Rei Charles, bombas nucleares, sem chave da porta: as primeiras 24 horas de um premiê no Reino Unido


Os primeiros momento de um novo primeiro-ministro britânico são estranhos e agitados

Por The Economist
Atualização:

Essa pode ser a pergunta de múltipla escolha menos agradável do mundo. Imagine que Londres tenha sido destruída por uma bomba nuclear. Milhões de londrinos estão mortos. A decisão sobre o que os submarinos nucleares do Reino Unido farão em seguida é sua. Você a) retalia? b) não retalia? ou c) se acovarda e deixa o capitão do submarino decidir?

Em algum momento do dia de hoje, em uma sala no número 10 da Downing Street [Residência oficial dos premiês britânicos] Sir Keir Starmer terá que responder a essa pergunta. Depois, muito possivelmente, terá que subir ao seu novo apartamento para desempacotar suas meias e decidir onde seu sofá deve ficar.

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O primeiro dia de um primeiro-ministro britânico é, para dizer o mínimo, estranho. Se você é o presidente francês, tem uma ou duas semanas para se preparar para o poder; se você é o americano, mais de dois meses. O primeiro-ministro britânico tem cerca de uma hora.

O primeiro-ministro do Partido Trabalhista do Reino Unido, Kier Starmer, discursa na Downing Street, 10, em Londres Foto: Kin Cheung/AP

A partir do momento em que o líder anterior está deixando o cargo, o novo líder começa um dia que inclui ir ao Palácio de Buckingham falar com o rei Charles III; receber uma ligação do presidente americano; mudar de casa; e escrever as “cartas de último recurso”, nas quais cada primeiro-ministro britânico decide o que fazer em caso de Armagedom. É, diz Alastair Campbell, ex-porta-voz de Sir Tony Blair, “um dia bastante estressante”.

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Ele começa com uma ligação para o rei. Assim que o resultado da eleição é conhecido (nunca é anunciado oficialmente, mas apenas se torna manifesto), o primeiro-ministro perdedor liga para o monarca para solicitar uma audiência. Em seguida, ele vai ao Palácio de Buckingham e diz a Charles III que perdeu a confiança do Parlamento. Minutos depois, seu substituto chega para a cerimônia do “beija-mão”.

A frase agora é uma mera metáfora, mas o beijo sempre foi considerado superficial, não apaixonado. Disseram a Sir Tony Blair para ele “pincelar” as mãos da rainha com os lábios, um verbo tão desconcertante que, enquanto ele estava confuso, tropeçou em um pedaço de carpete e aterrissou diretamente na mão real, mais abrançando-a do que “pincelando”.

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Embora o tempo entre a despedida e o beijo seja breve - quase sempre menos de uma hora -, isso ainda é muito longo para os serviços de inteligência que, como diz uma pessoa de dentro, realmente gostam de saber “quem está realmente governando o país em um determinado momento do dia”. Isso é apenas para o caso, diz Gus O’Donnell, ex-secretário do gabinete, de haver um avião “indo em direção a Canary Wharf... e nós quiséssemos abatê-lo”. Por isso, são feitas algumas gambiarras: o primeiro-ministro que sai mantém alguns poderes até que o novo primeiro-ministro tenha beijado a mão do rei; em casos extremos, um novo primeiro-ministro pode ser ungido por telefone. (Essa abordagem foi considerada para Liz Truss, já que a rainha estava muito doente).

A partir desse momento, um novo primeiro-ministro terá oficialmente “as chaves de Downing Street”, como diz a frase. Exceto que, como Campbell ressalta, ele não terá: “Não há chaves”. Elas não são necessárias, pois a entrada é vigiada 24 horas por dia. Observe o novo primeiro-ministro caminhando em direção à porta (sem fechadura) de Downing Street, logo depois de fazer seu primeiro discurso para a mídia reunida. Como se estivesse em uma casa mal-assombrada, ela se abrirá antes de ser tocada. (Ao menos assim todos esperam. Quando David Cameron cantarolou uma música depois de seu discurso de renúncia pós-Brexit, do lado de fora de Downing Street, em 2016, não foi por despreocupação. Segundo Sir Craig Oliver, seu ex-diretor de comunicações, por medo de que “a porta não se abrisse e ele fosse... deixado ali parado”. Ele cantarolava como uma forma de “preencher o tempo”).

O primeiro-ministro do Partido Trabalhista do Reino Unido, Keir Starmer, e sua esposa Victoria posam para a mídia na porta do número 10 da Downing Street, em Londres Foto: Kin Cheung/AP
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Atrás dessa porta, Downing Street estava ocupada. “É como estar em um hotel”, diz Lord Stewart Wood, ex-conselheiro de Gordon Brown, outro ex-ministro da Fazenda. “É preciso fazer a limpeza rapidamente antes que os próximos hóspedes cheguem”. Muito rapidamente. O plano de reviravolta de Downing Street permite cerca de 30 minutos para que os escritórios e as mesas sejam liberados e limpos. Como em qualquer hotel, às vezes as coisas escapam: em 2010, o secretário-chefe do Tesouro que estava saindo deixou um bilhete em sua mesa com os seguintes dizeres: “Receio que não haja dinheiro”.

A estética da Downing Street também é de um hotel-casa de campo ligeiramente surrado. Pessoas que conhecem a rotina do local descrevem seu cheiro como “claustrofóbico” (as janelas são cobertas com redes e mantidas fechadas, em caso de bombas); os carpetes são presos com Silver Tape. Durante anos, a primeira coisa que os dignitários visitantes viam quando a porta se abria era “uma grande mancha de chá” no carpete, diz Sir Craig. Ninguém se atrevia a substituí-lo por medo de ser “eviscerado na imprensa” por extravagância.

A coisa toda é, segundo Lord O’Donnell, quase uma “camisa de força” de grife. A família do premiê não paga apenas o imposto municipal sobre seu famoso endereço: eles também cozinham e, quando chega a hora, providenciam sua própria van de mudança. O momento é complicado: embale os brinquedos de seus filhos muito cedo e “isso vazará” na imprensa, diz Sir Craig. Mas no próprio dia, os pertences do primeiro-ministro que está deixando o cargo - pratos, roupas de cama, calças e tudo mais - devem ser levados pela porta da frente. As carreiras políticas britânicas terminam não apenas em fracasso, mas em um plástico bolha.

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Enquanto tudo isso acontece, o novo líder britânico estará conversando com outros primeiros-ministros e presidentes, escolhendo a sala que usará como seu escritório e (a menos que peça mais tempo para pensar) sentando-se para escrever à mão instruções póstumas que serão transportadas em cartas seladas para cada um dos quatro submarinos nucleares Trident do país. Lord O’Donnell, que orientou dois premiês nesse processo, diz a eles para “garantir que tudo esteja claro”; se já houve um momento para uma caligrafia legível e uma prosa inteligível, esse é o momento. Como observou Lord Cameron, quando se trata da carta, “é você no escritório, sozinho”. Sua carreira de primeiro-ministro começou.

Essa pode ser a pergunta de múltipla escolha menos agradável do mundo. Imagine que Londres tenha sido destruída por uma bomba nuclear. Milhões de londrinos estão mortos. A decisão sobre o que os submarinos nucleares do Reino Unido farão em seguida é sua. Você a) retalia? b) não retalia? ou c) se acovarda e deixa o capitão do submarino decidir?

Em algum momento do dia de hoje, em uma sala no número 10 da Downing Street [Residência oficial dos premiês britânicos] Sir Keir Starmer terá que responder a essa pergunta. Depois, muito possivelmente, terá que subir ao seu novo apartamento para desempacotar suas meias e decidir onde seu sofá deve ficar.

O primeiro dia de um primeiro-ministro britânico é, para dizer o mínimo, estranho. Se você é o presidente francês, tem uma ou duas semanas para se preparar para o poder; se você é o americano, mais de dois meses. O primeiro-ministro britânico tem cerca de uma hora.

O primeiro-ministro do Partido Trabalhista do Reino Unido, Kier Starmer, discursa na Downing Street, 10, em Londres Foto: Kin Cheung/AP

A partir do momento em que o líder anterior está deixando o cargo, o novo líder começa um dia que inclui ir ao Palácio de Buckingham falar com o rei Charles III; receber uma ligação do presidente americano; mudar de casa; e escrever as “cartas de último recurso”, nas quais cada primeiro-ministro britânico decide o que fazer em caso de Armagedom. É, diz Alastair Campbell, ex-porta-voz de Sir Tony Blair, “um dia bastante estressante”.

Ele começa com uma ligação para o rei. Assim que o resultado da eleição é conhecido (nunca é anunciado oficialmente, mas apenas se torna manifesto), o primeiro-ministro perdedor liga para o monarca para solicitar uma audiência. Em seguida, ele vai ao Palácio de Buckingham e diz a Charles III que perdeu a confiança do Parlamento. Minutos depois, seu substituto chega para a cerimônia do “beija-mão”.

A frase agora é uma mera metáfora, mas o beijo sempre foi considerado superficial, não apaixonado. Disseram a Sir Tony Blair para ele “pincelar” as mãos da rainha com os lábios, um verbo tão desconcertante que, enquanto ele estava confuso, tropeçou em um pedaço de carpete e aterrissou diretamente na mão real, mais abrançando-a do que “pincelando”.

Embora o tempo entre a despedida e o beijo seja breve - quase sempre menos de uma hora -, isso ainda é muito longo para os serviços de inteligência que, como diz uma pessoa de dentro, realmente gostam de saber “quem está realmente governando o país em um determinado momento do dia”. Isso é apenas para o caso, diz Gus O’Donnell, ex-secretário do gabinete, de haver um avião “indo em direção a Canary Wharf... e nós quiséssemos abatê-lo”. Por isso, são feitas algumas gambiarras: o primeiro-ministro que sai mantém alguns poderes até que o novo primeiro-ministro tenha beijado a mão do rei; em casos extremos, um novo primeiro-ministro pode ser ungido por telefone. (Essa abordagem foi considerada para Liz Truss, já que a rainha estava muito doente).

A partir desse momento, um novo primeiro-ministro terá oficialmente “as chaves de Downing Street”, como diz a frase. Exceto que, como Campbell ressalta, ele não terá: “Não há chaves”. Elas não são necessárias, pois a entrada é vigiada 24 horas por dia. Observe o novo primeiro-ministro caminhando em direção à porta (sem fechadura) de Downing Street, logo depois de fazer seu primeiro discurso para a mídia reunida. Como se estivesse em uma casa mal-assombrada, ela se abrirá antes de ser tocada. (Ao menos assim todos esperam. Quando David Cameron cantarolou uma música depois de seu discurso de renúncia pós-Brexit, do lado de fora de Downing Street, em 2016, não foi por despreocupação. Segundo Sir Craig Oliver, seu ex-diretor de comunicações, por medo de que “a porta não se abrisse e ele fosse... deixado ali parado”. Ele cantarolava como uma forma de “preencher o tempo”).

O primeiro-ministro do Partido Trabalhista do Reino Unido, Keir Starmer, e sua esposa Victoria posam para a mídia na porta do número 10 da Downing Street, em Londres Foto: Kin Cheung/AP

Atrás dessa porta, Downing Street estava ocupada. “É como estar em um hotel”, diz Lord Stewart Wood, ex-conselheiro de Gordon Brown, outro ex-ministro da Fazenda. “É preciso fazer a limpeza rapidamente antes que os próximos hóspedes cheguem”. Muito rapidamente. O plano de reviravolta de Downing Street permite cerca de 30 minutos para que os escritórios e as mesas sejam liberados e limpos. Como em qualquer hotel, às vezes as coisas escapam: em 2010, o secretário-chefe do Tesouro que estava saindo deixou um bilhete em sua mesa com os seguintes dizeres: “Receio que não haja dinheiro”.

A estética da Downing Street também é de um hotel-casa de campo ligeiramente surrado. Pessoas que conhecem a rotina do local descrevem seu cheiro como “claustrofóbico” (as janelas são cobertas com redes e mantidas fechadas, em caso de bombas); os carpetes são presos com Silver Tape. Durante anos, a primeira coisa que os dignitários visitantes viam quando a porta se abria era “uma grande mancha de chá” no carpete, diz Sir Craig. Ninguém se atrevia a substituí-lo por medo de ser “eviscerado na imprensa” por extravagância.

A coisa toda é, segundo Lord O’Donnell, quase uma “camisa de força” de grife. A família do premiê não paga apenas o imposto municipal sobre seu famoso endereço: eles também cozinham e, quando chega a hora, providenciam sua própria van de mudança. O momento é complicado: embale os brinquedos de seus filhos muito cedo e “isso vazará” na imprensa, diz Sir Craig. Mas no próprio dia, os pertences do primeiro-ministro que está deixando o cargo - pratos, roupas de cama, calças e tudo mais - devem ser levados pela porta da frente. As carreiras políticas britânicas terminam não apenas em fracasso, mas em um plástico bolha.

Enquanto tudo isso acontece, o novo líder britânico estará conversando com outros primeiros-ministros e presidentes, escolhendo a sala que usará como seu escritório e (a menos que peça mais tempo para pensar) sentando-se para escrever à mão instruções póstumas que serão transportadas em cartas seladas para cada um dos quatro submarinos nucleares Trident do país. Lord O’Donnell, que orientou dois premiês nesse processo, diz a eles para “garantir que tudo esteja claro”; se já houve um momento para uma caligrafia legível e uma prosa inteligível, esse é o momento. Como observou Lord Cameron, quando se trata da carta, “é você no escritório, sozinho”. Sua carreira de primeiro-ministro começou.

Essa pode ser a pergunta de múltipla escolha menos agradável do mundo. Imagine que Londres tenha sido destruída por uma bomba nuclear. Milhões de londrinos estão mortos. A decisão sobre o que os submarinos nucleares do Reino Unido farão em seguida é sua. Você a) retalia? b) não retalia? ou c) se acovarda e deixa o capitão do submarino decidir?

Em algum momento do dia de hoje, em uma sala no número 10 da Downing Street [Residência oficial dos premiês britânicos] Sir Keir Starmer terá que responder a essa pergunta. Depois, muito possivelmente, terá que subir ao seu novo apartamento para desempacotar suas meias e decidir onde seu sofá deve ficar.

O primeiro dia de um primeiro-ministro britânico é, para dizer o mínimo, estranho. Se você é o presidente francês, tem uma ou duas semanas para se preparar para o poder; se você é o americano, mais de dois meses. O primeiro-ministro britânico tem cerca de uma hora.

O primeiro-ministro do Partido Trabalhista do Reino Unido, Kier Starmer, discursa na Downing Street, 10, em Londres Foto: Kin Cheung/AP

A partir do momento em que o líder anterior está deixando o cargo, o novo líder começa um dia que inclui ir ao Palácio de Buckingham falar com o rei Charles III; receber uma ligação do presidente americano; mudar de casa; e escrever as “cartas de último recurso”, nas quais cada primeiro-ministro britânico decide o que fazer em caso de Armagedom. É, diz Alastair Campbell, ex-porta-voz de Sir Tony Blair, “um dia bastante estressante”.

Ele começa com uma ligação para o rei. Assim que o resultado da eleição é conhecido (nunca é anunciado oficialmente, mas apenas se torna manifesto), o primeiro-ministro perdedor liga para o monarca para solicitar uma audiência. Em seguida, ele vai ao Palácio de Buckingham e diz a Charles III que perdeu a confiança do Parlamento. Minutos depois, seu substituto chega para a cerimônia do “beija-mão”.

A frase agora é uma mera metáfora, mas o beijo sempre foi considerado superficial, não apaixonado. Disseram a Sir Tony Blair para ele “pincelar” as mãos da rainha com os lábios, um verbo tão desconcertante que, enquanto ele estava confuso, tropeçou em um pedaço de carpete e aterrissou diretamente na mão real, mais abrançando-a do que “pincelando”.

Embora o tempo entre a despedida e o beijo seja breve - quase sempre menos de uma hora -, isso ainda é muito longo para os serviços de inteligência que, como diz uma pessoa de dentro, realmente gostam de saber “quem está realmente governando o país em um determinado momento do dia”. Isso é apenas para o caso, diz Gus O’Donnell, ex-secretário do gabinete, de haver um avião “indo em direção a Canary Wharf... e nós quiséssemos abatê-lo”. Por isso, são feitas algumas gambiarras: o primeiro-ministro que sai mantém alguns poderes até que o novo primeiro-ministro tenha beijado a mão do rei; em casos extremos, um novo primeiro-ministro pode ser ungido por telefone. (Essa abordagem foi considerada para Liz Truss, já que a rainha estava muito doente).

A partir desse momento, um novo primeiro-ministro terá oficialmente “as chaves de Downing Street”, como diz a frase. Exceto que, como Campbell ressalta, ele não terá: “Não há chaves”. Elas não são necessárias, pois a entrada é vigiada 24 horas por dia. Observe o novo primeiro-ministro caminhando em direção à porta (sem fechadura) de Downing Street, logo depois de fazer seu primeiro discurso para a mídia reunida. Como se estivesse em uma casa mal-assombrada, ela se abrirá antes de ser tocada. (Ao menos assim todos esperam. Quando David Cameron cantarolou uma música depois de seu discurso de renúncia pós-Brexit, do lado de fora de Downing Street, em 2016, não foi por despreocupação. Segundo Sir Craig Oliver, seu ex-diretor de comunicações, por medo de que “a porta não se abrisse e ele fosse... deixado ali parado”. Ele cantarolava como uma forma de “preencher o tempo”).

O primeiro-ministro do Partido Trabalhista do Reino Unido, Keir Starmer, e sua esposa Victoria posam para a mídia na porta do número 10 da Downing Street, em Londres Foto: Kin Cheung/AP

Atrás dessa porta, Downing Street estava ocupada. “É como estar em um hotel”, diz Lord Stewart Wood, ex-conselheiro de Gordon Brown, outro ex-ministro da Fazenda. “É preciso fazer a limpeza rapidamente antes que os próximos hóspedes cheguem”. Muito rapidamente. O plano de reviravolta de Downing Street permite cerca de 30 minutos para que os escritórios e as mesas sejam liberados e limpos. Como em qualquer hotel, às vezes as coisas escapam: em 2010, o secretário-chefe do Tesouro que estava saindo deixou um bilhete em sua mesa com os seguintes dizeres: “Receio que não haja dinheiro”.

A estética da Downing Street também é de um hotel-casa de campo ligeiramente surrado. Pessoas que conhecem a rotina do local descrevem seu cheiro como “claustrofóbico” (as janelas são cobertas com redes e mantidas fechadas, em caso de bombas); os carpetes são presos com Silver Tape. Durante anos, a primeira coisa que os dignitários visitantes viam quando a porta se abria era “uma grande mancha de chá” no carpete, diz Sir Craig. Ninguém se atrevia a substituí-lo por medo de ser “eviscerado na imprensa” por extravagância.

A coisa toda é, segundo Lord O’Donnell, quase uma “camisa de força” de grife. A família do premiê não paga apenas o imposto municipal sobre seu famoso endereço: eles também cozinham e, quando chega a hora, providenciam sua própria van de mudança. O momento é complicado: embale os brinquedos de seus filhos muito cedo e “isso vazará” na imprensa, diz Sir Craig. Mas no próprio dia, os pertences do primeiro-ministro que está deixando o cargo - pratos, roupas de cama, calças e tudo mais - devem ser levados pela porta da frente. As carreiras políticas britânicas terminam não apenas em fracasso, mas em um plástico bolha.

Enquanto tudo isso acontece, o novo líder britânico estará conversando com outros primeiros-ministros e presidentes, escolhendo a sala que usará como seu escritório e (a menos que peça mais tempo para pensar) sentando-se para escrever à mão instruções póstumas que serão transportadas em cartas seladas para cada um dos quatro submarinos nucleares Trident do país. Lord O’Donnell, que orientou dois premiês nesse processo, diz a eles para “garantir que tudo esteja claro”; se já houve um momento para uma caligrafia legível e uma prosa inteligível, esse é o momento. Como observou Lord Cameron, quando se trata da carta, “é você no escritório, sozinho”. Sua carreira de primeiro-ministro começou.

Essa pode ser a pergunta de múltipla escolha menos agradável do mundo. Imagine que Londres tenha sido destruída por uma bomba nuclear. Milhões de londrinos estão mortos. A decisão sobre o que os submarinos nucleares do Reino Unido farão em seguida é sua. Você a) retalia? b) não retalia? ou c) se acovarda e deixa o capitão do submarino decidir?

Em algum momento do dia de hoje, em uma sala no número 10 da Downing Street [Residência oficial dos premiês britânicos] Sir Keir Starmer terá que responder a essa pergunta. Depois, muito possivelmente, terá que subir ao seu novo apartamento para desempacotar suas meias e decidir onde seu sofá deve ficar.

O primeiro dia de um primeiro-ministro britânico é, para dizer o mínimo, estranho. Se você é o presidente francês, tem uma ou duas semanas para se preparar para o poder; se você é o americano, mais de dois meses. O primeiro-ministro britânico tem cerca de uma hora.

O primeiro-ministro do Partido Trabalhista do Reino Unido, Kier Starmer, discursa na Downing Street, 10, em Londres Foto: Kin Cheung/AP

A partir do momento em que o líder anterior está deixando o cargo, o novo líder começa um dia que inclui ir ao Palácio de Buckingham falar com o rei Charles III; receber uma ligação do presidente americano; mudar de casa; e escrever as “cartas de último recurso”, nas quais cada primeiro-ministro britânico decide o que fazer em caso de Armagedom. É, diz Alastair Campbell, ex-porta-voz de Sir Tony Blair, “um dia bastante estressante”.

Ele começa com uma ligação para o rei. Assim que o resultado da eleição é conhecido (nunca é anunciado oficialmente, mas apenas se torna manifesto), o primeiro-ministro perdedor liga para o monarca para solicitar uma audiência. Em seguida, ele vai ao Palácio de Buckingham e diz a Charles III que perdeu a confiança do Parlamento. Minutos depois, seu substituto chega para a cerimônia do “beija-mão”.

A frase agora é uma mera metáfora, mas o beijo sempre foi considerado superficial, não apaixonado. Disseram a Sir Tony Blair para ele “pincelar” as mãos da rainha com os lábios, um verbo tão desconcertante que, enquanto ele estava confuso, tropeçou em um pedaço de carpete e aterrissou diretamente na mão real, mais abrançando-a do que “pincelando”.

Embora o tempo entre a despedida e o beijo seja breve - quase sempre menos de uma hora -, isso ainda é muito longo para os serviços de inteligência que, como diz uma pessoa de dentro, realmente gostam de saber “quem está realmente governando o país em um determinado momento do dia”. Isso é apenas para o caso, diz Gus O’Donnell, ex-secretário do gabinete, de haver um avião “indo em direção a Canary Wharf... e nós quiséssemos abatê-lo”. Por isso, são feitas algumas gambiarras: o primeiro-ministro que sai mantém alguns poderes até que o novo primeiro-ministro tenha beijado a mão do rei; em casos extremos, um novo primeiro-ministro pode ser ungido por telefone. (Essa abordagem foi considerada para Liz Truss, já que a rainha estava muito doente).

A partir desse momento, um novo primeiro-ministro terá oficialmente “as chaves de Downing Street”, como diz a frase. Exceto que, como Campbell ressalta, ele não terá: “Não há chaves”. Elas não são necessárias, pois a entrada é vigiada 24 horas por dia. Observe o novo primeiro-ministro caminhando em direção à porta (sem fechadura) de Downing Street, logo depois de fazer seu primeiro discurso para a mídia reunida. Como se estivesse em uma casa mal-assombrada, ela se abrirá antes de ser tocada. (Ao menos assim todos esperam. Quando David Cameron cantarolou uma música depois de seu discurso de renúncia pós-Brexit, do lado de fora de Downing Street, em 2016, não foi por despreocupação. Segundo Sir Craig Oliver, seu ex-diretor de comunicações, por medo de que “a porta não se abrisse e ele fosse... deixado ali parado”. Ele cantarolava como uma forma de “preencher o tempo”).

O primeiro-ministro do Partido Trabalhista do Reino Unido, Keir Starmer, e sua esposa Victoria posam para a mídia na porta do número 10 da Downing Street, em Londres Foto: Kin Cheung/AP

Atrás dessa porta, Downing Street estava ocupada. “É como estar em um hotel”, diz Lord Stewart Wood, ex-conselheiro de Gordon Brown, outro ex-ministro da Fazenda. “É preciso fazer a limpeza rapidamente antes que os próximos hóspedes cheguem”. Muito rapidamente. O plano de reviravolta de Downing Street permite cerca de 30 minutos para que os escritórios e as mesas sejam liberados e limpos. Como em qualquer hotel, às vezes as coisas escapam: em 2010, o secretário-chefe do Tesouro que estava saindo deixou um bilhete em sua mesa com os seguintes dizeres: “Receio que não haja dinheiro”.

A estética da Downing Street também é de um hotel-casa de campo ligeiramente surrado. Pessoas que conhecem a rotina do local descrevem seu cheiro como “claustrofóbico” (as janelas são cobertas com redes e mantidas fechadas, em caso de bombas); os carpetes são presos com Silver Tape. Durante anos, a primeira coisa que os dignitários visitantes viam quando a porta se abria era “uma grande mancha de chá” no carpete, diz Sir Craig. Ninguém se atrevia a substituí-lo por medo de ser “eviscerado na imprensa” por extravagância.

A coisa toda é, segundo Lord O’Donnell, quase uma “camisa de força” de grife. A família do premiê não paga apenas o imposto municipal sobre seu famoso endereço: eles também cozinham e, quando chega a hora, providenciam sua própria van de mudança. O momento é complicado: embale os brinquedos de seus filhos muito cedo e “isso vazará” na imprensa, diz Sir Craig. Mas no próprio dia, os pertences do primeiro-ministro que está deixando o cargo - pratos, roupas de cama, calças e tudo mais - devem ser levados pela porta da frente. As carreiras políticas britânicas terminam não apenas em fracasso, mas em um plástico bolha.

Enquanto tudo isso acontece, o novo líder britânico estará conversando com outros primeiros-ministros e presidentes, escolhendo a sala que usará como seu escritório e (a menos que peça mais tempo para pensar) sentando-se para escrever à mão instruções póstumas que serão transportadas em cartas seladas para cada um dos quatro submarinos nucleares Trident do país. Lord O’Donnell, que orientou dois premiês nesse processo, diz a eles para “garantir que tudo esteja claro”; se já houve um momento para uma caligrafia legível e uma prosa inteligível, esse é o momento. Como observou Lord Cameron, quando se trata da carta, “é você no escritório, sozinho”. Sua carreira de primeiro-ministro começou.

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