THE NEW YORK TIMES - A posição russa estava marcada com a bandeira azul das unidades aerotransportadas de Moscou, mas o tecido parecia quase translúcido através da mira do atirador de elite ucraniano. A bandeira, em cima de um prédio ocupado pelos russos no sul da Ucrânia, estava a pouco mais de 1,6 quilômetro de distância. Se algum soldado russo aparecesse, levaria quatro segundos para o projétil de grosso calibre disparado pelo sniper atingi-lo no tórax.
“Eles se movimentam de manhã e no início da noite”, afirmou Bart, líder da equipe de quatro atiradores de elite.
Os snipers ucranianos tinham chegado à posição em meio ao breu, atravessando estradas completamente escuras, em uma picape com os faróis apagados. Caminhando apressadamente sobre cacos de vidro, eles chegaram ao “esconderijo”.
Bart relaxou, alongando os braços para trás, segurando seu fuzil de 9 quilos, escondido em meio aos escombros de um edifício semidestruído. Amanhecia, e o dia seria longo.
Se a invasão russa à Ucrânia tem se definido como uma extenuante guerra de artilharia, tanques, drones e mísseis de cruzeiro, o papel do atirador de elite, despercebido e letal, ocupa uma parte com frequência negligenciada do campo de batalha
Ofuscados pelas ferramentas letais de alta tecnologia e pela potência brutal de obuses e morteiros, os snipers ucranianos são parte de uma força mais rudimentar: a infantaria. Há comparativamente menos atiradores de elite hoje em dia, mas eles não são menos essenciais do que eram um século atrás, quando um único sniper aterrorizava cem homens com um só tiro.
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Mas a tecnologia moderna, especialmente a proliferação de drones pequenos que servem de ferramentas letais de observação acima das fileiras inimigas, tornou disparar de posições ocultas um ofício muito mais difícil — o que forçou os snipers ucranianos a mudar de tática ou arriscar morrer subitamente.
Uma equipe de reportagem do New York Times passou uma semana circulando com uma unidade de atiradores de elite da Ucrânia no sul do país. Nós lemos relatórios de missões de snipers e entrevistamos atiradores, instrutores de tiro de precisão e aprendizes em todo o país para entender a guerra travada nos bastidores pelas unidades de snipers bem treinados.
A cerca de 650 quilômetros de onde a equipe de Bart aguardava, o soldado de infantaria Volodmir, de 54 anos, do 19.º Batalhão Separado de Rifles, preparava-se para seu primeiro dia de aula em um estande de tiro.
Diante dele, havia papéis pendurados com diversos tipos de alvo pintados. Há poucas escolas oficiais de tiro de precisão na Ucrânia, e grande parte desse treinamento vem de turmas formadas pontualmente, treinamentos privados e voluntários espalhados pelo país.
Alguns snipers têm reclamado de que o foco em atacar trincheiras, uma tática necessária para retomar território, rebaixou o treinamento de tiro de precisão nas listas de prioridades de alguns comandantes.
“É um desejo pessoal meu e dos meus camaradas virar atirador de elite”, afirmou Volodmir. “Eu preciso desenvolver habilidades básicas, porque no front não haverá tempo para isso.”
Snipers entrevistados para a elaboração desta reportagem pediram para ser identificados apenas por seus apelidos de guerra ou primeiros nomes, para proteger suas identidades.
O número de atiradores de elite no Exército ucraniano não é conhecido publicamente, mas instrutores estimam em alguns milhares, separados em duas categorias principais. A maioria deles é conhecida como “artilheiros”, atiradores capazes de alvejar pessoas a até 275 metros. Eles ficam com frequência dentro das trincheiras, dando apoio aos camaradas.
A segunda categoria é dos snipers “batedores”, conhecidos no meio militar como “atiradores de longa distância”. São os poucos soldados de infantaria capazes de atingir alvos com precisão a mais de 1,6 quilômetro, que sabem ler o vento, a temperatura e a pressão barométrica (com ajuda de um observador) antes de apertar suavemente o gatilho.
Num dia recente de setembro, o instrutor de Volodmir lhe ensinava exatamente isso: como puxar o gatilho.
“O gatilho deve ser puxado paralelamente ao cano”, afirmou o instrutor. “Se você escorrega o dedo para algum lado, você erra o alvo. Se você aperta direto, provoca um tremor, que também afetará a mira.”
Volodmir ouviu atentamente, ajeitando-se atrás do fuzil calibre .338 armado diante dele. “Muitas pessoas têm medo de se tornar snipers porque existe uma percepção de que eles são alvos prioritários do inimigo”, afirmou ele.
Alvos prioritários
“Em torno da zero hora nosso sniper na posição 2 observou um ninho de metralhadora do inimigo”, afirma um relatório redigido após uma missão de atiradores de elite que ocorreu próximo à cidade da Bakhmut, no leste ucraniano, anteriormente este ano.
“Nosso sniper atacou a posição de metralhadora”, continuou o relatório, “resultando em dois inimigos” mortos em ação e na morte de “um possível inimigo”.
Nos círculos militares, atiradores de elite são chamados de “multiplicadores de forças”, pois são capazes de surtir impactos desproporcionais nos campos de batalha.
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Mas puxar o gatilho tem um custo, especialmente na era de drones e visores térmicos, pois não importa como os snipers se camuflem eles provavelmente serão detectados pelo calor de seus corpos (exceto se usarem equipamentos antitérmicos difíceis de obter). A poeira ou fumaça levantadas pelo tiro e às vezes o clarão provocado pelo disparo de alto calibre quando o projétil deixa o cano a mais de 822 metros por segundo também podem ser vistos facilmente.
Isso significa que nem todo soldado russo que aparece no cruzamento das linhas da mira é bom candidato para ser abatido. A recompensa potencial tem de superar o risco. Então a probabilidade do tiro aumenta se o soldado russo for um “alvo prioritário”, como um operador de metralhadora, um oficial ou um membro de alguma unidade de mísseis antitanque guiados. Ou mais importante ainda: se for um sniper russo.
“Eles têm alguns dos melhores, têm atiradores eficientes”, afirmou o sniper ucraniano Marik, do batalhão de infantaria Lobos Da Vinci. “E não são poucos. Eu acho que nós nunca devemos subestimar o inimigo.”
A equipe de Marik conseguiu matar um grupo de atiradores de elite russos anteriormente na guerra, afirmou ele — mas não com seus fuzis, com fogo de artilharia, para garantir que ninguém escapasse. Os russos tentam fazer o mesmo quando detectam snipers ucranianos. “Nós provavelmente os vimos puramente por acaso”, afirmou ele.
Uma equipe bem treinada de atiradores de elite marca sua presença no front pressionando e matando o inimigo até se retirar — ou ser descoberta, suprimida ou eliminada. A coreografia dos snipers conforme eles escolhem suas posições e decidem abrir fogo ou observar é delicada.
Matar um outro ser humano com um fuzil de alta potência e alcance é uma experiência calculada e ocasionalmente íntima, ao contrário da carnificina desenfreada das batalhas em trincheiras. Especialmente a longas distâncias, os snipers têm com frequência de esperar horas, usar aplicativos climáticos, calculadoras balísticas e notebooks para estabelecer os alvos antes de puxar o gatilho.
Os projéteis, específicos para tiros letais de longa distância, e suas cápsulas são com frequência montados pelos próprios atiradores — uma técnica conhecida como “handloading” — para garantir que eles tenham o peso perfeito para a tarefa. Em razão da enorme quantidade de calibres usados pelas forças ucranianas, é difícil obter munição de precisão de alta tecnologia, então voluntários com frequência compram esse tipo de projétil privadamente, assim como fuzis de snipers, para ajudar a abastecer as tropas.
E ao contrário de soldados ocidentais que lidaram com a complexidade moral de guerras no Iraque e no Afeganistão, em que insurgentes mesclavam-se inteiramente aos habitantes locais, os snipers ucranianos, defendendo seu país da invasão, percebem um claro imperativo para puxar o gatilho.
“Eu acho que as pessoas do outro lado podem até não querer estar aqui, mas estão”, afirmou Raptor, outro atirador da equipe de Bart. “É antinatural matar alguém, mas é o nosso trabalho.”
De fato, as mortes são a moeda dos snipers, que estão sempre competindo por recursos com unidades de drones e outras armas no campo de batalha. É por esta razão, entre outras, que a equipe de Bart usa uma câmera poderosa para gravar seus tiros. “Nós temos um ditado: não gravou, não matou”, afirmou o comandante da equipe de Bart.
Mas snipers fazem muito mais do que matar pessoas a longa distância. Na verdade, matar o inimigo é com frequência o passo final de uma extensa lista de outras prioridades, como observação, proteção de unidades de assalto e localização de alvos para artilharia.
Mudança de vento
Por volta das 14h, o vento mudou. Parou de soprar da esquerda e passou a soprar diretamente contra a posição da equipe, fazendo com que os atiradores ajustassem rapidamente seus fuzis.
Pouco depois, um temido drone “FPV” — um drone comercial armado com explosivos — apareceu no céu e três cargas de morteiros explodiram nas proximidades. Mas nenhum soldado russo apareceu; vieram apenas tiros intermitentes de artilharia, que sacudiram as portas do edifício em que os snipers estavam escondidos e fizeram com que eles se abrigassem longe das janelas. As explosões deslocaram escombros, rompendo as redes de camuflagem que ajudava os snipers a esconder sua posição.
Próximo ao anoitecer, conforme o terreno esfriava e o sol poente amarelava as janelas do prédio ocupado pelos russos, a equipe ucraniana detectou algo no fundo de um recinto distante. Seria uma metralhadora? Ou outra coisa?
Sem uma resposta clara, havia pouco motivo para atirar. Os snipers afirmariam isso no relatório quando retornassem e outra unidade enviasse um drone explosivo.
Calmamente, naquele período entre o ocaso e a escuridão, a equipe de Bart guardou os fuzis e o restante do equipamento. Os soldados correram até a picape e partiram de volta, entre esqueletos de lares destruídos ao longo da estrada agora iluminados pela lua nascente. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO