração. O ponto de virada foi em 2021, com a nacionalização de uma única empresa produtora de sulfato de sódio (químico usado nas indústrias de vidro e produtos de limpeza). No ano seguinte, já durante a guerra, foram mais quatro companhias. Este ano, já são 18.

É o que mostra o levantamento enviado ao Estadão por Ilia Shumanov, diretor da ONG Transparência Internacional na Rússia, ou do que sobrou dela — um grupo de pesquisadores que atua de forma independente para manter o trabalho da organização, considerada “indesejável” pelo Kremlin.

Imagem noturna mostra o Kremlin, sede do governo russo em Moscou. Foto: NATALIA KOLESNIKOVA / AFP

Os processos são conduzidos pela procuradoria-geral russa que de modo geral tem apontado supostas ilegalidades nas privatizações, algumas de 30 anos atrás, como justificativa para revertê-las. Foi o que aconteceu este ano com a Metafrax Chemicals, que teve 94% das ações tomadas pela Federação Russa.

A empresa é um dos maiores produtores de metanol — composto tem diversos usos (da indústria aos biocombustíveis) e a ação acendeu o alerta de analistas russos para um possível efeito cascata. O caso é emblemático porque colocou em xeque a competência do órgão que foi responsável pela privatização, em 1992, e pode servir como base para contestação de outras aquisições após o fim da URSS.

A tomada das empresas pelo Estado está concentrada em áreas estratégicas para economia russa como as indústrias militar e química, energia, portos e agricultura. Para analistas, a jogada tem dois objetivos: retomar o controle sobre áreas estratégicas durante a guerra prolongada ao mesmo tempo em que renova a elite russa. Saem os oligarcas e entram os administradores com menos poder e influência.

“Essas pessoas deverão sua riqueza pessoalmente a Putin e serão diretamente dependentes do Kremlin para preservar essa riqueza”, afirma Alexandra Prokopenko, pesquisadora em política econômica russa e ex-conselheira do Banco da Rússia ao Estadão.

Na mesma linha, o professor de ciência política em Moscou Nikolai Petrov em artigo publicado na Chatham House compara essa nova elite aos “red directors” da antiga União Soviética: “são administradores e não proprietários, não tem poder político independente”.

A negativa de Putin

O processo ocorria de forma discreta até que o presidente da União de Indústrias e Empresas da Rússia, Alexander Shokhin, chamou atenção. “Ninguém sabe quem pode ser o próximo da fila”, disse em entrevista à imprensa local, ao ser questionado como as empresas reagiam aos rumores de nacionalização. “Reagem mal”, declarou.

Vladimir Putin então foi obrigado a se explicar e negou. “Não haverá desprivatização. Posso te dizer isso com certeza. A procuradoria-geral está investigando alguns casos pontuais, algumas companhias, mas é diferente”, reagiu Putin durante um fórum econômico na Rússia, no mês passado. “Não tem nada a ver com política ou desprivatização. Isso não vai acontecer”, repetiu. Depois disso, nenhuma nova nacionalização foi concluída.

Putin discursa em fórum econômico em Vladivostok, Rússia. Na ocasião, ele negou que processo de nacionalização esteja em curso.  Foto: Sputnik/Pavel Bednyakov/Pool via Reuters

A negativa, no entanto, não convence quem acompanha o processo com lupa. “Eu não poderia dizer que houve casos particulares. Essa foi uma enorme onda de nacionalização em vários setores”, aponta Ilia Shumanov.

As justificativas do Kremlin podem ser divididas em basicamente três tipos: irregularidades nas privatizações, violações das leis anti-corrupção e retomada de empresas estratégicas que estavam sob o controle de empresários estrangeiros. “Tudo isso tem levado uma mudança de controle do setor privado para o governamental em empresas estratégicas da Rússia”, enfatiza Shumanov.

Por trás do processo, indicam especialistas, estaria a desconfiança do Kremlin com essa elite política russa, especialmente depois da rebelião do grupo Wagner, que ameaçou o poder de Vladimir Putin.

‘Putin já tinha “domado” os oligarcas em anos anteriores e aqueles que não se dobraram acabaram presos ou exilados. Ele via o terreno político e econômico como relativamente estabilizado”, lembra o historiador da USP Angelo Segrillo, especializado em Rússia e União Soviética.

“Mas susto do motim de Ievgeni Prigozhin — um ataque súbito no coração do sistema reabriu os olhos de Putin para o fato de que o seu controle não era total como ele imaginava. Essa nova fase de aperto serve para certificar que não sairá nenhum apoio poderoso a tentativas rebeldes dentro do setor econômico russo”.

Os alvos

A lista de alvos inclui alguns dos homens mais poderosos da Rússia e críticos de Vladimir Putin. É o caso, por exemplo, de Boris Mints, que deixou o país depois de se tornar um dos poucos oligarcas russos a contestar abertamente a anexação da Crimeia e, posteriormente, a invasão da Ucrânia.

Exilado no Reino Unido, o magnata declarou à rede britânica BBC no ano passado que a “forma tradicional” da Rússia punir empresários críticos ao Kremlin é “abrir ações criminais fabricadas”.

Queixas de processos com motivações políticas são frequentes na Rússia e tem outro oligarca que reforça esse coro: Ziavudin Magomedov — detido em 2018 e condenado a 19 anos de prisão por fraude. O magnata nega a acusação e diz ser vítima de uma conspiração do governo russo para o confisco da sua operadora de portos, a Fesco, alvo da recente onda de nacionalizações.

O homem mais rico da Rússia Andrei Melnichenko, com uma fortuna estimada em US$ 25 bilhões, também chegou a entrar na lista. O processo tinha como alvo a gigante do setor de energia Sibeko, adquirida há cinco anos, mas a procuradoria acabou desistindo da ação este mês em meio ao escrutínio sobre as nacionalizações. Em nota, a empresa afirmou que os dois lados chegaram a um acordo.

Mesmo no momento em que a nacionalização parece ter entrado em modo de espera, o medo de perder propriedade e status pode ser suficiente para deter os oligarcas de qualquer ação contra o governo. “A elite russa está assustada”, destaca Alexandra Prokopenko.

As ruínas da URSS e ascensão dos oligarcas

Hoje, a Rússia de Vladimir Putin parece caminhar na contramão dos anos que seguiram a derrocada da União Soviética.

Com a economia em frangalhos, o então presidente Mikhail Gorbachev (1985-1991), lançou a “glasnost” (abertura política) e a “perestroika” (reestruturação econômica). A abertura enfrentou resistência da linha dura do partido comunista, que tentou um golpe em 1991. O tiro, no entanto, saiu pela culatra: a tentativa de manter o regime soviético sacramentou o seu fim.

Gorbatchov resistiu ao golpe, mas logo passou o comando para Boris Yeltsin, que aproveitou o apoio angariado contra a tentativa de golpe para avançar com a reabertura. Um processo acelerado e caótico.

Foi neste momento que começaram as privatizações, em 1992, com um sistema de vouchers, distribuídos entre os russos para os leilões de privatização. Acontece que a população média russa, assolada pela inflação e pela crise vendia os tickets para aqueles que já tinham construído os seus negócios durante o afrouxamento do governo Gorbachev.

“Os oligarcas não surgiram do nada”, lembra Angelo Segrillo. “Durante a época experimental de transição da Perestroika, quando foram surgindo as primeiras formas não-estatais de propriedade, eles foram se posicionando. Assim que caiu a URSS, eles estavam pertos dos círculos do poder e puderam abocanhar as empresas estatais quando começaram as privatizações”.

No lugar de uma distribuição dos ativos, o que se viu foi uma concentração da riqueza, acentuada na segunda onda de privatizações, em 1995. Essa poderosa figura do oligarca russo ajudou a manter Boris Yeltsin e eleger o seu sucessor Vladimir Putin.

“Na era Yeltsin, os oligarcas eram bilionários que, além do grande poder econômico, tinham também um grande poder político (plutocratas). Alguns até se tornaram ministros. Putin, por sua vez, controlou os antigos oligarcas da era Yeltsin e os atuais bilionários são mais obedientes as suas ordens”, conclui Segrillo. Pelo menos era isso que parecia até a guerra na Ucrânia e o maior sinal de ameaça ao governo Putin.

Com o colapso da antiga União Soviética a economia russa passou por uma “terapia de choque”. Esse foi o termo usado pelo então presidente Boris Yeltsin para a transição ao capitalismo, com uma série de privatizações. A abertura criou a figura do oligarca russo que dá sustentação ao sucessor, Vladimir Putin, há mais de 20 anos. É justamente essa elite que agora passa por uma espécie de renovação enquanto o presidente russo avança sem alarde para retomar o controle de empresas estratégicas depois de avançar sobre a Ucrânia.

O processo de privatização da economia russa desacelerou por dez anos até que a tendência se inverteu, mas foi depois da guerra que a retomada das empresas ganhou tração. O ponto de virada foi em 2021, com a nacionalização de uma única empresa produtora de sulfato de sódio (químico usado nas indústrias de vidro e produtos de limpeza). No ano seguinte, já durante a guerra, foram mais quatro companhias. Este ano, já são 18.

É o que mostra o levantamento enviado ao Estadão por Ilia Shumanov, diretor da ONG Transparência Internacional na Rússia, ou do que sobrou dela — um grupo de pesquisadores que atua de forma independente para manter o trabalho da organização, considerada “indesejável” pelo Kremlin.

Imagem noturna mostra o Kremlin, sede do governo russo em Moscou. Foto: NATALIA KOLESNIKOVA / AFP

Os processos são conduzidos pela procuradoria-geral russa que de modo geral tem apontado supostas ilegalidades nas privatizações, algumas de 30 anos atrás, como justificativa para revertê-las. Foi o que aconteceu este ano com a Metafrax Chemicals, que teve 94% das ações tomadas pela Federação Russa.

A empresa é um dos maiores produtores de metanol — composto tem diversos usos (da indústria aos biocombustíveis) e a ação acendeu o alerta de analistas russos para um possível efeito cascata. O caso é emblemático porque colocou em xeque a competência do órgão que foi responsável pela privatização, em 1992, e pode servir como base para contestação de outras aquisições após o fim da URSS.

A tomada das empresas pelo Estado está concentrada em áreas estratégicas para economia russa como as indústrias militar e química, energia, portos e agricultura. Para analistas, a jogada tem dois objetivos: retomar o controle sobre áreas estratégicas durante a guerra prolongada ao mesmo tempo em que renova a elite russa. Saem os oligarcas e entram os administradores com menos poder e influência.

“Essas pessoas deverão sua riqueza pessoalmente a Putin e serão diretamente dependentes do Kremlin para preservar essa riqueza”, afirma Alexandra Prokopenko, pesquisadora em política econômica russa e ex-conselheira do Banco da Rússia ao Estadão.

Na mesma linha, o professor de ciência política em Moscou Nikolai Petrov em artigo publicado na Chatham House compara essa nova elite aos “red directors” da antiga União Soviética: “são administradores e não proprietários, não tem poder político independente”.

A negativa de Putin

O processo ocorria de forma discreta até que o presidente da União de Indústrias e Empresas da Rússia, Alexander Shokhin, chamou atenção. “Ninguém sabe quem pode ser o próximo da fila”, disse em entrevista à imprensa local, ao ser questionado como as empresas reagiam aos rumores de nacionalização. “Reagem mal”, declarou.

Vladimir Putin então foi obrigado a se explicar e negou. “Não haverá desprivatização. Posso te dizer isso com certeza. A procuradoria-geral está investigando alguns casos pontuais, algumas companhias, mas é diferente”, reagiu Putin durante um fórum econômico na Rússia, no mês passado. “Não tem nada a ver com política ou desprivatização. Isso não vai acontecer”, repetiu. Depois disso, nenhuma nova nacionalização foi concluída.

Putin discursa em fórum econômico em Vladivostok, Rússia. Na ocasião, ele negou que processo de nacionalização esteja em curso.  Foto: Sputnik/Pavel Bednyakov/Pool via Reuters

A negativa, no entanto, não convence quem acompanha o processo com lupa. “Eu não poderia dizer que houve casos particulares. Essa foi uma enorme onda de nacionalização em vários setores”, aponta Ilia Shumanov.

As justificativas do Kremlin podem ser divididas em basicamente três tipos: irregularidades nas privatizações, violações das leis anti-corrupção e retomada de empresas estratégicas que estavam sob o controle de empresários estrangeiros. “Tudo isso tem levado uma mudança de controle do setor privado para o governamental em empresas estratégicas da Rússia”, enfatiza Shumanov.

Por trás do processo, indicam especialistas, estaria a desconfiança do Kremlin com essa elite política russa, especialmente depois da rebelião do grupo Wagner, que ameaçou o poder de Vladimir Putin.

‘Putin já tinha “domado” os oligarcas em anos anteriores e aqueles que não se dobraram acabaram presos ou exilados. Ele via o terreno político e econômico como relativamente estabilizado”, lembra o historiador da USP Angelo Segrillo, especializado em Rússia e União Soviética.

“Mas susto do motim de Ievgeni Prigozhin — um ataque súbito no coração do sistema reabriu os olhos de Putin para o fato de que o seu controle não era total como ele imaginava. Essa nova fase de aperto serve para certificar que não sairá nenhum apoio poderoso a tentativas rebeldes dentro do setor econômico russo”.

Os alvos

A lista de alvos inclui alguns dos homens mais poderosos da Rússia e críticos de Vladimir Putin. É o caso, por exemplo, de Boris Mints, que deixou o país depois de se tornar um dos poucos oligarcas russos a contestar abertamente a anexação da Crimeia e, posteriormente, a invasão da Ucrânia.

Exilado no Reino Unido, o magnata declarou à rede britânica BBC no ano passado que a “forma tradicional” da Rússia punir empresários críticos ao Kremlin é “abrir ações criminais fabricadas”.

Queixas de processos com motivações políticas são frequentes na Rússia e tem outro oligarca que reforça esse coro: Ziavudin Magomedov — detido em 2018 e condenado a 19 anos de prisão por fraude. O magnata nega a acusação e diz ser vítima de uma conspiração do governo russo para o confisco da sua operadora de portos, a Fesco, alvo da recente onda de nacionalizações.

O homem mais rico da Rússia Andrei Melnichenko, com uma fortuna estimada em US$ 25 bilhões, também chegou a entrar na lista. O processo tinha como alvo a gigante do setor de energia Sibeko, adquirida há cinco anos, mas a procuradoria acabou desistindo da ação este mês em meio ao escrutínio sobre as nacionalizações. Em nota, a empresa afirmou que os dois lados chegaram a um acordo.

Mesmo no momento em que a nacionalização parece ter entrado em modo de espera, o medo de perder propriedade e status pode ser suficiente para deter os oligarcas de qualquer ação contra o governo. “A elite russa está assustada”, destaca Alexandra Prokopenko.

As ruínas da URSS e ascensão dos oligarcas

Hoje, a Rússia de Vladimir Putin parece caminhar na contramão dos anos que seguiram a derrocada da União Soviética.

Com a economia em frangalhos, o então presidente Mikhail Gorbachev (1985-1991), lançou a “glasnost” (abertura política) e a “perestroika” (reestruturação econômica). A abertura enfrentou resistência da linha dura do partido comunista, que tentou um golpe em 1991. O tiro, no entanto, saiu pela culatra: a tentativa de manter o regime soviético sacramentou o seu fim.

Gorbatchov resistiu ao golpe, mas logo passou o comando para Boris Yeltsin, que aproveitou o apoio angariado contra a tentativa de golpe para avançar com a reabertura. Um processo acelerado e caótico.

Foi neste momento que começaram as privatizações, em 1992, com um sistema de vouchers, distribuídos entre os russos para os leilões de privatização. Acontece que a população média russa, assolada pela inflação e pela crise vendia os tickets para aqueles que já tinham construído os seus negócios durante o afrouxamento do governo Gorbachev.

“Os oligarcas não surgiram do nada”, lembra Angelo Segrillo. “Durante a época experimental de transição da Perestroika, quando foram surgindo as primeiras formas não-estatais de propriedade, eles foram se posicionando. Assim que caiu a URSS, eles estavam pertos dos círculos do poder e puderam abocanhar as empresas estatais quando começaram as privatizações”.

No lugar de uma distribuição dos ativos, o que se viu foi uma concentração da riqueza, acentuada na segunda onda de privatizações, em 1995. Essa poderosa figura do oligarca russo ajudou a manter Boris Yeltsin e eleger o seu sucessor Vladimir Putin.

“Na era Yeltsin, os oligarcas eram bilionários que, além do grande poder econômico, tinham também um grande poder político (plutocratas). Alguns até se tornaram ministros. Putin, por sua vez, controlou os antigos oligarcas da era Yeltsin e os atuais bilionários são mais obedientes as suas ordens”, conclui Segrillo. Pelo menos era isso que parecia até a guerra na Ucrânia e o maior sinal de ameaça ao governo Putin.

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