A decisão do primeiro-ministro Hassan Diab de renunciar na segunda-feira, 10, após uma onda de protestos provocados pelas explosões no porto de Beirute, não é suficiente para conter a insatisfação política que tomou conta da população libanesa, afirmou a professora de ciência política Tamirace Fakhoury, da Universidade Americana do Líbano.
A situação do governo ficou insustentável após protestos violentos do fim de semana e a demissão de vários ministros. Agora, líderes dos partidos devem negociar com o presidente Michel Aoun a escolha de um novo premiê, processo que pode levar meses. O Líbano vive um processo de depreciação da moeda, demissões em massa, restrições de saques nos bancos e aumento da insegurança alimentar.
A explosão, que deixou pelo menos 171 mortos, 6 mil feridos e 300 mil desabrigados, além de devastar metade da cidade que é o motor econômico do país, tem sido atribuída pelos manifestantes à negligência e à ineficiência da classe política, marcada pela corrupção endêmica, pelo clientelismo e pelo sectarismo. Abaixo a entrevista completa.
O primeiro-ministro anunciou sua renúncia e novas eleições. A senhora acredita que isso suficiente para acalmar a situação política no Líbano?
Com certeza não é suficiente. Eu diria até que é muito tarde. O Líbano já está vivenciando desastres desde os protestos de outubro de 2019, com um colapso econômico. Os políticos poderiam ter feito reformas muito antes disso. O fato de precisarem de um desastre para convocar um novo governo e eleições nos faz sentir como um cenário de ficção. As pessoas não levam a classe política mais a sério, ela perdeu a credibilidade e mostrou empiricamente que não está interessada em reformas. Já tivemos muitas crises, as pessoas não podendo acessar o dinheiro que guardaram nos bancos, a libra libanesa perdendo seu valor. São muitas formas de agonia e as pessoas já estavam pedindo mudanças que não aconteciam.
Como a senhora vê essa renúncia do premiê e seu gabinete?
Um dos motivos é porque o governo não quer ser o bode expiatório. Eles decidiram renunciar para se proteger de serem responsabilizados. Então, os motivos para essa renúncia são muito questionáveis. Um governo sério poderia ter iniciado reformas muito antes. Em segundo, convocar eleições que ninguém sabe quando ocorrerão, qual será a logística delas. As pessoas estão em luto, estão sofrendo, não estão pensando em eleição agora. Então, o governo mostra que não pode fazer nada, pede eleições novas e a formação de um novo governo.
Que reformas concretas estão sendo pedidas nas ruas?
O Líbano estava tentando obter assistência financeira com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que pediu um plano de resgate econômico, mas a elite política não conseguiu concordar nem com isso. Deveriam ter entregue no começo do ano e até agora nada. Enquanto isso, as vidas das pessoas foram se deteriorando, a classe média foi quase erradicada. Não houve reformas contra a corrupção, para promover a meritocracia, para melhorar o setor de eletricidade. Reformas de infraestrutura. Além das reformas mudando as leis, dando mais direitos individuais como para os grupos LGBT. As demandas são muitas.
Existem lideranças se destacando nos protestos no Líbano até este momento ou é uma movimentação espontânea?
Existem muitas pessoas capazes nas manifestações, o Líbano está muito mobilizando, mas não há um líder apontado ainda. Essa foi uma tragédia sem precedentes, uma explosão inesperada que quase apagou Beirute do mapa. Tudo porque os líderes políticos negligenciaram e foram ineficientes. Eu diria que essa explosão deixou traços irreversíveis no país e está inspirando um novo capítulo do ativismo dos cidadãos contra o estado libanês. As pessoas não têm dúvida de que esse establishment político foi exposto e desacreditado. Há muitos autocratas no Líbano. As pessoas identificaram isso e acredito que agora haverá mais convergência para mudar isso.
Cenário apocalíptico um dia após as explosões em Beirute
Para quem é de fora, às vezes é até difícil entender a divisão política em que o presidente precisa ser um cristão maronita, o primeiro-ministro um muçulmano sunita e o presidente do Parlamento um muçulmano xiita. O povo está revoltado com isso?
Essa forma de dividir o poder entre grupos sectários mina a transparência, a meritocracia e faz o sectarismo ser mais forte que as instituições e o Estado de direito. O sectarismo vira o Estado. Se você quer formar um governo, tem que ter um representante daquele setor. Você não está pensando se ele é bom, está cegado por isso. Isso acaba com a meritocracia. Se você ouvir as 200 mil pessoas que foram às ruas, elas estão bravas com isso. Mas ainda não há medidas concretas de como mudar o sistema e de como uma nova lei eleitoral poderia ser.
Mas ainda há muitas pessoas que dependem dos partidos políticos e não vão se rebelar contra o sistema. Elas recebem benefícios do sistema, tem partidos políticos dando empregos, pagando as contas de luz. Então, a corrupção econômica da representação sectária se tornou uma fórmula para fazer os cidadãos escravos da situação. Eles não são independentes. Então, é um contexto multifacetado.
Qual deve ser o papel da comunidade internacional para apoiar o Líbano concretamente?
Em primeiro lugar, precisamos de um alívio imediato. O país tem pedido e arrecadado fundos. Mas eles até agora não são suficientes, é preciso muito mais para reconstruir Beirute e atender necessidades das pessoas. Mas qual a estratégia de longo termo? Pressionar os líderes políticos libaneses para adotarem reformas? Acredito que é um pouco tarde para isso. A comunidade internacional por muito tempo cooperou com os líderes corruptos do Líbano, legitimando-os e indiretamente fortalecendo o sistema. Não dá para lidar mais com esses líderes corruptos, pois eles estão fortalecendo-os contra a população do país.