Após resistir a uma série de escândalos nos últimos meses, Boris Johnson renunciou ao cargo de primeiro-ministro do Reino Unido. Mas a saída somente ocorreu após uma série de renúncias coletivas de ministros e funcionários, paralisando o governo e impondo uma crise política ao Partido Conservador. Apesar de Johnson se manter no cargo até o novo líder ser escolhido, o Reino Unido se encontra sem uma liderança enquanto lida com uma economia em queda e os efeitos da pandemia de covid-19.
“Foram os 2 ou 3 dias mais notáveis na política britânica”, destaca o pesquisador em história e ciência política britânica, Joe Mulhall. “Mais de 50 ministros e funcionários do governo renunciaram nos últimos 2 dias. Tivemos uma situação única em que o ministro do tesouro renunciou foi substituído ontem, e essa pessoa hoje sai e pede que o primeiro-ministro renuncie. Nunca vimos algo assim, é um verdadeiro desafio à nossa democracia e à nossa constituição”.
“Atualmente não temos um governo em funcionamento no Reino Unido. Não temos ministros. Nosso departamento de Educação não tem um único ministro nomeado hoje, nosso tesouro tem um agora finalmente. Todos os cargos-chave do governo britânico se demitiram, então quem está administrando nosso governo está amarrado agora”, completa.
E tudo isso, ele aponta, não poderia ocorrer em um pior momento. Eleito para fazer o Brexit acontecer, Johnson deixa o cargo com um Reino Unido sentindo os primeiros efeitos - negativos - do plebiscito que ocorreu em 2016. O país está caminhando para uma enorme crise econômica, impulsionada pela pandemia e pela guerra na Ucrânia como o resto do mundo, mas agravada pelo Brexit e por um governo que se preocupava em se manter no poder.
“Temos mais de 10% de inflação agora. Nunca tinha visto isso na minha vida. Temos as contas aumentando, a gasolina está muito cara, o aquecimento das casas está muito caro. Estamos caminhando para uma crise, e parte por causa do Brexit, mas também por causa da pandemia e do governo. É como uma tempestade perfeita”, afirma Mulhall.
“As coisas estão realmente muito perigosas agora e não temos nenhum tipo de liderança para lidar com isso realmente. E ainda por cima tem uma guerra em curso na Ucrânia. Essa foi a única coisa que esse governo acertou, apoiar a Ucrânia”.
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O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, renunciou ao cargo de líder do Partido Conservador, abrindo caminho para a escolha de um novo premiê.
Erosões democráticas
Mulhall, cujo foco de pesquisa é o extremismo britânico, ressalta que Johnson deixa o poder, mas não sem antes causar uma imensa crise às regras democráticas do Reino Unido. Até o anúncio da retirada esta manhã, não havia qualquer certeza de que Boris Johnson o faria ou se tentaria o possível para se manter no poder mesmo sem apoio político.
“Os mecanismos para a mudança de líderes nessas situações giravam em torno de honestidade, dignidade, constrangimento social. Isso são coisas bem britânicas. Não se mantém no poder quando isso se torna muito vergonhoso. Mas quando temos alguém como Boris Johnson, que não tem dignidade, não está envergonhado e está disposto a fazer qualquer coisa pelo poder, isso joga questionamentos em nossas regras não-escritas da Constituição. Porque os mecanismos para removê-lo eram realmente muito pequenos.”
As tentativas de Johnson em permanecer no cargo lançaram questionamentos de se ele teria a coragem de convocar novas eleições - que dependeria da aprovação da Rainha - e forçou seus próprios colegas de partido a consideraren mudanças nas regras internas para promover um novo voto de desconfiança em um período de tempo menor.
Para o pesquisador, estas são ameaças que não vão deixar a política britânica tão cedo, de uma maneira semelhante que a saída de Donald Trump nos Estados Unidos não corrigiu automaticamente as erosões democráticas que havia provocado. “Boris e Trump são muito diferentes em alguns aspectos, mas são muito semelhantes em outros. Ambos são mentirosos, mentem para o público e este é um governo que mentiu várias vezes”, pontua.
Para entender
“A grande questão agora é se este é o caso de apenas uma pessoa que atropelou a nossa Constituição e nossas regras ou se há um perigo de longo prazo por vir, que desvalorizou as instituições de nossa democracia. Espero que não seja isso, mas pode ser”, admite.
A crise de imagem tende a manchar ainda mais o partido mais tradicional do Reino Unido, já que ficou claro que a queda de Johnson não ocorreu por suas más condutas, mas sim pelos custos à reputação nas próximas eleições. “Em algum momento, o Partido Conservador decidiu que perderia a próxima eleição se ele estivesse no poder. Este não é um movimento moral. Isso é porque eles perderiam poder com ele lá.”
As próximas eleições
É uma crise que o Partido Conservador terá muito pouco tempo para se recuperar, já que as próximas eleições nacionais ocorrerão em 2024. Os escândalos de Johnson já custaram ao partido apoios nas eleições regionais, e depois de ter três primeiros-ministros consecutivos renunciando (David Cameron, Theresa May e Boris Johnson), o partido conta com a desorganização da oposição para se manter no governo no futuro.
“O Partido Trabalhista pode ganhar [as próximas eleições], mas também há uma chance de perdermos o líder do Partido Trabalhista também, há muito tempo para isso ainda. Meu palpite é que o Partido Conservador vai substituir seu líder nos próximos meses e então passará a focar todas as suas forças nas eleições. E tem grandes chances de ganhar, porque apesar do Partido Conservador ser um desastre, os trabalhistas ainda não oferecem uma visão melhor de futuro.”
“O partido conservador é muito bom em se manter no poder. Eles estão no poder há mais de 10 anos no Reino Unido. E então, quando eles têm crises como essa, eles são muito bons em se reagrupar e manter o poder”, ressalta o pesquisador. “Parte disso é porque o Partido Trabalhista não teve muito sucesso nos últimos anos e tem sido uma verdadeira bagunça de muitas maneiras internamente.”
“A questão agora é se o Partido Trabalhista, ou outro partido se você quiser, será forte o suficiente para se reorganizar para ganhar uma eleição. Isso ainda é uma grande questão”, finaliza.