BRASÍLIA - “Nas últimas semanas, o relacionamento especial se deteriorou a ponto de líderes militares e governamentais falarem, dramaticamente, de uma ‘guerra não declarada’ e ameaçarem rever todas as relações oficiais com EUA.” O alerta acima é da CIA, numa análise reservada sobre repercussões no governo do general Ernesto Geisel da mudança de poder na Casa Branca.
Ao substituir o republicano Gerald Ford, o democrata Jimmy Carter passou a pressionar a ditadura brasileira com denúncias de violação de direitos humanos. Ele ameaçou retirar o apoio a empréstimos internacionais, como um financiamento industrial de US$ 80 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Naquele momento, o Palácio do Planalto apelou ao princípio da não interferência em assuntos internos.
Na última campanha, Joe Biden criticou o desmatamento na Amazônia, o que surpreendeu o governo brasileiro, aliado de Donald Trump. No pós-guerra, a relação dos democratas com o Brasil foi marcada pelo multilateralismo, controle de empréstimos, protecionismo, direitos humanos e defesa da democracia, mas na versão do Departamento de Estado, sempre associada à abertura comercial.
Seja qual o for o partido na Casa Branca, os EUA perseguem políticas de “portas abertas” aos seus negócios. O conceito vem desde o fim do século 19, quando disputavam acesso comercial à China com potências europeias, Japão e Rússia.
Harry Truman, primeiro dos sete democratas eleitos após a 2.ª Guerra, aprofundou o processo de “americanização” do Brasil, com domínio de produtos industriais importados no mercado brasileiro, além da penetração da influência tecnológica, cultural e militar. Era o início da Guerra Fria e o objetivo era conter o comunismo. O alinhamento vinha desde os anos 1930, liderado pelo chanceler Oswaldo Aranha, que venceu resistências no governo de Getúlio Vargas pelo engajamento do Brasil na guerra ao lado dos Aliados.
O alinhamento durou até Juscelino Kubitschek. O democrata John F. Kennedy executou a Aliança Para o Progresso, programa de assistência aos países latino-americanos que era uma cópia da Operação Pan-Americana, idealizada por JK. Eles se encontraram em 1961, na Casa Branca. O Brasil buscava preços melhores para produtos vendidos aos EUA e facilidades nos financiamentos para a indústria. Kennedy tentava barrar a influência soviética e cubana, distribuindo dinheiro em ações para combate da pobreza.
A partir do governo de Jânio Quadros (1961), o Brasil adotou uma política externa independente, que pregava o não alinhamento. Jânio criticou a tentativa de invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, e condecorou Che Guevara, um dos líderes da Revolução Cubana.
Com a renúncia de Jânio, o sucessor João Goulart foi recebido por Kennedy na Casa Branca. O presidente democrata, porém, fechou a torneira de investimentos. Goulart buscava socorro financeiro, mas levou pouco. Deu mostras de independência na política externa, dizendo que o Brasil não integraria nenhum bloco político.
Então, os EUA se insurgiram contra a esquerda nacionalista brasileira – empresas americanas haviam sido encampadas pelo governador gaúcho Leonel Brizola. Washington exigia reparação. Kennedy mandou seu irmão Bob inspecionar a possível transformação da zona do açúcar em Pernambuco numa nova Cuba, processo que culminou com o apoio de seu vice e sucessor, Lyndon Johnson, ao golpe de 1964.
Mais tarde, gravações revelaram que Kennedy discutiu com embaixador americano Lincoln Gordon a possibilidade de derrubar Jango. A operação foi autorizada por Johnson, que assumiu após a morte de JFK. Os americanos chegaram a mobilizar navios na Operação Brother Sam. A frota que daria suporte aos militares brasileiros, porém, não chegou a aportar.
Após o golpe, o general Castelo Branco promoveu uma aproximação amistosa com os EUA, que depois seria revista por outros generais-presidentes. Na ocasião, o Brasil não aderiu ao Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), de 1967, e comprou briga com os americanos quando firmou um acordo nuclear com a Alemanha Ocidental.
A relação entre Carter e Geisel é lembrada por diplomatas e acadêmicos como um paralelo histórico do que pode ocorrer entre Joe Biden e Jair Bolsonaro. Além de choques de agendas divergentes, havia a preocupação americana com o avanço de um país rival na América Latina. Nos anos 1970, era a União Soviética. Agora, é a China que busca aumentar a presença na região.
“As relações com o Jimmy Carter foram horríveis. Ele veio aqui, e a Roselynn Carter (primeira-dama) também, cobrar direitos humanos, e a gente se afastou”, lembra o embaixador Paulo Roberto de Almeida, ex-diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (Ipri), estudioso da história da diplomacia e crítico da atual gestão do Itamaraty.
Os EUA estavam saindo da Guerra do Vietnã e do escândalo de Watergate, que levou à queda do republicano Richard Nixon. Carter tentava recuperar a imagem americana com o discurso que defendiam os direitos humanos. Carlos Poggio, professor de relações internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado, observa que Carter contrariava a ditadura.
Agora, segundo Poggio, entre Biden e Bolsonaro a divergência na agenda ambiental e de direitos humanos e a prioridade comercial por parte de Bolsonaro fazem prever atritos. “Muda pouco do ponto de vista do comércio”, ressaltou. “Interesses comerciais são mais profundos do que a relação entre indivíduos.”
O diretor do Departamento de EUA, ministro Felipe Hees, aposta que a relação “transcende” governos em razão de ter como base princípios comuns, como liberdade, democracia, direitos humanos, economia de mercado e estado de direito.
Em live esta semana, ele disse que a parceria “tem densidade e convergência de interesses maior do que o resultado de uma eleição”. No entanto, Hees alertou que, sem canais de comunicação e intercâmbio de opiniões, uma parceria torna-se difícil.
Mais recentemente, a relação entre os dois países em governos democratas foi marcada por gestos afáveis. Entre 1990 e 2000, os problemas passaram a ser a guerra às drogas e a imigração ilegal. Os EUA, na esteira do Plano Colômbia, contra o narcotráfico e a guerrilha, tentaram sem sucesso uma parceria das Forças Armadas do Brasil.
Nas suas memórias, Bill Clinton diz que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso era um “líder impressionante”. Era uma relação de dois acadêmicos com doutorado. O tucano frequentou a residência de campo de Camp David, nos EUA, e fez parte dos encontros do “clube” social-democrata da Terceira Via, que reunia líderes europeus nos anos 1990.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva também foi recebido em Camp David, mas no governo de George W. Bush. Lula teve uma relação amistosa com Bush. No entanto, as negociações entre o Planalto e o último democrata no poder tiveram altos e baixos. Barack Obama demonstrou proximidade pessoal com o petista, a quem chamou de “o cara”, numa reunião do G-20. Lula liderava uma campanha de inserção internacional do Brasil. Obama interessou-se pela política para o meio ambiente capitaneada pelo País nas Nações Unidas, que se estendeu no governo Dilma.
Com a sucessora de Lula, a ex-presidente Dilma Rousseff, a relação esfriou-se depois de uma visita de Estado do democrata com a família a Brasília. O principal motivo foi a revelação de que comunicações de Dilma e da Petrobrás foram alvo de espionagem pela Agência de Segurança Nacional (NSA) norte-americana. O episódio foi superado, mas o governo Obama legitimaria depois o impeachment da petista e a gestão de Michel Temer.
Biden, um conhecedor do Brasil e da América Latina
Joe Biden chega à Casa Branca como um conhecedor do Brasil e da América Latina. Há mais de 40 anos na vida pública norte-americana, ele é reconhecido como um político conciliador e dedicado ao relacionamento internacional. Liderou, como vice-presidente, a diplomacia de Barack Obama na América Latina. Presidiu e foi membro do Comitê de Relações Exteriores do Senado por 12 anos. E dá nome a um centro de pesquisa na Universidade da Pensilvânia, o Centro Penn Biden para a Diplomacia e o Engajamento Global.
Em 2013, o democrata atuou diretamente na relação com o Brasil. Numa visita a Brasília, Biden ajudou a abrir caminho para uma visita de Estado que Dilma faria, a contragosto de próceres petistas, aos Estados Unidos para melhorar o patamar das relações. Dilma, no entanto, abortaria a viagem. O motivo foi a revelação de que comunicações da presidente e da Petrobrás haviam sido bisbilhotadas pela Agência de Segurança Nacional (NSA) norte-americana.
Coube a Biden voltar ao Brasil, durante a Copa do Mundo de 2014, para apaziguar a relação. Eles já haviam conversado em Santiago meses antes, na posse da presidente chilena Michelle Bachelet. O pretexto era assistir ao jogo em que os Estados Unidos venceram Gana por 2 a 1 na Arena das Dunas, em Natal (RN).
Mas Biden não tinha assim tanto interesse no jogo – ele chegou atrasado ao estádio e perdeu o primeiro gol do atacante Dempsey, antes do primeiro minuto. Logo depois do futebol com a neta e um sobrinho, decolou a Brasília. No dia seguinte, conversou a sós longamente com Dilma. Biden usou da simpatia que conquistou – a presidente disse que ele era “sedutor” – para tentar convencê-la de que Obama ordenou uma “revisão imediata” no programa de vigilância. E que mudaria a abordagem com o Brasil.
Na ocasião, Biden trouxe um presente sob medida para a presidente. O vice de Obama entregou a Dilma um lote de documentos até então secretos dos arquivos dos EUA sobre violações na ditadura militar. Os papéis reforçariam a coleta de provas da Comissão Nacional da Verdade, para irritação de oficiais brasileiros.
Após superar o choque de espionagem, Biden voltaria a Brasília em janeiro de 2015, por ocasião da posse de Dilma no segundo mandato. Numa carta de agradecimento com linguagem diplomática, a presidente registrou que os “laços de amizade e apreço” uniam não só os dois povos, mas “a nós pessoalmente”.
Dois anos depois, Biden foi encarregado de receber em Washington o presidente Michel Temer (2016-2018), empossado com o afastamento de Dilma, e dar o sinal de reconhecimento americano a sua legitimidade na presidência. No auge da Operação Lava Jato, Biden criticou escândalos de corrupção no continente e respaldou a transição de poder.
Ele afirmou que “o Brasil seguiu sua Constituição para navegar um momento econômico e político difícil”. O embaixador Paulo Roberto de Almeida, ex-diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (Ipri), estudioso da história da diplomacia e crítico da atual gestão do Itamaraty, destacaque as diferenças entre republicanos e democratas são mais de “aparência” na relação com o Planalto.
Ele observa que houve períodos áureos e baixos nas relações entre os dois partidos. “Os Estados Unidos são um império, buscam segurança em primeiro lugar e abertura em segundo. Mas para eles, abertura é quando outros países se abrem para os investimentos e o comércio, os produtos americanos”, analisa o embaixador, também adversário de gestões petistas no Itamaraty. “Depois eles impõem restrições, espionam a qualquer um, inimigos ou aliados.”
A relação com Brasília sempre passou, nas gestões democratas afeitas ao multilateralismo, pela posição de influência regional do Brasil na América do Sul. Atualmente, Bolsonaro vive em conflito político com a Argentina de Alberto Fernández e a Bolívia, de Luis Arce, ambos de esquerda. Analistas e diplomatas dos dois lados concordam que caberá a Bolsonaro mostrar abertura ao diálogo e moderação para acessar Biden.