LONDRES - O governo do Reino Unido e a União Europeia chegaram nesta segunda-feira, 27, a um acordo para resolver sua disputa sobre os controles alfandegários pós-Brexit na Irlanda do Norte, que visa resolver a espinhosa disputa comercial na fronteira das Irlandas. O primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, assinaram o novo acordo em uma reunião em Windsor, perto de Londres. Documento ainda será analisado pelo Parlamento e pelo governo regional da Irlanda do Norte.
A Irlanda do Norte é a única parte do Reino Unido que faz fronteira com um membro da UE, a República da Irlanda. Quando o Reino Unido deixou o bloco, em 2020, os dois lados concordaram em manter a fronteira irlandesa livre de postos alfandegários e outras verificações porque uma fronteira aberta é um pilar fundamental do processo de paz da Irlanda do Norte.
“Tenho o prazer de informar que agora fizemos um avanço decisivo”, disse o primeiro-ministro durante entrevista coletiva ao lado de Von der Leyen. “Juntos, mudamos o protocolo original e estamos anunciando hoje o novo Windsor Framework (Acordo de Windsor, em tradução livre). O acordo de hoje proporciona um fluxo comercial tranquilo em todo o Reino Unido, protege o lugar da Irlanda do Norte em nossa união e salvaguarda a soberania do povo da Irlanda do Norte.”
O acordo, que ocorreu após semanas de negociações confidenciais, pode evitar uma possível guerra comercial entre o Reino Unido e a União Europeia e abrir as portas para a restauração de um governo descentralizado na Irlanda do Norte. Von der Leyen disse que o Windsor Framework surge para “beneficiar as pessoas na Irlanda do Norte e apoiar todas as comunidades que celebram a paz na ilha da Irlanda”.
O acordo desta segunda reformula o Protocolo da Irlanda do Norte, que foi criado para evitar a necessidade de controles alfandegários sobre mercadorias que cruzam a fronteira terrestre politicamente sensível entre a Irlanda do Norte e a Irlanda. Sob o protocolo, que entrou em vigor no início de 2021, a Irlanda do Norte permaneceu dentro de partes do mercado único da Europa, respeitando seu livro de regras econômicas.
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, divulgou comunicado em que celebra o acordo. Na nota, ele afirmou que pacto é um passo essencial para a garantia da paz assegurada pelo Acordo da Sexta-Feira Santa. O risco de violação desse acordo era o principal promotor do impasse entre as duas partes, diante dos temores de que o Brexit forçasse o estabelecimento de uma fronteira física na Irlanda.
“Estou confiante de que as pessoas e as empresas da Irlanda do Norte serão capazes de aproveitar ao máximo as oportunidades econômicas criadas por essa estabilidade e certeza, e os EUA estão prontos para apoiar o vasto potencial econômico da região”, destacou Biden.
Detalhes
Sob os termos do novo acordo, as mercadorias que se deslocam do Reino Unido para a Irlanda do Norte que deveriam permanecer lá passariam por um canal “verde” sem verificações de rotina. Os destinados à Irlanda passariam por um canal “vermelho” que teria mais controles. O acordo também diminui o papel do Tribunal Europeu de Justiça, o poder judiciário da UE, em julgar quaisquer disputas comerciais.
O papel do Tribunal Europeu de Justiça era justamente uma das questões mais espinhosas até então. O Reino Unido e a UE concordaram em seu acordo de divórcio do Brexit em dar ao tribunal europeu essa autoridade. Mas o Partido Unionista Democrático (DUP, da Irlanda do Norte) e a ala do Partido Conservador favorável a uma ruptura radical com a UE insistiam que o tribunal não deveria ter jurisdição em assuntos do Reino Unido.
Sunak diz que o acordo tem três objetivos: garantir uma “passagem verde” com pouca burocracia para mercadorias que viajam do Reino Unido para a Irlanda do Norte com a intenção de permanecer lá; permitir que o Parlamento do Reino Unido estabeleça impostos sobre valor agregado e impostos especiais de consumo para a Irlanda do Norte; e dar à assembleia eleita em Belfast um mecanismo de “pausa de emergência” para evitar que novas leis da UE sobre bens se apliquem lá.
O acordo será uma grande vitória para o primeiro-ministro, mas não o fim de seus problemas, já que vendê-lo para seu próprio Partido Conservador e seus aliados da Irlanda do Norte pode ser uma luta mais difícil. Agora, Sunak aguarda o julgamento do Partido Unionista Democrático da Irlanda do Norte, que tem boicotado o governo com quem compartilha o poder da região até que os acordos comerciais fossem substancialmente alterados.
O sinal de um potencial avanço Reino Unido-UE veio no domingo, quando os dois lados anunciaram que Von der Leyen encontraria Sunak em Windsor. Sunak fez uma declaração à Câmara dos Comuns na tarde desta segunda-feira para apresentar os detalhes do acordo e adiantou que dará tempo para que os parlamentares discutam os termos. “Não tenho dúvidas que recuperamos o controle”, disse Sunak no Parlamento. “Cumprimos com o que o povo da Irlanda do Norte pediu, eliminamos a fronteira no mar da Irlanda”, acrescentou.
Desafios
Se tudo correr conforme o planejado, o acordo pode encerrar uma disputa que azedou as relações Reino Unido-UE, provocou o colapso do governo regional com sede em Belfast e abalou o processo de paz de décadas da Irlanda do Norte.
O Partido Unionista Democrático renunciou ao governo há um ano em protesto ao protocolo e se recusou a retornar até que as regras sejam descartadas ou substancialmente reescritas.
O DUP permaneceu em silêncio nos últimos dias, dizendo que precisa ver os detalhes de um acordo antes de decidir se ele atende aos testes auto-impostos pelo partido. O líder do DUP, Jeffrey Donaldson, disse que não estava nem positivo nem negativo sobre o acordo, mas esperaria para ver os detalhes.
Insinuações de compromisso com a UE também provocaram a oposição de eurocéticos linha-dura que formam um bloco poderoso no Partido Conservador de Sunak. Os críticos incluem o ex-primeiro-ministro Boris Johnson, que, como líder na época do Brexit, assinou as regras comerciais que agora ridiculariza. Johnson foi deposto pelos conservadores no ano passado devido a escândalos éticos, mas acredita-se que ele planeja uma volta.
Jacob Rees-Mogg, um proeminente legislador conservador pró-Brexit, disse que a aceitação de qualquer acordo dependerá do DUP. “Se o DUP for contra, acho que haverá um número bastante significativo de conservadores insatisfeitos”, disse Rees-Moog.
As relações entre o Reino Unido e a UE, severamente testadas durante o longo divórcio do Brexit, esfriaram ainda mais em meio a disputas sobre o Protocolo da Irlanda do Norte. O governo do Reino Unido apresentou um projeto de lei que o deixaria rasgar unilateralmente partes do acordo do Brexit, uma medida que a UE chamou de ilegal. O bloco acusou o Reino Unido de não honrar o tratado juridicamente vinculativo que havia assinado. O clima entre Londres e Bruxelas melhorou depois que Sunak, um pragmático defensor do Brexit, assumiu o cargo em outubro, substituindo predecessores mais beligerantes - Johnson e Liz Truss.
Depois de fechar o acordo, Von der Leyen tomou chá com o rei Charles III no Castelo de Windsor. O Palácio de Buckingham disse que a reunião estava ocorrendo por sugestão do governo, levando os críticos a acusar Sunak de arrastar o monarca, que deveria permanecer neutro, para uma disputa política. A reunião deveria abordar uma variedade de questões, incluindo a mudança climática e a guerra na Ucrânia.
“Não consigo acreditar que o número 10 (escritório do primeiro-ministro) pediria ao rei para se envolver na finalização de um acordo tão controverso como este. É grosseiro e vai cair muito mal na Irlanda do Norte”, disse a ex-primeira-ministra da Irlanda do Norte Arlene Foster, no Twitter./AFP, AP e NYT