Repetir as eleições seria como zombar do povo venezuelano, diz diretora da Human Rights Watch


Segundo Juanita Goebertus Estrada, qualquer nova eleição na Venezuela ocorreria em condições ainda mais precárias após a onda de repressão do chavismo

Por Carolina Marins
Foto: Divulgação/HRW
Entrevista comJuanita Goebertus EstradaDiretora para as Américas da Human Rights Watch

A diretora para as Américas da Human Rights Watch, Juanita Goebertus Estrada, redigiu na última terça-feira, 27, uma carta direcionada aos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Gustavo Petro da Colômbia e Andrés Manuel López Obrador do México em que demonstrava preocupações com as propostas dos três países para a Venezuela.

Em entrevista ao Estadão por vídeo-chamada, ela detalhou os pontos críticos de propor novas eleições no país, confiar nas instituições políticas e judiciais da Venezuela para resolver esta crise e sugerir uma anistia ampla aos membros da ditadura em troca de uma transição democrática.

“Repetir as eleições não seria outra coisa além de zombar do povo venezuelano, porque implica desconhecer que houve um resultado — ninguém imagina que, diante da reclamação de Bolsonaro no Brasil, Lula ou o PT teriam aceitado repetir as eleições — o que deveria ser feito era fazer valer o resultado, como de fato aconteceu no Brasil”, disse.

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Manifestante segura uma bandeira da Venezuela durante protesto da oposição em 28 de agosto Foto: Cristian Hernandez/AP

Mesmo com ambos os lados - o chavismo e a oposição - rejeitando a proposta, Lula voltou a defender novas eleições na Venezuela durante uma reunião com líderes da Câmara na noite de segunda-feira, 26.

“É lamentável que o governo insista nessa proposta”, continuou a diretora. “Nos preocupa, além disso, que não se leve em conta que as situações dentro do país se agravaram ainda mais.”

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Nesta quarta-feira, 28, exatamente um mês depois das eleições, a oposição voltou às ruas para exigir o reconhecimento da vitória de Edmundo González Urrutia, candidato opositor. Maduro, porém, reivindica vitória com 51% dos votos sem nunca ter apresentado as atas de votação.

A oposição, por outro lado, conseguiu reunir mais de 80% das atas que apontam uma vitória do opositor em mais de 66%. Organismos, estudos e jornais independentes checaram e confirmaram a veracidade dos documentos. Ainda assim, a Justiça venezuelana ratificou a vitória de Maduro, que na quarta promoveu uma reforma ministerial em um sinal ainda mais claro de que não pretende entregar o poder.

Abaixo, trechos da entrevista com a diretora da HRW:

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Por que escrever a carta direcionada aos três presidentes?

Nós tomamos a decisão de dirigir esta carta aos três presidentes porque eles abriram um canal emblemático e têm um papel de poder ter um diálogo com o regime de Nicolás Maduro. São três governos que não reconheceram a vitória de Nicolás Maduro, apesar de terem mantido a relação bilateral com ele. Eles insistiram para que as atas fossem publicadas, insistiram para que houvesse uma observação independente e, no entanto, colocaram sobre a mesa algumas outras propostas que nos preocupam. Por isso, apoiando-se no canal diplomático, fazemos a eles, respeitosamente, algumas recomendações sobre como enaltecer princípios democráticos e de direito internacional nesse canal diplomático.

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Ainda assim, Lula segue insistindo na ideia de novas eleições. Por que a HRW não vê esta como uma opção plausível?

Esta proposta nos preocupa muito em primeiro lugar porque, se observarmos os relatórios tanto do Centro Carter quanto do painel de especialistas das Nações Unidas, ambos concordam em apontar que foram eleições, que, embora tenham ocorrido em um contexto de restrição do direito à participação política pela inabilitação de candidatos e pela detenção de diferentes líderes políticos e defensores dos direitos humanos, foram eleições que, no dia da votação, transcorreram de maneira pacífica. Ambos os monitores eleitorais chegaram a conclusões similares no sentido de que as atas publicadas pela oposição possuem todas as características para serem consideradas confiáveis, e que, por outro lado, o resultado dado pelo Conselho Nacional Eleitoral não tem suporte algum, dado que não publicaram nenhuma das atas nesse sentido.

Repetir as eleições, portanto, não seria outra coisa além de zombar do povo venezuelano, porque implica desconhecer que houve um resultado — ninguém imagina que, diante da reclamação de Bolsonaro no Brasil, Lula ou o PT teriam aceitado repetir as eleições — o que deveria ser feito era fazer valer o resultado, como de fato aconteceu no Brasil. Então, acreditamos que é lamentável que o governo insista nessa proposta. Nos preocupa, além disso, que não se leve em conta que as situações dentro do país se agravaram ainda mais, tem que se lembrar que a Assembleia aprovou uma lei anti-ONGs que o que faz é permitir a liquidação, a sanção monetária e até mesmo a criminalização dos líderes dos que hoje estão documentando em terreno a repressão, e que, além disso, ameaçaram com não convidar nenhum monitor internacional para nenhuma eleição futura, então, sendo já um contexto eleitoral muito difícil, qualquer nova eleição estaria sujeita a condições ainda mais precárias para o direito ao voto.

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A líder da oposição María Corina Machado durante protestos em 28 de agosto Foto: Cristian Hernandez/AP

Os três governos dizem ainda esperar a publicação das atas por parte do CNE, mesmo se passando já um mês das eleições sem que haja sinais de que elas serão publicadas e, ainda que fossem, haveria muita suspeita sobre sua credibilidade. Faz sentido ainda insistir nessa via?

A primeira coisa a apontar é que o chamado dos três presidentes não foi apenas para a publicação das atas, que obviamente é o primeiro passo, mas também para as verificações independentes que estão contempladas na lei venezuelana. Como você diz, qualquer ata que seja publicada agora teria que ser verificada para estabelecer se realmente é fidedigna. Já passou tanto tempo e as atas que não se tornam públicas isso reduz muito a credibilidade de qualquer ata que seja publicada daqui para frente.

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Por isso, além dos mecanismos ordinários, insistimos que, se pudesse funcionar um mecanismo, digamos, de busca de soluções, seria criar um mecanismo Ad hoc especializado, uma espécie de auditoria independente nacional e internacional em que todas as partes pudessem confiar para realmente validar as atas. Por isso, insistimos e aí talvez tenha sido o presidente AMLO quem mais chamou atenção sobre resolver isso pelas vias institucionais. O problema que temos na Venezuela é que essas vias institucionais, como o Tribunal Supremo de Justiça, estão comprometidas e, por isso, um mecanismo ad hoc que permitisse ver todas as atas, tanto as que a oposição publicou quanto as que o governo gostaria de apresentar, seria um mecanismo razoável para poder dirimir a controvérsia, e não as instituições hoje cooptadas pelo governo de Nicolás Maduro.

O terceiro ponto da carta foi rechaçar uma proposta do presidente Gustavo Petro para uma anistia ampla em caso de uma transição de poder. Por que esta não seria uma alternativa?

Em um processo de negociação, se fosse possível ter uma discussão para buscar uma transição para a democracia, seria perfeitamente possível apresentar alternativas de justiça transicional que permitam perseguir criminalmente o máximo responsável, fazendo uma mistura de mecanismos judiciais e extrajudiciais para esclarecer a verdade e reparar as vítimas. Mas o que não poderia, em nenhum cenário, estar na mesa é uma anistia geral e incondicionada porque na Venezuela foram cometidos crimes de lesa humanidade. A missão de estabelecimento dos fatos criada pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em Genebra concluiu que, sob o governo de Nicolás Maduro, foram cometidos crimes de lesa humanidade, constitutivos de torturas, de execuções extrajudiciais, de detenções arbitrárias e esses mesmos fatos são objeto hoje de investigação por parte da Promotoria da Corte Penal Internacional. Então, nos parece infeliz que o presidente Petro proponha uma anistia tão ampla, que desconheça o direito internacional e até mesmo desconheça a própria experiência colombiana em matéria de justiça transicional.

Fotos e balões representando pessoas detidas na Venezuela desde as eleições Foto: Fernando Vergara/AP

Pode falar um pouco dessa experiência colombiana?

Na Colômbia, após um conflito armado de mais de 60 anos, no acordo final de fim do conflito que foi firmado perante o governo colombiano e a ex-guerrilha das Farc em 2016, criou-se um sistema integral de verdade, justiça, reparação e garantias de não repetição. Esse sistema inclui uma jurisdição especial de paz, que é um órgão judicial criado para investigar, julgar e sancionar os principais responsáveis, tanto da guerrilha quanto do exército, que cometeram crimes contra a humanidade e crimes de guerra no contexto do conflito armado colombiano. Este mecanismo permite sanções alternativas e anistia a pessoas que são menos responsáveis ou que estiveram envolvidas em delitos menos graves, mas garante que se faça justiça frente às vítimas pelos crimes mais graves. Contém também uma comissão da verdade, um programa de reparação administrativa e uma unidade de busca de pessoas desaparecidas.

Qual o saldo, em termos de direitos humanos, depois de um mês das eleições presidenciais?

Estamos muito preocupados. O próprio governo falou de mais de 2.400 pessoas que foram capturadas. Nós, além disso, conseguimos documentar com a ajuda de organizações locais que essas são pessoas que não estão sendo liberadas, ao contrário do que acontecia em 2014 e 2017, em que as detenções eram um pouco mais curtas. Eles estão perseguindo por terrorismo, isso implica que automaticamente lhes é imposta uma medida restritiva de liberdade, não estão permitindo que eles tenham acesso a um advogado de confiança, não estão deixando eles verem seus familiares e, em algumas ocasiões, os perseguem através de audiências virtuais que restringem seriamente seu devido processo legal.

Já são 24 casos de pessoas que perderam a vida neste contexto de protestos pós-eleitorais. Nós temos feito a verificação dos vídeos de cada um desses acontecimentos e conseguimos identificar pessoas em alguns casos, havendo suposta responsabilidade das Forças Armadas e, em outros, suposta responsabilidade de coletivos, uma espécie de grupos armados civis paramilitares que colaboram com as forças armadas. Além desses casos, já há mais de 90 casos de pessoas feridas nas manifestações e mais de 20 casos de pessoas que ainda estão desaparecidas. É realmente um aumento brutal na repressão por parte do regime.

O ditador da Venezuela Nicolás Maduro durante marcha chavista em 17 de agosto Foto: Cristian Hernandez/AP

Com este cenário, é possível ainda acreditar em uma saída desta crise?

Eu sinto que a comunidade internacional não consegue se reunir. Os venezuelanos e venezuelanas estão dando a luta. Eles estão resistindo e a única coisa que a comunidade internacional não pode fazer é abandoná-los. Os caminhos se fecham, as vias diplomáticas são cada vez mais escassas, mas aqui tem um povo venezuelano lutando e eu acredito que isso nos corresponde a todos, porque aqui não está em jogo apenas o futuro da Venezuela, mas também de toda a América Latina. Lembremos que mais de 7.7 milhões de venezuelanos migraram, nas pesquisas antes da eleição falava-se entre 1.5 e 3 milhões de venezuelanos que, se Nicolás Maduro se manter no poder, migrariam. Já estamos vendo novamente o aumento do fluxo de venezuelanos tanto na fronteira com o Brasil quanto na travessia pelo Darién. Então, nos corresponde a todos na América Latina continuar insistindo para que se consiga um processo de transição para a democracia na Venezuela.

E de fato Brasil, Colômbia e México tem um papel central nessa saída?

Eu acredito que há um papel para os diferentes países. Insisto que tem havido vozes muito potentes e muito coerentes como a do presidente [Gabriel] Boric, no Chile. Acredito que devemos continuar insistindo que devem participar também os Estados Unidos e os países europeus, claro, a União Europeia, mas é claro que, como latino-americanos, temos um papel muito importante a desempenhar neste processo também.

A diretora para as Américas da Human Rights Watch, Juanita Goebertus Estrada, redigiu na última terça-feira, 27, uma carta direcionada aos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Gustavo Petro da Colômbia e Andrés Manuel López Obrador do México em que demonstrava preocupações com as propostas dos três países para a Venezuela.

Em entrevista ao Estadão por vídeo-chamada, ela detalhou os pontos críticos de propor novas eleições no país, confiar nas instituições políticas e judiciais da Venezuela para resolver esta crise e sugerir uma anistia ampla aos membros da ditadura em troca de uma transição democrática.

“Repetir as eleições não seria outra coisa além de zombar do povo venezuelano, porque implica desconhecer que houve um resultado — ninguém imagina que, diante da reclamação de Bolsonaro no Brasil, Lula ou o PT teriam aceitado repetir as eleições — o que deveria ser feito era fazer valer o resultado, como de fato aconteceu no Brasil”, disse.

Manifestante segura uma bandeira da Venezuela durante protesto da oposição em 28 de agosto Foto: Cristian Hernandez/AP

Mesmo com ambos os lados - o chavismo e a oposição - rejeitando a proposta, Lula voltou a defender novas eleições na Venezuela durante uma reunião com líderes da Câmara na noite de segunda-feira, 26.

“É lamentável que o governo insista nessa proposta”, continuou a diretora. “Nos preocupa, além disso, que não se leve em conta que as situações dentro do país se agravaram ainda mais.”

Nesta quarta-feira, 28, exatamente um mês depois das eleições, a oposição voltou às ruas para exigir o reconhecimento da vitória de Edmundo González Urrutia, candidato opositor. Maduro, porém, reivindica vitória com 51% dos votos sem nunca ter apresentado as atas de votação.

A oposição, por outro lado, conseguiu reunir mais de 80% das atas que apontam uma vitória do opositor em mais de 66%. Organismos, estudos e jornais independentes checaram e confirmaram a veracidade dos documentos. Ainda assim, a Justiça venezuelana ratificou a vitória de Maduro, que na quarta promoveu uma reforma ministerial em um sinal ainda mais claro de que não pretende entregar o poder.

Abaixo, trechos da entrevista com a diretora da HRW:

Por que escrever a carta direcionada aos três presidentes?

Nós tomamos a decisão de dirigir esta carta aos três presidentes porque eles abriram um canal emblemático e têm um papel de poder ter um diálogo com o regime de Nicolás Maduro. São três governos que não reconheceram a vitória de Nicolás Maduro, apesar de terem mantido a relação bilateral com ele. Eles insistiram para que as atas fossem publicadas, insistiram para que houvesse uma observação independente e, no entanto, colocaram sobre a mesa algumas outras propostas que nos preocupam. Por isso, apoiando-se no canal diplomático, fazemos a eles, respeitosamente, algumas recomendações sobre como enaltecer princípios democráticos e de direito internacional nesse canal diplomático.

Ainda assim, Lula segue insistindo na ideia de novas eleições. Por que a HRW não vê esta como uma opção plausível?

Esta proposta nos preocupa muito em primeiro lugar porque, se observarmos os relatórios tanto do Centro Carter quanto do painel de especialistas das Nações Unidas, ambos concordam em apontar que foram eleições, que, embora tenham ocorrido em um contexto de restrição do direito à participação política pela inabilitação de candidatos e pela detenção de diferentes líderes políticos e defensores dos direitos humanos, foram eleições que, no dia da votação, transcorreram de maneira pacífica. Ambos os monitores eleitorais chegaram a conclusões similares no sentido de que as atas publicadas pela oposição possuem todas as características para serem consideradas confiáveis, e que, por outro lado, o resultado dado pelo Conselho Nacional Eleitoral não tem suporte algum, dado que não publicaram nenhuma das atas nesse sentido.

Repetir as eleições, portanto, não seria outra coisa além de zombar do povo venezuelano, porque implica desconhecer que houve um resultado — ninguém imagina que, diante da reclamação de Bolsonaro no Brasil, Lula ou o PT teriam aceitado repetir as eleições — o que deveria ser feito era fazer valer o resultado, como de fato aconteceu no Brasil. Então, acreditamos que é lamentável que o governo insista nessa proposta. Nos preocupa, além disso, que não se leve em conta que as situações dentro do país se agravaram ainda mais, tem que se lembrar que a Assembleia aprovou uma lei anti-ONGs que o que faz é permitir a liquidação, a sanção monetária e até mesmo a criminalização dos líderes dos que hoje estão documentando em terreno a repressão, e que, além disso, ameaçaram com não convidar nenhum monitor internacional para nenhuma eleição futura, então, sendo já um contexto eleitoral muito difícil, qualquer nova eleição estaria sujeita a condições ainda mais precárias para o direito ao voto.

A líder da oposição María Corina Machado durante protestos em 28 de agosto Foto: Cristian Hernandez/AP

Os três governos dizem ainda esperar a publicação das atas por parte do CNE, mesmo se passando já um mês das eleições sem que haja sinais de que elas serão publicadas e, ainda que fossem, haveria muita suspeita sobre sua credibilidade. Faz sentido ainda insistir nessa via?

A primeira coisa a apontar é que o chamado dos três presidentes não foi apenas para a publicação das atas, que obviamente é o primeiro passo, mas também para as verificações independentes que estão contempladas na lei venezuelana. Como você diz, qualquer ata que seja publicada agora teria que ser verificada para estabelecer se realmente é fidedigna. Já passou tanto tempo e as atas que não se tornam públicas isso reduz muito a credibilidade de qualquer ata que seja publicada daqui para frente.

Por isso, além dos mecanismos ordinários, insistimos que, se pudesse funcionar um mecanismo, digamos, de busca de soluções, seria criar um mecanismo Ad hoc especializado, uma espécie de auditoria independente nacional e internacional em que todas as partes pudessem confiar para realmente validar as atas. Por isso, insistimos e aí talvez tenha sido o presidente AMLO quem mais chamou atenção sobre resolver isso pelas vias institucionais. O problema que temos na Venezuela é que essas vias institucionais, como o Tribunal Supremo de Justiça, estão comprometidas e, por isso, um mecanismo ad hoc que permitisse ver todas as atas, tanto as que a oposição publicou quanto as que o governo gostaria de apresentar, seria um mecanismo razoável para poder dirimir a controvérsia, e não as instituições hoje cooptadas pelo governo de Nicolás Maduro.

O terceiro ponto da carta foi rechaçar uma proposta do presidente Gustavo Petro para uma anistia ampla em caso de uma transição de poder. Por que esta não seria uma alternativa?

Em um processo de negociação, se fosse possível ter uma discussão para buscar uma transição para a democracia, seria perfeitamente possível apresentar alternativas de justiça transicional que permitam perseguir criminalmente o máximo responsável, fazendo uma mistura de mecanismos judiciais e extrajudiciais para esclarecer a verdade e reparar as vítimas. Mas o que não poderia, em nenhum cenário, estar na mesa é uma anistia geral e incondicionada porque na Venezuela foram cometidos crimes de lesa humanidade. A missão de estabelecimento dos fatos criada pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em Genebra concluiu que, sob o governo de Nicolás Maduro, foram cometidos crimes de lesa humanidade, constitutivos de torturas, de execuções extrajudiciais, de detenções arbitrárias e esses mesmos fatos são objeto hoje de investigação por parte da Promotoria da Corte Penal Internacional. Então, nos parece infeliz que o presidente Petro proponha uma anistia tão ampla, que desconheça o direito internacional e até mesmo desconheça a própria experiência colombiana em matéria de justiça transicional.

Fotos e balões representando pessoas detidas na Venezuela desde as eleições Foto: Fernando Vergara/AP

Pode falar um pouco dessa experiência colombiana?

Na Colômbia, após um conflito armado de mais de 60 anos, no acordo final de fim do conflito que foi firmado perante o governo colombiano e a ex-guerrilha das Farc em 2016, criou-se um sistema integral de verdade, justiça, reparação e garantias de não repetição. Esse sistema inclui uma jurisdição especial de paz, que é um órgão judicial criado para investigar, julgar e sancionar os principais responsáveis, tanto da guerrilha quanto do exército, que cometeram crimes contra a humanidade e crimes de guerra no contexto do conflito armado colombiano. Este mecanismo permite sanções alternativas e anistia a pessoas que são menos responsáveis ou que estiveram envolvidas em delitos menos graves, mas garante que se faça justiça frente às vítimas pelos crimes mais graves. Contém também uma comissão da verdade, um programa de reparação administrativa e uma unidade de busca de pessoas desaparecidas.

Qual o saldo, em termos de direitos humanos, depois de um mês das eleições presidenciais?

Estamos muito preocupados. O próprio governo falou de mais de 2.400 pessoas que foram capturadas. Nós, além disso, conseguimos documentar com a ajuda de organizações locais que essas são pessoas que não estão sendo liberadas, ao contrário do que acontecia em 2014 e 2017, em que as detenções eram um pouco mais curtas. Eles estão perseguindo por terrorismo, isso implica que automaticamente lhes é imposta uma medida restritiva de liberdade, não estão permitindo que eles tenham acesso a um advogado de confiança, não estão deixando eles verem seus familiares e, em algumas ocasiões, os perseguem através de audiências virtuais que restringem seriamente seu devido processo legal.

Já são 24 casos de pessoas que perderam a vida neste contexto de protestos pós-eleitorais. Nós temos feito a verificação dos vídeos de cada um desses acontecimentos e conseguimos identificar pessoas em alguns casos, havendo suposta responsabilidade das Forças Armadas e, em outros, suposta responsabilidade de coletivos, uma espécie de grupos armados civis paramilitares que colaboram com as forças armadas. Além desses casos, já há mais de 90 casos de pessoas feridas nas manifestações e mais de 20 casos de pessoas que ainda estão desaparecidas. É realmente um aumento brutal na repressão por parte do regime.

O ditador da Venezuela Nicolás Maduro durante marcha chavista em 17 de agosto Foto: Cristian Hernandez/AP

Com este cenário, é possível ainda acreditar em uma saída desta crise?

Eu sinto que a comunidade internacional não consegue se reunir. Os venezuelanos e venezuelanas estão dando a luta. Eles estão resistindo e a única coisa que a comunidade internacional não pode fazer é abandoná-los. Os caminhos se fecham, as vias diplomáticas são cada vez mais escassas, mas aqui tem um povo venezuelano lutando e eu acredito que isso nos corresponde a todos, porque aqui não está em jogo apenas o futuro da Venezuela, mas também de toda a América Latina. Lembremos que mais de 7.7 milhões de venezuelanos migraram, nas pesquisas antes da eleição falava-se entre 1.5 e 3 milhões de venezuelanos que, se Nicolás Maduro se manter no poder, migrariam. Já estamos vendo novamente o aumento do fluxo de venezuelanos tanto na fronteira com o Brasil quanto na travessia pelo Darién. Então, nos corresponde a todos na América Latina continuar insistindo para que se consiga um processo de transição para a democracia na Venezuela.

E de fato Brasil, Colômbia e México tem um papel central nessa saída?

Eu acredito que há um papel para os diferentes países. Insisto que tem havido vozes muito potentes e muito coerentes como a do presidente [Gabriel] Boric, no Chile. Acredito que devemos continuar insistindo que devem participar também os Estados Unidos e os países europeus, claro, a União Europeia, mas é claro que, como latino-americanos, temos um papel muito importante a desempenhar neste processo também.

A diretora para as Américas da Human Rights Watch, Juanita Goebertus Estrada, redigiu na última terça-feira, 27, uma carta direcionada aos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Gustavo Petro da Colômbia e Andrés Manuel López Obrador do México em que demonstrava preocupações com as propostas dos três países para a Venezuela.

Em entrevista ao Estadão por vídeo-chamada, ela detalhou os pontos críticos de propor novas eleições no país, confiar nas instituições políticas e judiciais da Venezuela para resolver esta crise e sugerir uma anistia ampla aos membros da ditadura em troca de uma transição democrática.

“Repetir as eleições não seria outra coisa além de zombar do povo venezuelano, porque implica desconhecer que houve um resultado — ninguém imagina que, diante da reclamação de Bolsonaro no Brasil, Lula ou o PT teriam aceitado repetir as eleições — o que deveria ser feito era fazer valer o resultado, como de fato aconteceu no Brasil”, disse.

Manifestante segura uma bandeira da Venezuela durante protesto da oposição em 28 de agosto Foto: Cristian Hernandez/AP

Mesmo com ambos os lados - o chavismo e a oposição - rejeitando a proposta, Lula voltou a defender novas eleições na Venezuela durante uma reunião com líderes da Câmara na noite de segunda-feira, 26.

“É lamentável que o governo insista nessa proposta”, continuou a diretora. “Nos preocupa, além disso, que não se leve em conta que as situações dentro do país se agravaram ainda mais.”

Nesta quarta-feira, 28, exatamente um mês depois das eleições, a oposição voltou às ruas para exigir o reconhecimento da vitória de Edmundo González Urrutia, candidato opositor. Maduro, porém, reivindica vitória com 51% dos votos sem nunca ter apresentado as atas de votação.

A oposição, por outro lado, conseguiu reunir mais de 80% das atas que apontam uma vitória do opositor em mais de 66%. Organismos, estudos e jornais independentes checaram e confirmaram a veracidade dos documentos. Ainda assim, a Justiça venezuelana ratificou a vitória de Maduro, que na quarta promoveu uma reforma ministerial em um sinal ainda mais claro de que não pretende entregar o poder.

Abaixo, trechos da entrevista com a diretora da HRW:

Por que escrever a carta direcionada aos três presidentes?

Nós tomamos a decisão de dirigir esta carta aos três presidentes porque eles abriram um canal emblemático e têm um papel de poder ter um diálogo com o regime de Nicolás Maduro. São três governos que não reconheceram a vitória de Nicolás Maduro, apesar de terem mantido a relação bilateral com ele. Eles insistiram para que as atas fossem publicadas, insistiram para que houvesse uma observação independente e, no entanto, colocaram sobre a mesa algumas outras propostas que nos preocupam. Por isso, apoiando-se no canal diplomático, fazemos a eles, respeitosamente, algumas recomendações sobre como enaltecer princípios democráticos e de direito internacional nesse canal diplomático.

Ainda assim, Lula segue insistindo na ideia de novas eleições. Por que a HRW não vê esta como uma opção plausível?

Esta proposta nos preocupa muito em primeiro lugar porque, se observarmos os relatórios tanto do Centro Carter quanto do painel de especialistas das Nações Unidas, ambos concordam em apontar que foram eleições, que, embora tenham ocorrido em um contexto de restrição do direito à participação política pela inabilitação de candidatos e pela detenção de diferentes líderes políticos e defensores dos direitos humanos, foram eleições que, no dia da votação, transcorreram de maneira pacífica. Ambos os monitores eleitorais chegaram a conclusões similares no sentido de que as atas publicadas pela oposição possuem todas as características para serem consideradas confiáveis, e que, por outro lado, o resultado dado pelo Conselho Nacional Eleitoral não tem suporte algum, dado que não publicaram nenhuma das atas nesse sentido.

Repetir as eleições, portanto, não seria outra coisa além de zombar do povo venezuelano, porque implica desconhecer que houve um resultado — ninguém imagina que, diante da reclamação de Bolsonaro no Brasil, Lula ou o PT teriam aceitado repetir as eleições — o que deveria ser feito era fazer valer o resultado, como de fato aconteceu no Brasil. Então, acreditamos que é lamentável que o governo insista nessa proposta. Nos preocupa, além disso, que não se leve em conta que as situações dentro do país se agravaram ainda mais, tem que se lembrar que a Assembleia aprovou uma lei anti-ONGs que o que faz é permitir a liquidação, a sanção monetária e até mesmo a criminalização dos líderes dos que hoje estão documentando em terreno a repressão, e que, além disso, ameaçaram com não convidar nenhum monitor internacional para nenhuma eleição futura, então, sendo já um contexto eleitoral muito difícil, qualquer nova eleição estaria sujeita a condições ainda mais precárias para o direito ao voto.

A líder da oposição María Corina Machado durante protestos em 28 de agosto Foto: Cristian Hernandez/AP

Os três governos dizem ainda esperar a publicação das atas por parte do CNE, mesmo se passando já um mês das eleições sem que haja sinais de que elas serão publicadas e, ainda que fossem, haveria muita suspeita sobre sua credibilidade. Faz sentido ainda insistir nessa via?

A primeira coisa a apontar é que o chamado dos três presidentes não foi apenas para a publicação das atas, que obviamente é o primeiro passo, mas também para as verificações independentes que estão contempladas na lei venezuelana. Como você diz, qualquer ata que seja publicada agora teria que ser verificada para estabelecer se realmente é fidedigna. Já passou tanto tempo e as atas que não se tornam públicas isso reduz muito a credibilidade de qualquer ata que seja publicada daqui para frente.

Por isso, além dos mecanismos ordinários, insistimos que, se pudesse funcionar um mecanismo, digamos, de busca de soluções, seria criar um mecanismo Ad hoc especializado, uma espécie de auditoria independente nacional e internacional em que todas as partes pudessem confiar para realmente validar as atas. Por isso, insistimos e aí talvez tenha sido o presidente AMLO quem mais chamou atenção sobre resolver isso pelas vias institucionais. O problema que temos na Venezuela é que essas vias institucionais, como o Tribunal Supremo de Justiça, estão comprometidas e, por isso, um mecanismo ad hoc que permitisse ver todas as atas, tanto as que a oposição publicou quanto as que o governo gostaria de apresentar, seria um mecanismo razoável para poder dirimir a controvérsia, e não as instituições hoje cooptadas pelo governo de Nicolás Maduro.

O terceiro ponto da carta foi rechaçar uma proposta do presidente Gustavo Petro para uma anistia ampla em caso de uma transição de poder. Por que esta não seria uma alternativa?

Em um processo de negociação, se fosse possível ter uma discussão para buscar uma transição para a democracia, seria perfeitamente possível apresentar alternativas de justiça transicional que permitam perseguir criminalmente o máximo responsável, fazendo uma mistura de mecanismos judiciais e extrajudiciais para esclarecer a verdade e reparar as vítimas. Mas o que não poderia, em nenhum cenário, estar na mesa é uma anistia geral e incondicionada porque na Venezuela foram cometidos crimes de lesa humanidade. A missão de estabelecimento dos fatos criada pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em Genebra concluiu que, sob o governo de Nicolás Maduro, foram cometidos crimes de lesa humanidade, constitutivos de torturas, de execuções extrajudiciais, de detenções arbitrárias e esses mesmos fatos são objeto hoje de investigação por parte da Promotoria da Corte Penal Internacional. Então, nos parece infeliz que o presidente Petro proponha uma anistia tão ampla, que desconheça o direito internacional e até mesmo desconheça a própria experiência colombiana em matéria de justiça transicional.

Fotos e balões representando pessoas detidas na Venezuela desde as eleições Foto: Fernando Vergara/AP

Pode falar um pouco dessa experiência colombiana?

Na Colômbia, após um conflito armado de mais de 60 anos, no acordo final de fim do conflito que foi firmado perante o governo colombiano e a ex-guerrilha das Farc em 2016, criou-se um sistema integral de verdade, justiça, reparação e garantias de não repetição. Esse sistema inclui uma jurisdição especial de paz, que é um órgão judicial criado para investigar, julgar e sancionar os principais responsáveis, tanto da guerrilha quanto do exército, que cometeram crimes contra a humanidade e crimes de guerra no contexto do conflito armado colombiano. Este mecanismo permite sanções alternativas e anistia a pessoas que são menos responsáveis ou que estiveram envolvidas em delitos menos graves, mas garante que se faça justiça frente às vítimas pelos crimes mais graves. Contém também uma comissão da verdade, um programa de reparação administrativa e uma unidade de busca de pessoas desaparecidas.

Qual o saldo, em termos de direitos humanos, depois de um mês das eleições presidenciais?

Estamos muito preocupados. O próprio governo falou de mais de 2.400 pessoas que foram capturadas. Nós, além disso, conseguimos documentar com a ajuda de organizações locais que essas são pessoas que não estão sendo liberadas, ao contrário do que acontecia em 2014 e 2017, em que as detenções eram um pouco mais curtas. Eles estão perseguindo por terrorismo, isso implica que automaticamente lhes é imposta uma medida restritiva de liberdade, não estão permitindo que eles tenham acesso a um advogado de confiança, não estão deixando eles verem seus familiares e, em algumas ocasiões, os perseguem através de audiências virtuais que restringem seriamente seu devido processo legal.

Já são 24 casos de pessoas que perderam a vida neste contexto de protestos pós-eleitorais. Nós temos feito a verificação dos vídeos de cada um desses acontecimentos e conseguimos identificar pessoas em alguns casos, havendo suposta responsabilidade das Forças Armadas e, em outros, suposta responsabilidade de coletivos, uma espécie de grupos armados civis paramilitares que colaboram com as forças armadas. Além desses casos, já há mais de 90 casos de pessoas feridas nas manifestações e mais de 20 casos de pessoas que ainda estão desaparecidas. É realmente um aumento brutal na repressão por parte do regime.

O ditador da Venezuela Nicolás Maduro durante marcha chavista em 17 de agosto Foto: Cristian Hernandez/AP

Com este cenário, é possível ainda acreditar em uma saída desta crise?

Eu sinto que a comunidade internacional não consegue se reunir. Os venezuelanos e venezuelanas estão dando a luta. Eles estão resistindo e a única coisa que a comunidade internacional não pode fazer é abandoná-los. Os caminhos se fecham, as vias diplomáticas são cada vez mais escassas, mas aqui tem um povo venezuelano lutando e eu acredito que isso nos corresponde a todos, porque aqui não está em jogo apenas o futuro da Venezuela, mas também de toda a América Latina. Lembremos que mais de 7.7 milhões de venezuelanos migraram, nas pesquisas antes da eleição falava-se entre 1.5 e 3 milhões de venezuelanos que, se Nicolás Maduro se manter no poder, migrariam. Já estamos vendo novamente o aumento do fluxo de venezuelanos tanto na fronteira com o Brasil quanto na travessia pelo Darién. Então, nos corresponde a todos na América Latina continuar insistindo para que se consiga um processo de transição para a democracia na Venezuela.

E de fato Brasil, Colômbia e México tem um papel central nessa saída?

Eu acredito que há um papel para os diferentes países. Insisto que tem havido vozes muito potentes e muito coerentes como a do presidente [Gabriel] Boric, no Chile. Acredito que devemos continuar insistindo que devem participar também os Estados Unidos e os países europeus, claro, a União Europeia, mas é claro que, como latino-americanos, temos um papel muito importante a desempenhar neste processo também.

A diretora para as Américas da Human Rights Watch, Juanita Goebertus Estrada, redigiu na última terça-feira, 27, uma carta direcionada aos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Gustavo Petro da Colômbia e Andrés Manuel López Obrador do México em que demonstrava preocupações com as propostas dos três países para a Venezuela.

Em entrevista ao Estadão por vídeo-chamada, ela detalhou os pontos críticos de propor novas eleições no país, confiar nas instituições políticas e judiciais da Venezuela para resolver esta crise e sugerir uma anistia ampla aos membros da ditadura em troca de uma transição democrática.

“Repetir as eleições não seria outra coisa além de zombar do povo venezuelano, porque implica desconhecer que houve um resultado — ninguém imagina que, diante da reclamação de Bolsonaro no Brasil, Lula ou o PT teriam aceitado repetir as eleições — o que deveria ser feito era fazer valer o resultado, como de fato aconteceu no Brasil”, disse.

Manifestante segura uma bandeira da Venezuela durante protesto da oposição em 28 de agosto Foto: Cristian Hernandez/AP

Mesmo com ambos os lados - o chavismo e a oposição - rejeitando a proposta, Lula voltou a defender novas eleições na Venezuela durante uma reunião com líderes da Câmara na noite de segunda-feira, 26.

“É lamentável que o governo insista nessa proposta”, continuou a diretora. “Nos preocupa, além disso, que não se leve em conta que as situações dentro do país se agravaram ainda mais.”

Nesta quarta-feira, 28, exatamente um mês depois das eleições, a oposição voltou às ruas para exigir o reconhecimento da vitória de Edmundo González Urrutia, candidato opositor. Maduro, porém, reivindica vitória com 51% dos votos sem nunca ter apresentado as atas de votação.

A oposição, por outro lado, conseguiu reunir mais de 80% das atas que apontam uma vitória do opositor em mais de 66%. Organismos, estudos e jornais independentes checaram e confirmaram a veracidade dos documentos. Ainda assim, a Justiça venezuelana ratificou a vitória de Maduro, que na quarta promoveu uma reforma ministerial em um sinal ainda mais claro de que não pretende entregar o poder.

Abaixo, trechos da entrevista com a diretora da HRW:

Por que escrever a carta direcionada aos três presidentes?

Nós tomamos a decisão de dirigir esta carta aos três presidentes porque eles abriram um canal emblemático e têm um papel de poder ter um diálogo com o regime de Nicolás Maduro. São três governos que não reconheceram a vitória de Nicolás Maduro, apesar de terem mantido a relação bilateral com ele. Eles insistiram para que as atas fossem publicadas, insistiram para que houvesse uma observação independente e, no entanto, colocaram sobre a mesa algumas outras propostas que nos preocupam. Por isso, apoiando-se no canal diplomático, fazemos a eles, respeitosamente, algumas recomendações sobre como enaltecer princípios democráticos e de direito internacional nesse canal diplomático.

Ainda assim, Lula segue insistindo na ideia de novas eleições. Por que a HRW não vê esta como uma opção plausível?

Esta proposta nos preocupa muito em primeiro lugar porque, se observarmos os relatórios tanto do Centro Carter quanto do painel de especialistas das Nações Unidas, ambos concordam em apontar que foram eleições, que, embora tenham ocorrido em um contexto de restrição do direito à participação política pela inabilitação de candidatos e pela detenção de diferentes líderes políticos e defensores dos direitos humanos, foram eleições que, no dia da votação, transcorreram de maneira pacífica. Ambos os monitores eleitorais chegaram a conclusões similares no sentido de que as atas publicadas pela oposição possuem todas as características para serem consideradas confiáveis, e que, por outro lado, o resultado dado pelo Conselho Nacional Eleitoral não tem suporte algum, dado que não publicaram nenhuma das atas nesse sentido.

Repetir as eleições, portanto, não seria outra coisa além de zombar do povo venezuelano, porque implica desconhecer que houve um resultado — ninguém imagina que, diante da reclamação de Bolsonaro no Brasil, Lula ou o PT teriam aceitado repetir as eleições — o que deveria ser feito era fazer valer o resultado, como de fato aconteceu no Brasil. Então, acreditamos que é lamentável que o governo insista nessa proposta. Nos preocupa, além disso, que não se leve em conta que as situações dentro do país se agravaram ainda mais, tem que se lembrar que a Assembleia aprovou uma lei anti-ONGs que o que faz é permitir a liquidação, a sanção monetária e até mesmo a criminalização dos líderes dos que hoje estão documentando em terreno a repressão, e que, além disso, ameaçaram com não convidar nenhum monitor internacional para nenhuma eleição futura, então, sendo já um contexto eleitoral muito difícil, qualquer nova eleição estaria sujeita a condições ainda mais precárias para o direito ao voto.

A líder da oposição María Corina Machado durante protestos em 28 de agosto Foto: Cristian Hernandez/AP

Os três governos dizem ainda esperar a publicação das atas por parte do CNE, mesmo se passando já um mês das eleições sem que haja sinais de que elas serão publicadas e, ainda que fossem, haveria muita suspeita sobre sua credibilidade. Faz sentido ainda insistir nessa via?

A primeira coisa a apontar é que o chamado dos três presidentes não foi apenas para a publicação das atas, que obviamente é o primeiro passo, mas também para as verificações independentes que estão contempladas na lei venezuelana. Como você diz, qualquer ata que seja publicada agora teria que ser verificada para estabelecer se realmente é fidedigna. Já passou tanto tempo e as atas que não se tornam públicas isso reduz muito a credibilidade de qualquer ata que seja publicada daqui para frente.

Por isso, além dos mecanismos ordinários, insistimos que, se pudesse funcionar um mecanismo, digamos, de busca de soluções, seria criar um mecanismo Ad hoc especializado, uma espécie de auditoria independente nacional e internacional em que todas as partes pudessem confiar para realmente validar as atas. Por isso, insistimos e aí talvez tenha sido o presidente AMLO quem mais chamou atenção sobre resolver isso pelas vias institucionais. O problema que temos na Venezuela é que essas vias institucionais, como o Tribunal Supremo de Justiça, estão comprometidas e, por isso, um mecanismo ad hoc que permitisse ver todas as atas, tanto as que a oposição publicou quanto as que o governo gostaria de apresentar, seria um mecanismo razoável para poder dirimir a controvérsia, e não as instituições hoje cooptadas pelo governo de Nicolás Maduro.

O terceiro ponto da carta foi rechaçar uma proposta do presidente Gustavo Petro para uma anistia ampla em caso de uma transição de poder. Por que esta não seria uma alternativa?

Em um processo de negociação, se fosse possível ter uma discussão para buscar uma transição para a democracia, seria perfeitamente possível apresentar alternativas de justiça transicional que permitam perseguir criminalmente o máximo responsável, fazendo uma mistura de mecanismos judiciais e extrajudiciais para esclarecer a verdade e reparar as vítimas. Mas o que não poderia, em nenhum cenário, estar na mesa é uma anistia geral e incondicionada porque na Venezuela foram cometidos crimes de lesa humanidade. A missão de estabelecimento dos fatos criada pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em Genebra concluiu que, sob o governo de Nicolás Maduro, foram cometidos crimes de lesa humanidade, constitutivos de torturas, de execuções extrajudiciais, de detenções arbitrárias e esses mesmos fatos são objeto hoje de investigação por parte da Promotoria da Corte Penal Internacional. Então, nos parece infeliz que o presidente Petro proponha uma anistia tão ampla, que desconheça o direito internacional e até mesmo desconheça a própria experiência colombiana em matéria de justiça transicional.

Fotos e balões representando pessoas detidas na Venezuela desde as eleições Foto: Fernando Vergara/AP

Pode falar um pouco dessa experiência colombiana?

Na Colômbia, após um conflito armado de mais de 60 anos, no acordo final de fim do conflito que foi firmado perante o governo colombiano e a ex-guerrilha das Farc em 2016, criou-se um sistema integral de verdade, justiça, reparação e garantias de não repetição. Esse sistema inclui uma jurisdição especial de paz, que é um órgão judicial criado para investigar, julgar e sancionar os principais responsáveis, tanto da guerrilha quanto do exército, que cometeram crimes contra a humanidade e crimes de guerra no contexto do conflito armado colombiano. Este mecanismo permite sanções alternativas e anistia a pessoas que são menos responsáveis ou que estiveram envolvidas em delitos menos graves, mas garante que se faça justiça frente às vítimas pelos crimes mais graves. Contém também uma comissão da verdade, um programa de reparação administrativa e uma unidade de busca de pessoas desaparecidas.

Qual o saldo, em termos de direitos humanos, depois de um mês das eleições presidenciais?

Estamos muito preocupados. O próprio governo falou de mais de 2.400 pessoas que foram capturadas. Nós, além disso, conseguimos documentar com a ajuda de organizações locais que essas são pessoas que não estão sendo liberadas, ao contrário do que acontecia em 2014 e 2017, em que as detenções eram um pouco mais curtas. Eles estão perseguindo por terrorismo, isso implica que automaticamente lhes é imposta uma medida restritiva de liberdade, não estão permitindo que eles tenham acesso a um advogado de confiança, não estão deixando eles verem seus familiares e, em algumas ocasiões, os perseguem através de audiências virtuais que restringem seriamente seu devido processo legal.

Já são 24 casos de pessoas que perderam a vida neste contexto de protestos pós-eleitorais. Nós temos feito a verificação dos vídeos de cada um desses acontecimentos e conseguimos identificar pessoas em alguns casos, havendo suposta responsabilidade das Forças Armadas e, em outros, suposta responsabilidade de coletivos, uma espécie de grupos armados civis paramilitares que colaboram com as forças armadas. Além desses casos, já há mais de 90 casos de pessoas feridas nas manifestações e mais de 20 casos de pessoas que ainda estão desaparecidas. É realmente um aumento brutal na repressão por parte do regime.

O ditador da Venezuela Nicolás Maduro durante marcha chavista em 17 de agosto Foto: Cristian Hernandez/AP

Com este cenário, é possível ainda acreditar em uma saída desta crise?

Eu sinto que a comunidade internacional não consegue se reunir. Os venezuelanos e venezuelanas estão dando a luta. Eles estão resistindo e a única coisa que a comunidade internacional não pode fazer é abandoná-los. Os caminhos se fecham, as vias diplomáticas são cada vez mais escassas, mas aqui tem um povo venezuelano lutando e eu acredito que isso nos corresponde a todos, porque aqui não está em jogo apenas o futuro da Venezuela, mas também de toda a América Latina. Lembremos que mais de 7.7 milhões de venezuelanos migraram, nas pesquisas antes da eleição falava-se entre 1.5 e 3 milhões de venezuelanos que, se Nicolás Maduro se manter no poder, migrariam. Já estamos vendo novamente o aumento do fluxo de venezuelanos tanto na fronteira com o Brasil quanto na travessia pelo Darién. Então, nos corresponde a todos na América Latina continuar insistindo para que se consiga um processo de transição para a democracia na Venezuela.

E de fato Brasil, Colômbia e México tem um papel central nessa saída?

Eu acredito que há um papel para os diferentes países. Insisto que tem havido vozes muito potentes e muito coerentes como a do presidente [Gabriel] Boric, no Chile. Acredito que devemos continuar insistindo que devem participar também os Estados Unidos e os países europeus, claro, a União Europeia, mas é claro que, como latino-americanos, temos um papel muito importante a desempenhar neste processo também.

Entrevista por Carolina Marins

Jornalista formada pela ECA-USP. Repórter da editoria de Internacional, com interesse em América Latina. Já fiz coberturas in loco na Argentina, em Israel e na Ucrânia

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