Opinião|Republicanos querem Trump em primeiro lugar, Putin em segundo e os EUA em terceiro


Com a nova rejeição de projeto que buscava reforma migratória e ajuda para Ucrânia e Israel, republicanos do Senado americano deixam claras suas prioridades

Por Thomas Friedman

De tempos em tempos, aparece uma legislação no Capitólio que define os Estados Unidos e seus valores — que mostra o tipo de país que nós queremos ser. E eu argumentaria que o fracasso do projeto de lei bipartidário que implicou em concessões de ambos os lados e previa US$ 118,3 bilhões para consertar nosso sistema de imigração falido e dar ajuda vital para a Ucrânia, Taiwan e Israel não definirá apenas os EUA, mas o mundo inteiro que iremos habitar.

A história tem momentos determinantes, e este é um deles. O que Washington fizer — ou não fizer — neste ano para dar apoio aos seus aliados e promover segurança na nossa fronteira dirá muito a respeito da nossa abordagem em relação a segurança e estabilidade nesta nova era pós-pós-Guerra Fria. Os EUA levantarão a bandeira vermelha, branca e azul no futuro ou apenas uma bandeira branca? Cada vez mais parece que será uma bandeira branca — autografada por Donald Trump.

Algo terrível está prestes a acontecer, graças principalmente a um Partido Republicano que perde o rumo à medida que se enfileira atrás de um homem cuja filosofia não é “EUA em primeiro lugar”, mas “Donald Trump em primeiro lugar”.

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O Presidente da Câmara Mike Johnson (Republicano-LA) fala com repórteres no Capitólio dos Estados Unidos, em Washington, em 26 de outubro de 2023. Foto: Damon Winter / NYT

“Trump em primeiro lugar” significa que uma legislação que fortaleceria os EUA e seus aliados tem de ser posta de lado para que o país possa continuar fervendo na polarização, Vladimir Putin possa triunfar na Ucrânia e nossa fronteira sul possa continuar uma ferida aberta — até que e a não ser que Trump vire presidente outra vez. Que os nossos aliados se danem. Que os nossos inimigos ganhem coragem. Que a segurança futura dos nossos filhos seja rifada.

O adesivo eleitoral republicano nos para-choques dos carros hoje declara: Trump em primeiro, Putin em segundo e EUA em terceiro lugar.

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Falta de seriedade

“Os EUA deixaram de ser um país sério há um bom tempo. Nossa polarização extrema, combinada com regras institucionais que privilegiam minorias, nos impossibilita de cumprir nossas obrigações internacionais”, afirmou o pensador político Francis Fukuyama no website American Purpose. “O Partido Republicano tornou-se bastante adepto de manter reféns. (…) A ala trumpista linha-dura representa uma minoria dentro de uma minoria, mas nossas regras institucionais lhes permite vetar decisões claramente apoiadas por uma maioria de americanos.”

Infelizmente, contudo, ainda que a atual disfunção do Partido Republicano possa explicar por que esse projeto de lei em particular não foi aprovado, a maneira que nós chegamos a este terrível momento é uma história mais longa e profunda.

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Uma nova era

Esta era pós-pós-Guerra Fria que emerge é um verdadeiro retorno ao tipo de competição perigoso e tradicional entre superpotências que prevaleceu durante a Guerra Fria, a 2.ª Guerra e a maior parte da história anterior. Desafortunadamente, nós chegamos a este momento com autoridades eleitas demais — especialmente nos postos de comando do Partido Republicano — que nunca experimentaram um mundo assim e com uma base industrial de defesa dolorosamente despreparada para um mundo assim.

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Acreditem ou não, o conselheiro de segurança nacional do presidente Joe Biden, Jake Sullivan, teve de gastar horas valiosas mensalmente vasculhando o mundo inteiro em busca de projéteis de 155 milímetros para o Exército ucraniano, porque nós não temos o suficiente.

Isso é loucura. E particularmente em um momento em que três potências revisionistas (Rússia, China e Irã) testam todos os dias se são capazes de fazer os EUA e seus aliados recuar em três fronteiras diferentes (Europa, Mar do Sul da China e Oriente Médio). Eles nos testam, individualmente e por meio de aliados, para ver como reagimos — se reagimos — e depois testam um pouco mais. Putin, quando o momento pareceu certo, lançou uma invasão em escala total à Ucrânia.

“Por causa da mudança geracional, a maioria da elite política dos EUA cresceu na era relativamente benigna da Pax Americana pós-Guerra Fria, de 1989 a 2022″ (quando Putin invadiu a Ucrânia), “e o hábito e a capacidade de pensar geopolítica em termos militares se perdeu”, disse-me o historiador da política externa americana Michael Mandelbaum. “Muito poucos membros da elite atual serviram às Forças Armadas.”

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Isso é “muito diferente da era da Guerra Fria, quando a maior parte da nossa elite de formuladores de políticas tinha experimentado a 2.ª Guerra”, acrescentou Mandelbaum, autor do livro ainda não publicado “The Titans of the Twentieth Century: How They Made History and the History They Made” (Titãs do século 20: Como eles fizeram história e a história que eles fizeram). “Agora, depois de 30 anos da era pós-Guerra Fria, Biden é um dos únicos líderes remanescentes que formulou políticas durante a Guerra Fira — e temas de estratégia maior e gestão de competição entre grandes potências não são mais de grande importância no nosso diálogo público”.

O Líder da Minoria no Senado, Mitch McConnell (Republicano-KY), caminha para uma votação nas Câmaras do Senado no Capitólio dos Estados Unidos em 07 de fevereiro de 2024 em Washington, DC. Foto: ANNA MONEYMAKER / AFP

Isolacionismo de Trump

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Trump, como Biden, amadureceu durante a Guerra Fria, mas passou grande parte desse tempo pensando em sua riqueza, em vez de pensar no mundo. Os instintos de Trump, notou Mandelbaum, são realmente um retorno ao período entre a 1.ª e a 2.ª Guerra, quando todo um segmento da elite percebia a 1.ª Guerra como um fracasso e um erro — equivalente hoje ao Iraque e ao Afeganistão — e então se aproximou da iminência da 2.ª Guerra isolacionista e protecionista, considerando nossos aliados inúteis ou sanguessugas.

Quanto ao presidente da Câmara, Mike Johnson, eu imagino com que frequência que ele usa o passaporte. Imagino se ele tem um passaporte. Ele é uma das pessoas mais poderosas nos EUA, seguindo os passos de presidentes da Câmara republicanos e democratas que avançaram com nossos interesses e nos fortaleceram no mundo por décadas. Mas até aqui, ele parece se importar apenas em servir aos interesses de Trump, mesmo que isso signifique jogar jogos extremamente arriscados em política externa.

Enquanto isso, muitos na esquerda emergiram desta era pós-Guerra Fria com a visão de que o maior problema no mundo não é um poder americano pequeno demais, mas um poder americano exagerado demais — lições aprendidas no Iraque e no Afeganistão.

E então quem vai contar para as pessoas? Quem vai contar para as pessoas que os EUA são o pilar que sustenta o mundo? Se nós permitirmos que esse pilar se desintegre, seus filhos não crescerão apenas em EUA diferentes; crescerão em um mundo diferente — e muito pior.

Após a Ucrânia infligir uma derrota terrível ao Exército russo — graças ao financiamento e às armas dos EUA e da Otan — sem cobrar a vida de nenhum soldado americano, Putin agora deve estar babando diante da possibilidade de conseguir sair impune de sua invasão à Ucrânia, contando os dias para que os estoques de mísseis de Kiev se esgotem e ele domine os céus. Então ele estará a poucas bombas da conquista.

Conforme noticiou o colunista Gideon Rachman, do Financial Times, a escassez de munição na Ucrânia “já ocasionou um aumento nas mortes de ucranianos. (…) A escassez de armamentos também está diminuindo a disposição dos ucranianos de se voluntariar para o serviço militar. A crescente pressão sobre o governo de Kiev é parte da explicação para a briga pública entre o presidente Volodmir Zelenski e seu comandante-chefe, Valerii Zaluzhni”.

Se este for o futuro e nossos amigos na Europa, no Oriente Médio e na Ásia sentirem que nós estamos entrando em hibernação, todos começarão a negociar acordos — os aliados europeus com Putin; os aliados árabes com o Irã; e os aliados asiáticos com a China. Nós não sentiremos diferença da noite para o dia, mas, a não ser que nós aprovemos esse projeto de legislação ou algo próximo, com o tempo nós sentiremos.

A capacidade dos EUA de reunir alianças contra os testes da Rússia, da China e do Irã diminuirá gradualmente. Nossa capacidade de sustentar sanções contra países-pária, como a Coreia do Norte, erodirá. As regras que governam o comércio, o sistema bancário e a inviolabilidade de fronteiras pela força — regras que os EUA estabeleceram, fizeram valer e das quais se beneficiaram desde a 2.ª Guerra — serão cada vez mais determinadas por outros países e seus interesses.

Sim, os EUA ainda têm um poder considerável, mas esse poder ocasionou influência porque aliados e inimigos sabiam que nós estávamos prontos para usá-lo para defender a nós mesmos e ajudar nossos amigos a se defender e a defender nossos valores em comum. Tudo isso ficará agora em dúvida se esse projeto de lei fracassar definitivamente.

Lembrem-se desta semana, pessoal — porque os historiadores certamente se lembrarão. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

De tempos em tempos, aparece uma legislação no Capitólio que define os Estados Unidos e seus valores — que mostra o tipo de país que nós queremos ser. E eu argumentaria que o fracasso do projeto de lei bipartidário que implicou em concessões de ambos os lados e previa US$ 118,3 bilhões para consertar nosso sistema de imigração falido e dar ajuda vital para a Ucrânia, Taiwan e Israel não definirá apenas os EUA, mas o mundo inteiro que iremos habitar.

A história tem momentos determinantes, e este é um deles. O que Washington fizer — ou não fizer — neste ano para dar apoio aos seus aliados e promover segurança na nossa fronteira dirá muito a respeito da nossa abordagem em relação a segurança e estabilidade nesta nova era pós-pós-Guerra Fria. Os EUA levantarão a bandeira vermelha, branca e azul no futuro ou apenas uma bandeira branca? Cada vez mais parece que será uma bandeira branca — autografada por Donald Trump.

Algo terrível está prestes a acontecer, graças principalmente a um Partido Republicano que perde o rumo à medida que se enfileira atrás de um homem cuja filosofia não é “EUA em primeiro lugar”, mas “Donald Trump em primeiro lugar”.

O Presidente da Câmara Mike Johnson (Republicano-LA) fala com repórteres no Capitólio dos Estados Unidos, em Washington, em 26 de outubro de 2023. Foto: Damon Winter / NYT

“Trump em primeiro lugar” significa que uma legislação que fortaleceria os EUA e seus aliados tem de ser posta de lado para que o país possa continuar fervendo na polarização, Vladimir Putin possa triunfar na Ucrânia e nossa fronteira sul possa continuar uma ferida aberta — até que e a não ser que Trump vire presidente outra vez. Que os nossos aliados se danem. Que os nossos inimigos ganhem coragem. Que a segurança futura dos nossos filhos seja rifada.

O adesivo eleitoral republicano nos para-choques dos carros hoje declara: Trump em primeiro, Putin em segundo e EUA em terceiro lugar.

Falta de seriedade

“Os EUA deixaram de ser um país sério há um bom tempo. Nossa polarização extrema, combinada com regras institucionais que privilegiam minorias, nos impossibilita de cumprir nossas obrigações internacionais”, afirmou o pensador político Francis Fukuyama no website American Purpose. “O Partido Republicano tornou-se bastante adepto de manter reféns. (…) A ala trumpista linha-dura representa uma minoria dentro de uma minoria, mas nossas regras institucionais lhes permite vetar decisões claramente apoiadas por uma maioria de americanos.”

Infelizmente, contudo, ainda que a atual disfunção do Partido Republicano possa explicar por que esse projeto de lei em particular não foi aprovado, a maneira que nós chegamos a este terrível momento é uma história mais longa e profunda.

Uma nova era

Esta era pós-pós-Guerra Fria que emerge é um verdadeiro retorno ao tipo de competição perigoso e tradicional entre superpotências que prevaleceu durante a Guerra Fria, a 2.ª Guerra e a maior parte da história anterior. Desafortunadamente, nós chegamos a este momento com autoridades eleitas demais — especialmente nos postos de comando do Partido Republicano — que nunca experimentaram um mundo assim e com uma base industrial de defesa dolorosamente despreparada para um mundo assim.

Acreditem ou não, o conselheiro de segurança nacional do presidente Joe Biden, Jake Sullivan, teve de gastar horas valiosas mensalmente vasculhando o mundo inteiro em busca de projéteis de 155 milímetros para o Exército ucraniano, porque nós não temos o suficiente.

Isso é loucura. E particularmente em um momento em que três potências revisionistas (Rússia, China e Irã) testam todos os dias se são capazes de fazer os EUA e seus aliados recuar em três fronteiras diferentes (Europa, Mar do Sul da China e Oriente Médio). Eles nos testam, individualmente e por meio de aliados, para ver como reagimos — se reagimos — e depois testam um pouco mais. Putin, quando o momento pareceu certo, lançou uma invasão em escala total à Ucrânia.

“Por causa da mudança geracional, a maioria da elite política dos EUA cresceu na era relativamente benigna da Pax Americana pós-Guerra Fria, de 1989 a 2022″ (quando Putin invadiu a Ucrânia), “e o hábito e a capacidade de pensar geopolítica em termos militares se perdeu”, disse-me o historiador da política externa americana Michael Mandelbaum. “Muito poucos membros da elite atual serviram às Forças Armadas.”

Isso é “muito diferente da era da Guerra Fria, quando a maior parte da nossa elite de formuladores de políticas tinha experimentado a 2.ª Guerra”, acrescentou Mandelbaum, autor do livro ainda não publicado “The Titans of the Twentieth Century: How They Made History and the History They Made” (Titãs do século 20: Como eles fizeram história e a história que eles fizeram). “Agora, depois de 30 anos da era pós-Guerra Fria, Biden é um dos únicos líderes remanescentes que formulou políticas durante a Guerra Fira — e temas de estratégia maior e gestão de competição entre grandes potências não são mais de grande importância no nosso diálogo público”.

O Líder da Minoria no Senado, Mitch McConnell (Republicano-KY), caminha para uma votação nas Câmaras do Senado no Capitólio dos Estados Unidos em 07 de fevereiro de 2024 em Washington, DC. Foto: ANNA MONEYMAKER / AFP

Isolacionismo de Trump

Trump, como Biden, amadureceu durante a Guerra Fria, mas passou grande parte desse tempo pensando em sua riqueza, em vez de pensar no mundo. Os instintos de Trump, notou Mandelbaum, são realmente um retorno ao período entre a 1.ª e a 2.ª Guerra, quando todo um segmento da elite percebia a 1.ª Guerra como um fracasso e um erro — equivalente hoje ao Iraque e ao Afeganistão — e então se aproximou da iminência da 2.ª Guerra isolacionista e protecionista, considerando nossos aliados inúteis ou sanguessugas.

Quanto ao presidente da Câmara, Mike Johnson, eu imagino com que frequência que ele usa o passaporte. Imagino se ele tem um passaporte. Ele é uma das pessoas mais poderosas nos EUA, seguindo os passos de presidentes da Câmara republicanos e democratas que avançaram com nossos interesses e nos fortaleceram no mundo por décadas. Mas até aqui, ele parece se importar apenas em servir aos interesses de Trump, mesmo que isso signifique jogar jogos extremamente arriscados em política externa.

Enquanto isso, muitos na esquerda emergiram desta era pós-Guerra Fria com a visão de que o maior problema no mundo não é um poder americano pequeno demais, mas um poder americano exagerado demais — lições aprendidas no Iraque e no Afeganistão.

E então quem vai contar para as pessoas? Quem vai contar para as pessoas que os EUA são o pilar que sustenta o mundo? Se nós permitirmos que esse pilar se desintegre, seus filhos não crescerão apenas em EUA diferentes; crescerão em um mundo diferente — e muito pior.

Após a Ucrânia infligir uma derrota terrível ao Exército russo — graças ao financiamento e às armas dos EUA e da Otan — sem cobrar a vida de nenhum soldado americano, Putin agora deve estar babando diante da possibilidade de conseguir sair impune de sua invasão à Ucrânia, contando os dias para que os estoques de mísseis de Kiev se esgotem e ele domine os céus. Então ele estará a poucas bombas da conquista.

Conforme noticiou o colunista Gideon Rachman, do Financial Times, a escassez de munição na Ucrânia “já ocasionou um aumento nas mortes de ucranianos. (…) A escassez de armamentos também está diminuindo a disposição dos ucranianos de se voluntariar para o serviço militar. A crescente pressão sobre o governo de Kiev é parte da explicação para a briga pública entre o presidente Volodmir Zelenski e seu comandante-chefe, Valerii Zaluzhni”.

Se este for o futuro e nossos amigos na Europa, no Oriente Médio e na Ásia sentirem que nós estamos entrando em hibernação, todos começarão a negociar acordos — os aliados europeus com Putin; os aliados árabes com o Irã; e os aliados asiáticos com a China. Nós não sentiremos diferença da noite para o dia, mas, a não ser que nós aprovemos esse projeto de legislação ou algo próximo, com o tempo nós sentiremos.

A capacidade dos EUA de reunir alianças contra os testes da Rússia, da China e do Irã diminuirá gradualmente. Nossa capacidade de sustentar sanções contra países-pária, como a Coreia do Norte, erodirá. As regras que governam o comércio, o sistema bancário e a inviolabilidade de fronteiras pela força — regras que os EUA estabeleceram, fizeram valer e das quais se beneficiaram desde a 2.ª Guerra — serão cada vez mais determinadas por outros países e seus interesses.

Sim, os EUA ainda têm um poder considerável, mas esse poder ocasionou influência porque aliados e inimigos sabiam que nós estávamos prontos para usá-lo para defender a nós mesmos e ajudar nossos amigos a se defender e a defender nossos valores em comum. Tudo isso ficará agora em dúvida se esse projeto de lei fracassar definitivamente.

Lembrem-se desta semana, pessoal — porque os historiadores certamente se lembrarão. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

De tempos em tempos, aparece uma legislação no Capitólio que define os Estados Unidos e seus valores — que mostra o tipo de país que nós queremos ser. E eu argumentaria que o fracasso do projeto de lei bipartidário que implicou em concessões de ambos os lados e previa US$ 118,3 bilhões para consertar nosso sistema de imigração falido e dar ajuda vital para a Ucrânia, Taiwan e Israel não definirá apenas os EUA, mas o mundo inteiro que iremos habitar.

A história tem momentos determinantes, e este é um deles. O que Washington fizer — ou não fizer — neste ano para dar apoio aos seus aliados e promover segurança na nossa fronteira dirá muito a respeito da nossa abordagem em relação a segurança e estabilidade nesta nova era pós-pós-Guerra Fria. Os EUA levantarão a bandeira vermelha, branca e azul no futuro ou apenas uma bandeira branca? Cada vez mais parece que será uma bandeira branca — autografada por Donald Trump.

Algo terrível está prestes a acontecer, graças principalmente a um Partido Republicano que perde o rumo à medida que se enfileira atrás de um homem cuja filosofia não é “EUA em primeiro lugar”, mas “Donald Trump em primeiro lugar”.

O Presidente da Câmara Mike Johnson (Republicano-LA) fala com repórteres no Capitólio dos Estados Unidos, em Washington, em 26 de outubro de 2023. Foto: Damon Winter / NYT

“Trump em primeiro lugar” significa que uma legislação que fortaleceria os EUA e seus aliados tem de ser posta de lado para que o país possa continuar fervendo na polarização, Vladimir Putin possa triunfar na Ucrânia e nossa fronteira sul possa continuar uma ferida aberta — até que e a não ser que Trump vire presidente outra vez. Que os nossos aliados se danem. Que os nossos inimigos ganhem coragem. Que a segurança futura dos nossos filhos seja rifada.

O adesivo eleitoral republicano nos para-choques dos carros hoje declara: Trump em primeiro, Putin em segundo e EUA em terceiro lugar.

Falta de seriedade

“Os EUA deixaram de ser um país sério há um bom tempo. Nossa polarização extrema, combinada com regras institucionais que privilegiam minorias, nos impossibilita de cumprir nossas obrigações internacionais”, afirmou o pensador político Francis Fukuyama no website American Purpose. “O Partido Republicano tornou-se bastante adepto de manter reféns. (…) A ala trumpista linha-dura representa uma minoria dentro de uma minoria, mas nossas regras institucionais lhes permite vetar decisões claramente apoiadas por uma maioria de americanos.”

Infelizmente, contudo, ainda que a atual disfunção do Partido Republicano possa explicar por que esse projeto de lei em particular não foi aprovado, a maneira que nós chegamos a este terrível momento é uma história mais longa e profunda.

Uma nova era

Esta era pós-pós-Guerra Fria que emerge é um verdadeiro retorno ao tipo de competição perigoso e tradicional entre superpotências que prevaleceu durante a Guerra Fria, a 2.ª Guerra e a maior parte da história anterior. Desafortunadamente, nós chegamos a este momento com autoridades eleitas demais — especialmente nos postos de comando do Partido Republicano — que nunca experimentaram um mundo assim e com uma base industrial de defesa dolorosamente despreparada para um mundo assim.

Acreditem ou não, o conselheiro de segurança nacional do presidente Joe Biden, Jake Sullivan, teve de gastar horas valiosas mensalmente vasculhando o mundo inteiro em busca de projéteis de 155 milímetros para o Exército ucraniano, porque nós não temos o suficiente.

Isso é loucura. E particularmente em um momento em que três potências revisionistas (Rússia, China e Irã) testam todos os dias se são capazes de fazer os EUA e seus aliados recuar em três fronteiras diferentes (Europa, Mar do Sul da China e Oriente Médio). Eles nos testam, individualmente e por meio de aliados, para ver como reagimos — se reagimos — e depois testam um pouco mais. Putin, quando o momento pareceu certo, lançou uma invasão em escala total à Ucrânia.

“Por causa da mudança geracional, a maioria da elite política dos EUA cresceu na era relativamente benigna da Pax Americana pós-Guerra Fria, de 1989 a 2022″ (quando Putin invadiu a Ucrânia), “e o hábito e a capacidade de pensar geopolítica em termos militares se perdeu”, disse-me o historiador da política externa americana Michael Mandelbaum. “Muito poucos membros da elite atual serviram às Forças Armadas.”

Isso é “muito diferente da era da Guerra Fria, quando a maior parte da nossa elite de formuladores de políticas tinha experimentado a 2.ª Guerra”, acrescentou Mandelbaum, autor do livro ainda não publicado “The Titans of the Twentieth Century: How They Made History and the History They Made” (Titãs do século 20: Como eles fizeram história e a história que eles fizeram). “Agora, depois de 30 anos da era pós-Guerra Fria, Biden é um dos únicos líderes remanescentes que formulou políticas durante a Guerra Fira — e temas de estratégia maior e gestão de competição entre grandes potências não são mais de grande importância no nosso diálogo público”.

O Líder da Minoria no Senado, Mitch McConnell (Republicano-KY), caminha para uma votação nas Câmaras do Senado no Capitólio dos Estados Unidos em 07 de fevereiro de 2024 em Washington, DC. Foto: ANNA MONEYMAKER / AFP

Isolacionismo de Trump

Trump, como Biden, amadureceu durante a Guerra Fria, mas passou grande parte desse tempo pensando em sua riqueza, em vez de pensar no mundo. Os instintos de Trump, notou Mandelbaum, são realmente um retorno ao período entre a 1.ª e a 2.ª Guerra, quando todo um segmento da elite percebia a 1.ª Guerra como um fracasso e um erro — equivalente hoje ao Iraque e ao Afeganistão — e então se aproximou da iminência da 2.ª Guerra isolacionista e protecionista, considerando nossos aliados inúteis ou sanguessugas.

Quanto ao presidente da Câmara, Mike Johnson, eu imagino com que frequência que ele usa o passaporte. Imagino se ele tem um passaporte. Ele é uma das pessoas mais poderosas nos EUA, seguindo os passos de presidentes da Câmara republicanos e democratas que avançaram com nossos interesses e nos fortaleceram no mundo por décadas. Mas até aqui, ele parece se importar apenas em servir aos interesses de Trump, mesmo que isso signifique jogar jogos extremamente arriscados em política externa.

Enquanto isso, muitos na esquerda emergiram desta era pós-Guerra Fria com a visão de que o maior problema no mundo não é um poder americano pequeno demais, mas um poder americano exagerado demais — lições aprendidas no Iraque e no Afeganistão.

E então quem vai contar para as pessoas? Quem vai contar para as pessoas que os EUA são o pilar que sustenta o mundo? Se nós permitirmos que esse pilar se desintegre, seus filhos não crescerão apenas em EUA diferentes; crescerão em um mundo diferente — e muito pior.

Após a Ucrânia infligir uma derrota terrível ao Exército russo — graças ao financiamento e às armas dos EUA e da Otan — sem cobrar a vida de nenhum soldado americano, Putin agora deve estar babando diante da possibilidade de conseguir sair impune de sua invasão à Ucrânia, contando os dias para que os estoques de mísseis de Kiev se esgotem e ele domine os céus. Então ele estará a poucas bombas da conquista.

Conforme noticiou o colunista Gideon Rachman, do Financial Times, a escassez de munição na Ucrânia “já ocasionou um aumento nas mortes de ucranianos. (…) A escassez de armamentos também está diminuindo a disposição dos ucranianos de se voluntariar para o serviço militar. A crescente pressão sobre o governo de Kiev é parte da explicação para a briga pública entre o presidente Volodmir Zelenski e seu comandante-chefe, Valerii Zaluzhni”.

Se este for o futuro e nossos amigos na Europa, no Oriente Médio e na Ásia sentirem que nós estamos entrando em hibernação, todos começarão a negociar acordos — os aliados europeus com Putin; os aliados árabes com o Irã; e os aliados asiáticos com a China. Nós não sentiremos diferença da noite para o dia, mas, a não ser que nós aprovemos esse projeto de legislação ou algo próximo, com o tempo nós sentiremos.

A capacidade dos EUA de reunir alianças contra os testes da Rússia, da China e do Irã diminuirá gradualmente. Nossa capacidade de sustentar sanções contra países-pária, como a Coreia do Norte, erodirá. As regras que governam o comércio, o sistema bancário e a inviolabilidade de fronteiras pela força — regras que os EUA estabeleceram, fizeram valer e das quais se beneficiaram desde a 2.ª Guerra — serão cada vez mais determinadas por outros países e seus interesses.

Sim, os EUA ainda têm um poder considerável, mas esse poder ocasionou influência porque aliados e inimigos sabiam que nós estávamos prontos para usá-lo para defender a nós mesmos e ajudar nossos amigos a se defender e a defender nossos valores em comum. Tudo isso ficará agora em dúvida se esse projeto de lei fracassar definitivamente.

Lembrem-se desta semana, pessoal — porque os historiadores certamente se lembrarão. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

De tempos em tempos, aparece uma legislação no Capitólio que define os Estados Unidos e seus valores — que mostra o tipo de país que nós queremos ser. E eu argumentaria que o fracasso do projeto de lei bipartidário que implicou em concessões de ambos os lados e previa US$ 118,3 bilhões para consertar nosso sistema de imigração falido e dar ajuda vital para a Ucrânia, Taiwan e Israel não definirá apenas os EUA, mas o mundo inteiro que iremos habitar.

A história tem momentos determinantes, e este é um deles. O que Washington fizer — ou não fizer — neste ano para dar apoio aos seus aliados e promover segurança na nossa fronteira dirá muito a respeito da nossa abordagem em relação a segurança e estabilidade nesta nova era pós-pós-Guerra Fria. Os EUA levantarão a bandeira vermelha, branca e azul no futuro ou apenas uma bandeira branca? Cada vez mais parece que será uma bandeira branca — autografada por Donald Trump.

Algo terrível está prestes a acontecer, graças principalmente a um Partido Republicano que perde o rumo à medida que se enfileira atrás de um homem cuja filosofia não é “EUA em primeiro lugar”, mas “Donald Trump em primeiro lugar”.

O Presidente da Câmara Mike Johnson (Republicano-LA) fala com repórteres no Capitólio dos Estados Unidos, em Washington, em 26 de outubro de 2023. Foto: Damon Winter / NYT

“Trump em primeiro lugar” significa que uma legislação que fortaleceria os EUA e seus aliados tem de ser posta de lado para que o país possa continuar fervendo na polarização, Vladimir Putin possa triunfar na Ucrânia e nossa fronteira sul possa continuar uma ferida aberta — até que e a não ser que Trump vire presidente outra vez. Que os nossos aliados se danem. Que os nossos inimigos ganhem coragem. Que a segurança futura dos nossos filhos seja rifada.

O adesivo eleitoral republicano nos para-choques dos carros hoje declara: Trump em primeiro, Putin em segundo e EUA em terceiro lugar.

Falta de seriedade

“Os EUA deixaram de ser um país sério há um bom tempo. Nossa polarização extrema, combinada com regras institucionais que privilegiam minorias, nos impossibilita de cumprir nossas obrigações internacionais”, afirmou o pensador político Francis Fukuyama no website American Purpose. “O Partido Republicano tornou-se bastante adepto de manter reféns. (…) A ala trumpista linha-dura representa uma minoria dentro de uma minoria, mas nossas regras institucionais lhes permite vetar decisões claramente apoiadas por uma maioria de americanos.”

Infelizmente, contudo, ainda que a atual disfunção do Partido Republicano possa explicar por que esse projeto de lei em particular não foi aprovado, a maneira que nós chegamos a este terrível momento é uma história mais longa e profunda.

Uma nova era

Esta era pós-pós-Guerra Fria que emerge é um verdadeiro retorno ao tipo de competição perigoso e tradicional entre superpotências que prevaleceu durante a Guerra Fria, a 2.ª Guerra e a maior parte da história anterior. Desafortunadamente, nós chegamos a este momento com autoridades eleitas demais — especialmente nos postos de comando do Partido Republicano — que nunca experimentaram um mundo assim e com uma base industrial de defesa dolorosamente despreparada para um mundo assim.

Acreditem ou não, o conselheiro de segurança nacional do presidente Joe Biden, Jake Sullivan, teve de gastar horas valiosas mensalmente vasculhando o mundo inteiro em busca de projéteis de 155 milímetros para o Exército ucraniano, porque nós não temos o suficiente.

Isso é loucura. E particularmente em um momento em que três potências revisionistas (Rússia, China e Irã) testam todos os dias se são capazes de fazer os EUA e seus aliados recuar em três fronteiras diferentes (Europa, Mar do Sul da China e Oriente Médio). Eles nos testam, individualmente e por meio de aliados, para ver como reagimos — se reagimos — e depois testam um pouco mais. Putin, quando o momento pareceu certo, lançou uma invasão em escala total à Ucrânia.

“Por causa da mudança geracional, a maioria da elite política dos EUA cresceu na era relativamente benigna da Pax Americana pós-Guerra Fria, de 1989 a 2022″ (quando Putin invadiu a Ucrânia), “e o hábito e a capacidade de pensar geopolítica em termos militares se perdeu”, disse-me o historiador da política externa americana Michael Mandelbaum. “Muito poucos membros da elite atual serviram às Forças Armadas.”

Isso é “muito diferente da era da Guerra Fria, quando a maior parte da nossa elite de formuladores de políticas tinha experimentado a 2.ª Guerra”, acrescentou Mandelbaum, autor do livro ainda não publicado “The Titans of the Twentieth Century: How They Made History and the History They Made” (Titãs do século 20: Como eles fizeram história e a história que eles fizeram). “Agora, depois de 30 anos da era pós-Guerra Fria, Biden é um dos únicos líderes remanescentes que formulou políticas durante a Guerra Fira — e temas de estratégia maior e gestão de competição entre grandes potências não são mais de grande importância no nosso diálogo público”.

O Líder da Minoria no Senado, Mitch McConnell (Republicano-KY), caminha para uma votação nas Câmaras do Senado no Capitólio dos Estados Unidos em 07 de fevereiro de 2024 em Washington, DC. Foto: ANNA MONEYMAKER / AFP

Isolacionismo de Trump

Trump, como Biden, amadureceu durante a Guerra Fria, mas passou grande parte desse tempo pensando em sua riqueza, em vez de pensar no mundo. Os instintos de Trump, notou Mandelbaum, são realmente um retorno ao período entre a 1.ª e a 2.ª Guerra, quando todo um segmento da elite percebia a 1.ª Guerra como um fracasso e um erro — equivalente hoje ao Iraque e ao Afeganistão — e então se aproximou da iminência da 2.ª Guerra isolacionista e protecionista, considerando nossos aliados inúteis ou sanguessugas.

Quanto ao presidente da Câmara, Mike Johnson, eu imagino com que frequência que ele usa o passaporte. Imagino se ele tem um passaporte. Ele é uma das pessoas mais poderosas nos EUA, seguindo os passos de presidentes da Câmara republicanos e democratas que avançaram com nossos interesses e nos fortaleceram no mundo por décadas. Mas até aqui, ele parece se importar apenas em servir aos interesses de Trump, mesmo que isso signifique jogar jogos extremamente arriscados em política externa.

Enquanto isso, muitos na esquerda emergiram desta era pós-Guerra Fria com a visão de que o maior problema no mundo não é um poder americano pequeno demais, mas um poder americano exagerado demais — lições aprendidas no Iraque e no Afeganistão.

E então quem vai contar para as pessoas? Quem vai contar para as pessoas que os EUA são o pilar que sustenta o mundo? Se nós permitirmos que esse pilar se desintegre, seus filhos não crescerão apenas em EUA diferentes; crescerão em um mundo diferente — e muito pior.

Após a Ucrânia infligir uma derrota terrível ao Exército russo — graças ao financiamento e às armas dos EUA e da Otan — sem cobrar a vida de nenhum soldado americano, Putin agora deve estar babando diante da possibilidade de conseguir sair impune de sua invasão à Ucrânia, contando os dias para que os estoques de mísseis de Kiev se esgotem e ele domine os céus. Então ele estará a poucas bombas da conquista.

Conforme noticiou o colunista Gideon Rachman, do Financial Times, a escassez de munição na Ucrânia “já ocasionou um aumento nas mortes de ucranianos. (…) A escassez de armamentos também está diminuindo a disposição dos ucranianos de se voluntariar para o serviço militar. A crescente pressão sobre o governo de Kiev é parte da explicação para a briga pública entre o presidente Volodmir Zelenski e seu comandante-chefe, Valerii Zaluzhni”.

Se este for o futuro e nossos amigos na Europa, no Oriente Médio e na Ásia sentirem que nós estamos entrando em hibernação, todos começarão a negociar acordos — os aliados europeus com Putin; os aliados árabes com o Irã; e os aliados asiáticos com a China. Nós não sentiremos diferença da noite para o dia, mas, a não ser que nós aprovemos esse projeto de legislação ou algo próximo, com o tempo nós sentiremos.

A capacidade dos EUA de reunir alianças contra os testes da Rússia, da China e do Irã diminuirá gradualmente. Nossa capacidade de sustentar sanções contra países-pária, como a Coreia do Norte, erodirá. As regras que governam o comércio, o sistema bancário e a inviolabilidade de fronteiras pela força — regras que os EUA estabeleceram, fizeram valer e das quais se beneficiaram desde a 2.ª Guerra — serão cada vez mais determinadas por outros países e seus interesses.

Sim, os EUA ainda têm um poder considerável, mas esse poder ocasionou influência porque aliados e inimigos sabiam que nós estávamos prontos para usá-lo para defender a nós mesmos e ajudar nossos amigos a se defender e a defender nossos valores em comum. Tudo isso ficará agora em dúvida se esse projeto de lei fracassar definitivamente.

Lembrem-se desta semana, pessoal — porque os historiadores certamente se lembrarão. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

De tempos em tempos, aparece uma legislação no Capitólio que define os Estados Unidos e seus valores — que mostra o tipo de país que nós queremos ser. E eu argumentaria que o fracasso do projeto de lei bipartidário que implicou em concessões de ambos os lados e previa US$ 118,3 bilhões para consertar nosso sistema de imigração falido e dar ajuda vital para a Ucrânia, Taiwan e Israel não definirá apenas os EUA, mas o mundo inteiro que iremos habitar.

A história tem momentos determinantes, e este é um deles. O que Washington fizer — ou não fizer — neste ano para dar apoio aos seus aliados e promover segurança na nossa fronteira dirá muito a respeito da nossa abordagem em relação a segurança e estabilidade nesta nova era pós-pós-Guerra Fria. Os EUA levantarão a bandeira vermelha, branca e azul no futuro ou apenas uma bandeira branca? Cada vez mais parece que será uma bandeira branca — autografada por Donald Trump.

Algo terrível está prestes a acontecer, graças principalmente a um Partido Republicano que perde o rumo à medida que se enfileira atrás de um homem cuja filosofia não é “EUA em primeiro lugar”, mas “Donald Trump em primeiro lugar”.

O Presidente da Câmara Mike Johnson (Republicano-LA) fala com repórteres no Capitólio dos Estados Unidos, em Washington, em 26 de outubro de 2023. Foto: Damon Winter / NYT

“Trump em primeiro lugar” significa que uma legislação que fortaleceria os EUA e seus aliados tem de ser posta de lado para que o país possa continuar fervendo na polarização, Vladimir Putin possa triunfar na Ucrânia e nossa fronteira sul possa continuar uma ferida aberta — até que e a não ser que Trump vire presidente outra vez. Que os nossos aliados se danem. Que os nossos inimigos ganhem coragem. Que a segurança futura dos nossos filhos seja rifada.

O adesivo eleitoral republicano nos para-choques dos carros hoje declara: Trump em primeiro, Putin em segundo e EUA em terceiro lugar.

Falta de seriedade

“Os EUA deixaram de ser um país sério há um bom tempo. Nossa polarização extrema, combinada com regras institucionais que privilegiam minorias, nos impossibilita de cumprir nossas obrigações internacionais”, afirmou o pensador político Francis Fukuyama no website American Purpose. “O Partido Republicano tornou-se bastante adepto de manter reféns. (…) A ala trumpista linha-dura representa uma minoria dentro de uma minoria, mas nossas regras institucionais lhes permite vetar decisões claramente apoiadas por uma maioria de americanos.”

Infelizmente, contudo, ainda que a atual disfunção do Partido Republicano possa explicar por que esse projeto de lei em particular não foi aprovado, a maneira que nós chegamos a este terrível momento é uma história mais longa e profunda.

Uma nova era

Esta era pós-pós-Guerra Fria que emerge é um verdadeiro retorno ao tipo de competição perigoso e tradicional entre superpotências que prevaleceu durante a Guerra Fria, a 2.ª Guerra e a maior parte da história anterior. Desafortunadamente, nós chegamos a este momento com autoridades eleitas demais — especialmente nos postos de comando do Partido Republicano — que nunca experimentaram um mundo assim e com uma base industrial de defesa dolorosamente despreparada para um mundo assim.

Acreditem ou não, o conselheiro de segurança nacional do presidente Joe Biden, Jake Sullivan, teve de gastar horas valiosas mensalmente vasculhando o mundo inteiro em busca de projéteis de 155 milímetros para o Exército ucraniano, porque nós não temos o suficiente.

Isso é loucura. E particularmente em um momento em que três potências revisionistas (Rússia, China e Irã) testam todos os dias se são capazes de fazer os EUA e seus aliados recuar em três fronteiras diferentes (Europa, Mar do Sul da China e Oriente Médio). Eles nos testam, individualmente e por meio de aliados, para ver como reagimos — se reagimos — e depois testam um pouco mais. Putin, quando o momento pareceu certo, lançou uma invasão em escala total à Ucrânia.

“Por causa da mudança geracional, a maioria da elite política dos EUA cresceu na era relativamente benigna da Pax Americana pós-Guerra Fria, de 1989 a 2022″ (quando Putin invadiu a Ucrânia), “e o hábito e a capacidade de pensar geopolítica em termos militares se perdeu”, disse-me o historiador da política externa americana Michael Mandelbaum. “Muito poucos membros da elite atual serviram às Forças Armadas.”

Isso é “muito diferente da era da Guerra Fria, quando a maior parte da nossa elite de formuladores de políticas tinha experimentado a 2.ª Guerra”, acrescentou Mandelbaum, autor do livro ainda não publicado “The Titans of the Twentieth Century: How They Made History and the History They Made” (Titãs do século 20: Como eles fizeram história e a história que eles fizeram). “Agora, depois de 30 anos da era pós-Guerra Fria, Biden é um dos únicos líderes remanescentes que formulou políticas durante a Guerra Fira — e temas de estratégia maior e gestão de competição entre grandes potências não são mais de grande importância no nosso diálogo público”.

O Líder da Minoria no Senado, Mitch McConnell (Republicano-KY), caminha para uma votação nas Câmaras do Senado no Capitólio dos Estados Unidos em 07 de fevereiro de 2024 em Washington, DC. Foto: ANNA MONEYMAKER / AFP

Isolacionismo de Trump

Trump, como Biden, amadureceu durante a Guerra Fria, mas passou grande parte desse tempo pensando em sua riqueza, em vez de pensar no mundo. Os instintos de Trump, notou Mandelbaum, são realmente um retorno ao período entre a 1.ª e a 2.ª Guerra, quando todo um segmento da elite percebia a 1.ª Guerra como um fracasso e um erro — equivalente hoje ao Iraque e ao Afeganistão — e então se aproximou da iminência da 2.ª Guerra isolacionista e protecionista, considerando nossos aliados inúteis ou sanguessugas.

Quanto ao presidente da Câmara, Mike Johnson, eu imagino com que frequência que ele usa o passaporte. Imagino se ele tem um passaporte. Ele é uma das pessoas mais poderosas nos EUA, seguindo os passos de presidentes da Câmara republicanos e democratas que avançaram com nossos interesses e nos fortaleceram no mundo por décadas. Mas até aqui, ele parece se importar apenas em servir aos interesses de Trump, mesmo que isso signifique jogar jogos extremamente arriscados em política externa.

Enquanto isso, muitos na esquerda emergiram desta era pós-Guerra Fria com a visão de que o maior problema no mundo não é um poder americano pequeno demais, mas um poder americano exagerado demais — lições aprendidas no Iraque e no Afeganistão.

E então quem vai contar para as pessoas? Quem vai contar para as pessoas que os EUA são o pilar que sustenta o mundo? Se nós permitirmos que esse pilar se desintegre, seus filhos não crescerão apenas em EUA diferentes; crescerão em um mundo diferente — e muito pior.

Após a Ucrânia infligir uma derrota terrível ao Exército russo — graças ao financiamento e às armas dos EUA e da Otan — sem cobrar a vida de nenhum soldado americano, Putin agora deve estar babando diante da possibilidade de conseguir sair impune de sua invasão à Ucrânia, contando os dias para que os estoques de mísseis de Kiev se esgotem e ele domine os céus. Então ele estará a poucas bombas da conquista.

Conforme noticiou o colunista Gideon Rachman, do Financial Times, a escassez de munição na Ucrânia “já ocasionou um aumento nas mortes de ucranianos. (…) A escassez de armamentos também está diminuindo a disposição dos ucranianos de se voluntariar para o serviço militar. A crescente pressão sobre o governo de Kiev é parte da explicação para a briga pública entre o presidente Volodmir Zelenski e seu comandante-chefe, Valerii Zaluzhni”.

Se este for o futuro e nossos amigos na Europa, no Oriente Médio e na Ásia sentirem que nós estamos entrando em hibernação, todos começarão a negociar acordos — os aliados europeus com Putin; os aliados árabes com o Irã; e os aliados asiáticos com a China. Nós não sentiremos diferença da noite para o dia, mas, a não ser que nós aprovemos esse projeto de legislação ou algo próximo, com o tempo nós sentiremos.

A capacidade dos EUA de reunir alianças contra os testes da Rússia, da China e do Irã diminuirá gradualmente. Nossa capacidade de sustentar sanções contra países-pária, como a Coreia do Norte, erodirá. As regras que governam o comércio, o sistema bancário e a inviolabilidade de fronteiras pela força — regras que os EUA estabeleceram, fizeram valer e das quais se beneficiaram desde a 2.ª Guerra — serão cada vez mais determinadas por outros países e seus interesses.

Sim, os EUA ainda têm um poder considerável, mas esse poder ocasionou influência porque aliados e inimigos sabiam que nós estávamos prontos para usá-lo para defender a nós mesmos e ajudar nossos amigos a se defender e a defender nossos valores em comum. Tudo isso ficará agora em dúvida se esse projeto de lei fracassar definitivamente.

Lembrem-se desta semana, pessoal — porque os historiadores certamente se lembrarão. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Opinião por Thomas Friedman

É ganhador do Pullitzer e colunista do NYT. Especialista em relações internacionais, escreveu 'De Beirute a Jerusalém'

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