Restaurante eslavo em SP une culturas da Rússia e da Ucrânia contra a guerra


Local foi fundado por uma ucraniana e uma russa em 2019 e serve como ponto de encontro entre eslavos e amantes da cultura eslava

Por Luiz Henrique Gomes
Atualização:

Uma casa vermelha de dois andares no bairro da Aclimação, na região central de São Paulo, reúne a relação secular entre russos e ucranianos através da culinária e da língua. Nela, estão localizados o restaurante russo Barskiy Dom e o Clube Eslavo, uma escola que dá aulas de ucraniano, russo e polonês. Os dois foram fundados por Snizhana Maznova, uma ucraniana de 45 anos nascida na última geração da União Soviética, filha de pai russo e mãe ucraniana, com uma biografia que personifica as histórias entrelaçadas das duas nações hoje em guerra.

No cardápio do restaurante, os pratos tradicionais russos – como o estrogonofe, apropriado pelos brasileiros em receitas mais temperadas – se misturam com os pratos ucranianos – a exemplo do varêniki, uma massa cozida e recheada que também se tornou popular no Brasil – e outros de influência de países vizinhos, como Uzbequistão e Coreia.

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Um bom ponto de partida para experimentar a diversidade eslava são os golubtsi, charutos de repolho recheados com arroz e carne preparados no forno durante horas, acompanhados das panquecas de batata belarussas conhecidas como drániki. Para beber, o restaurante oferece kompot de maçã, uma bebida leve e suave feita com a fruta cozida, e kvas, que tem um gosto amargo e se caracteriza pela fermentação.

Imagem mostra ucraniana Snizhana Maznova, fundadora de Clube Eslavo e restaurante russo em São Paulo Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Nascida em 1978, Snizhana cresceu dividida entre a Rússia, onde morou com os avós até os seis anos, e a Ucrânia, onde os pais moravam, quando ambos os países faziam parte da URSS. Na infância, falava russo e não via distinção entre as duas nações, mas aos seis anos foi estudar em uma escola comandada por ucranianos e teve um choque ao descobrir a existência de uma identidade que a diferenciada dos russos. “Uma professora começou a apresentar muitos poetas que não estavam nos livros da escola, criados todos pela União Soviética”, conta.

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Quando a URSS caiu em 1991 outro mundo se revelou e ela passou a saber da existência de poetas ucranianos que tinham sido mortos, levados para a Sibéria e apagados da história oficial. Mesmo os poetas que a professora havia apresentado tinham segredos agora descobertos. “Eu tinha mais dois anos de escola quando a União Soviética caiu. Essa professora começou a acrescentar coisas que eram proibidas antes, como poemas ucranianos que falavam da história de um povo massacrado e escravizado pelos russos”, continua.

Uma volta ao mundo que acabou no Brasil

Nesta mesma época, a Ucrânia vivia uma década dura, colapsada pelo fim da URSS e com a missão de se reconstruir como um país independente, após séculos de dominação do Império Russo e soviético. “Nessa época não tinha salário. Vivíamos de batata e chá”, diz a ucraniana. Por isso, decidiu trabalhar no Japão, onde casou-se com um brasileiro e decidiu vir para o Brasil. Pouco tempo depois, foi abandonada com um filho recém-nascido pelo marido.

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Em São Paulo desde 2008, Snizhana começou a dar aulas de russo, uma língua que dominava melhor que o ucraniano por ter sido o idioma oficial de onde cresceu, para sobreviver financeiramente. Escolheu se instalar no bairro Paraíso porque percebeu que era o local mais acessível pelas linhas de metrô da cidade. Aos poucos reuniu alunos, aprendeu português e se estabeleceu. Acompanhava as notícias sobre a Ucrânia à distância e ouvia ainda no início da década passada alguns políticos russos afirmarem que o país pertencia à Rússia. Julgava bobagem, uma loucura que ninguém levava a sério, até a Crimeia ser invadida em 2014.

Quase dez anos depois da invasão da Crimeia, a ucraniana lembra a sensação ao ver as notícias. “Foi uma coisa super louca porque era inacreditável. Você pode imaginar Portugal chegar ao Brasil e falar que um Estado pertence a eles porque historicamente eles foram colônias portuguesas?”, relembra. Desde então, os conflitos na Ucrânia nunca foram interrompidos. O país viveu uma guerra no leste entre o exército ucraniano e grupos separatistas pró-Rússia; pouco a pouco, a aspiração do presidente Vladimir Putin sobre o vizinho cresceu, a relação entre os dois países se deteriorou e a guerra eclodiu.

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Culturas entrelaçadas em São Paulo

Os conflitos no leste ucraniano após a invasão da Crimeia não afetaram as atividades do Clube Eslavo fundado por Snizhana em São Paulo. Ela continuou a dar aulas e fazer eventos sobre a cultura russa e ucraniana. À medida que o número de frequentadores aumentou, ela decidiu criar um restaurante para recebê-los. Para isso, contou com ajuda de uma russa, Larissa Korneva, atual chefe de cozinha do local. “Eu não tinha condições de cozinhar sozinha para 50 pessoas que vinham aos eventos. Foi aí que decidi criar o restaurante”, diz.

O Barskiy Dom foi fundado em junho de 2019 com um cardápio que simboliza a relação da Rússia, o maior país do mundo em território, com seus 14 vizinhos, marcada por influências mútuas nas fronteiras. Há, por exemplo, uma salada que leva o nome de “cenoura coreana” criada pelos coreanos que migraram para a Rússia, mas que não existe em nenhuma das Coreias. “A Rússia recebeu todas as influências de culinária estrangeira e transformou do seu modo”, conta Snizhana.

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No primeiro andar da casa vermelha, a ucraniana guarda entre clássicos da literatura russa e dicionários outros símbolos da cultura eslava para além da Rússia. São uma lembrança da identidade criada por outros povos: matrioskas pintadas em padrões diferentes, pinturas de símbolos pagãos, anteriores ao cristianismo, em ovos de madeira, bonecas sem rosto. Os símbolos se exibem como resultado de uma identidade própria, ou da busca de uma identidade própria, fomentada ao longo dos séculos pelos povos que ocuparam o território que hoje é a Ucrânia e que demarca diferenças com os russos.

Imagem mostra matrioskas ucraniana (à esq.) e russa (à dir.). Padrões utilizados na pintura das bonecas têm pequenas diferenças nos dois países Foto: Tiago Queiroz/Estadão

A própria língua ucraniana se reafirma cada vez mais como diferente da russa. Apesar do grande número de ucranianos a falar russo, sobretudo no leste do país, desde que a Ucrânia se tornou independente em 1991 reformas são realizadas para recuperar um vocabulário que estava perdido. Segundo Snizhana, o ucraniano formal chega a ser mais próximo do polonês – que dominou os povos que viviam onde hoje é a Ucrânia entre o século 13 e 16 – do que do russo. “A língua ucraniana está para o russo como o português está para o italiano, enquanto o polonês para o ucraniano é como se fosse o espanhol para o português”, compara.

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A criação do restaurante, no entanto, foi atrapalhada pela pandemia de coronavírus. Menos de um ano depois de ter aberto, ele precisou ser fechado e reabriu somente em abril 2022, quase dois meses após Vladimir Putin ordenar o exército a bombardear Kiev.

Nesse momento, a relação da comunidade eslava já era outra. Ucranianos, principalmente jovens, passaram a estar mais unidos; a relação desses com os russos que se opõem à guerra permaneceu a mesma de antes; e os laços com os que são favoráveis ao conflito foram cortados, como resultado de uma polarização entre os dois países. “Bloqueei muitas pessoas nas redes sociais que acreditam no que Putin diz”, resume.

Protestos e ações para ajudar ucranianos

A união da comunidade ucraniana e dos russos contra a guerra começou com as manifestações contra Vladimir Putin realizadas em diversos pontos de São Paulo, como no vão do Masp e na frente do consulado russo, na zona Oeste. Até então, Snizhana diz que, ao contrário do que ela testemunhou com a comunidade brasileira no Japão, por exemplo, não existia um senso de comunidade tão forte entre os eslavos da cidade.

As manifestações passaram a ser espaço de encontro entre os mais novos. Os mais velhos já tinham um laço através da igreja, que foi reforçado com mais adeptos depois do início da guerra. “Eu via poucos jovens nas igrejas, mas depois da guerra isso mudou”, conta.

Outra mudança percebida por Snizhana durante a guerra foi a percepção das pessoas que frequentam o Clube Eslavo e o restaurante. “Muita gente que falava sobre ‘operação especial na Ucrânia’, como Putin chama, passou a chamar o que está acontecendo de guerra e mudou de opinião”, diz.

A comunidade eslava também passou a organizar bazares de roupas para refugiados ucranianos que chegam ao Brasil, eventos de arrecadação de fundos para auxiliar na compra de geradores para escolas ucranianas e a fazer o trabalho de intérprete para diversas organizações de proteção a refugiados.

Enquanto a comunidade eslava se une em torno da oposição à guerra, o conflito se estende principalmente no leste da Ucrânia. Snizhana acompanha à distância, mantendo contato com a mãe ucraniana e o pai russo, que permanecem no país invadido. Apesar das diferenças de nacionalidade, os dois enxergam o conflito da mesma forma: como uma violência contra um povo que quer ser independente, após séculos de dominação.

Uma casa vermelha de dois andares no bairro da Aclimação, na região central de São Paulo, reúne a relação secular entre russos e ucranianos através da culinária e da língua. Nela, estão localizados o restaurante russo Barskiy Dom e o Clube Eslavo, uma escola que dá aulas de ucraniano, russo e polonês. Os dois foram fundados por Snizhana Maznova, uma ucraniana de 45 anos nascida na última geração da União Soviética, filha de pai russo e mãe ucraniana, com uma biografia que personifica as histórias entrelaçadas das duas nações hoje em guerra.

No cardápio do restaurante, os pratos tradicionais russos – como o estrogonofe, apropriado pelos brasileiros em receitas mais temperadas – se misturam com os pratos ucranianos – a exemplo do varêniki, uma massa cozida e recheada que também se tornou popular no Brasil – e outros de influência de países vizinhos, como Uzbequistão e Coreia.

Um bom ponto de partida para experimentar a diversidade eslava são os golubtsi, charutos de repolho recheados com arroz e carne preparados no forno durante horas, acompanhados das panquecas de batata belarussas conhecidas como drániki. Para beber, o restaurante oferece kompot de maçã, uma bebida leve e suave feita com a fruta cozida, e kvas, que tem um gosto amargo e se caracteriza pela fermentação.

Imagem mostra ucraniana Snizhana Maznova, fundadora de Clube Eslavo e restaurante russo em São Paulo Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Nascida em 1978, Snizhana cresceu dividida entre a Rússia, onde morou com os avós até os seis anos, e a Ucrânia, onde os pais moravam, quando ambos os países faziam parte da URSS. Na infância, falava russo e não via distinção entre as duas nações, mas aos seis anos foi estudar em uma escola comandada por ucranianos e teve um choque ao descobrir a existência de uma identidade que a diferenciada dos russos. “Uma professora começou a apresentar muitos poetas que não estavam nos livros da escola, criados todos pela União Soviética”, conta.

Quando a URSS caiu em 1991 outro mundo se revelou e ela passou a saber da existência de poetas ucranianos que tinham sido mortos, levados para a Sibéria e apagados da história oficial. Mesmo os poetas que a professora havia apresentado tinham segredos agora descobertos. “Eu tinha mais dois anos de escola quando a União Soviética caiu. Essa professora começou a acrescentar coisas que eram proibidas antes, como poemas ucranianos que falavam da história de um povo massacrado e escravizado pelos russos”, continua.

Uma volta ao mundo que acabou no Brasil

Nesta mesma época, a Ucrânia vivia uma década dura, colapsada pelo fim da URSS e com a missão de se reconstruir como um país independente, após séculos de dominação do Império Russo e soviético. “Nessa época não tinha salário. Vivíamos de batata e chá”, diz a ucraniana. Por isso, decidiu trabalhar no Japão, onde casou-se com um brasileiro e decidiu vir para o Brasil. Pouco tempo depois, foi abandonada com um filho recém-nascido pelo marido.

Em São Paulo desde 2008, Snizhana começou a dar aulas de russo, uma língua que dominava melhor que o ucraniano por ter sido o idioma oficial de onde cresceu, para sobreviver financeiramente. Escolheu se instalar no bairro Paraíso porque percebeu que era o local mais acessível pelas linhas de metrô da cidade. Aos poucos reuniu alunos, aprendeu português e se estabeleceu. Acompanhava as notícias sobre a Ucrânia à distância e ouvia ainda no início da década passada alguns políticos russos afirmarem que o país pertencia à Rússia. Julgava bobagem, uma loucura que ninguém levava a sério, até a Crimeia ser invadida em 2014.

Quase dez anos depois da invasão da Crimeia, a ucraniana lembra a sensação ao ver as notícias. “Foi uma coisa super louca porque era inacreditável. Você pode imaginar Portugal chegar ao Brasil e falar que um Estado pertence a eles porque historicamente eles foram colônias portuguesas?”, relembra. Desde então, os conflitos na Ucrânia nunca foram interrompidos. O país viveu uma guerra no leste entre o exército ucraniano e grupos separatistas pró-Rússia; pouco a pouco, a aspiração do presidente Vladimir Putin sobre o vizinho cresceu, a relação entre os dois países se deteriorou e a guerra eclodiu.

Culturas entrelaçadas em São Paulo

Os conflitos no leste ucraniano após a invasão da Crimeia não afetaram as atividades do Clube Eslavo fundado por Snizhana em São Paulo. Ela continuou a dar aulas e fazer eventos sobre a cultura russa e ucraniana. À medida que o número de frequentadores aumentou, ela decidiu criar um restaurante para recebê-los. Para isso, contou com ajuda de uma russa, Larissa Korneva, atual chefe de cozinha do local. “Eu não tinha condições de cozinhar sozinha para 50 pessoas que vinham aos eventos. Foi aí que decidi criar o restaurante”, diz.

O Barskiy Dom foi fundado em junho de 2019 com um cardápio que simboliza a relação da Rússia, o maior país do mundo em território, com seus 14 vizinhos, marcada por influências mútuas nas fronteiras. Há, por exemplo, uma salada que leva o nome de “cenoura coreana” criada pelos coreanos que migraram para a Rússia, mas que não existe em nenhuma das Coreias. “A Rússia recebeu todas as influências de culinária estrangeira e transformou do seu modo”, conta Snizhana.

No primeiro andar da casa vermelha, a ucraniana guarda entre clássicos da literatura russa e dicionários outros símbolos da cultura eslava para além da Rússia. São uma lembrança da identidade criada por outros povos: matrioskas pintadas em padrões diferentes, pinturas de símbolos pagãos, anteriores ao cristianismo, em ovos de madeira, bonecas sem rosto. Os símbolos se exibem como resultado de uma identidade própria, ou da busca de uma identidade própria, fomentada ao longo dos séculos pelos povos que ocuparam o território que hoje é a Ucrânia e que demarca diferenças com os russos.

Imagem mostra matrioskas ucraniana (à esq.) e russa (à dir.). Padrões utilizados na pintura das bonecas têm pequenas diferenças nos dois países Foto: Tiago Queiroz/Estadão

A própria língua ucraniana se reafirma cada vez mais como diferente da russa. Apesar do grande número de ucranianos a falar russo, sobretudo no leste do país, desde que a Ucrânia se tornou independente em 1991 reformas são realizadas para recuperar um vocabulário que estava perdido. Segundo Snizhana, o ucraniano formal chega a ser mais próximo do polonês – que dominou os povos que viviam onde hoje é a Ucrânia entre o século 13 e 16 – do que do russo. “A língua ucraniana está para o russo como o português está para o italiano, enquanto o polonês para o ucraniano é como se fosse o espanhol para o português”, compara.

A criação do restaurante, no entanto, foi atrapalhada pela pandemia de coronavírus. Menos de um ano depois de ter aberto, ele precisou ser fechado e reabriu somente em abril 2022, quase dois meses após Vladimir Putin ordenar o exército a bombardear Kiev.

Nesse momento, a relação da comunidade eslava já era outra. Ucranianos, principalmente jovens, passaram a estar mais unidos; a relação desses com os russos que se opõem à guerra permaneceu a mesma de antes; e os laços com os que são favoráveis ao conflito foram cortados, como resultado de uma polarização entre os dois países. “Bloqueei muitas pessoas nas redes sociais que acreditam no que Putin diz”, resume.

Protestos e ações para ajudar ucranianos

A união da comunidade ucraniana e dos russos contra a guerra começou com as manifestações contra Vladimir Putin realizadas em diversos pontos de São Paulo, como no vão do Masp e na frente do consulado russo, na zona Oeste. Até então, Snizhana diz que, ao contrário do que ela testemunhou com a comunidade brasileira no Japão, por exemplo, não existia um senso de comunidade tão forte entre os eslavos da cidade.

As manifestações passaram a ser espaço de encontro entre os mais novos. Os mais velhos já tinham um laço através da igreja, que foi reforçado com mais adeptos depois do início da guerra. “Eu via poucos jovens nas igrejas, mas depois da guerra isso mudou”, conta.

Outra mudança percebida por Snizhana durante a guerra foi a percepção das pessoas que frequentam o Clube Eslavo e o restaurante. “Muita gente que falava sobre ‘operação especial na Ucrânia’, como Putin chama, passou a chamar o que está acontecendo de guerra e mudou de opinião”, diz.

A comunidade eslava também passou a organizar bazares de roupas para refugiados ucranianos que chegam ao Brasil, eventos de arrecadação de fundos para auxiliar na compra de geradores para escolas ucranianas e a fazer o trabalho de intérprete para diversas organizações de proteção a refugiados.

Enquanto a comunidade eslava se une em torno da oposição à guerra, o conflito se estende principalmente no leste da Ucrânia. Snizhana acompanha à distância, mantendo contato com a mãe ucraniana e o pai russo, que permanecem no país invadido. Apesar das diferenças de nacionalidade, os dois enxergam o conflito da mesma forma: como uma violência contra um povo que quer ser independente, após séculos de dominação.

Uma casa vermelha de dois andares no bairro da Aclimação, na região central de São Paulo, reúne a relação secular entre russos e ucranianos através da culinária e da língua. Nela, estão localizados o restaurante russo Barskiy Dom e o Clube Eslavo, uma escola que dá aulas de ucraniano, russo e polonês. Os dois foram fundados por Snizhana Maznova, uma ucraniana de 45 anos nascida na última geração da União Soviética, filha de pai russo e mãe ucraniana, com uma biografia que personifica as histórias entrelaçadas das duas nações hoje em guerra.

No cardápio do restaurante, os pratos tradicionais russos – como o estrogonofe, apropriado pelos brasileiros em receitas mais temperadas – se misturam com os pratos ucranianos – a exemplo do varêniki, uma massa cozida e recheada que também se tornou popular no Brasil – e outros de influência de países vizinhos, como Uzbequistão e Coreia.

Um bom ponto de partida para experimentar a diversidade eslava são os golubtsi, charutos de repolho recheados com arroz e carne preparados no forno durante horas, acompanhados das panquecas de batata belarussas conhecidas como drániki. Para beber, o restaurante oferece kompot de maçã, uma bebida leve e suave feita com a fruta cozida, e kvas, que tem um gosto amargo e se caracteriza pela fermentação.

Imagem mostra ucraniana Snizhana Maznova, fundadora de Clube Eslavo e restaurante russo em São Paulo Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Nascida em 1978, Snizhana cresceu dividida entre a Rússia, onde morou com os avós até os seis anos, e a Ucrânia, onde os pais moravam, quando ambos os países faziam parte da URSS. Na infância, falava russo e não via distinção entre as duas nações, mas aos seis anos foi estudar em uma escola comandada por ucranianos e teve um choque ao descobrir a existência de uma identidade que a diferenciada dos russos. “Uma professora começou a apresentar muitos poetas que não estavam nos livros da escola, criados todos pela União Soviética”, conta.

Quando a URSS caiu em 1991 outro mundo se revelou e ela passou a saber da existência de poetas ucranianos que tinham sido mortos, levados para a Sibéria e apagados da história oficial. Mesmo os poetas que a professora havia apresentado tinham segredos agora descobertos. “Eu tinha mais dois anos de escola quando a União Soviética caiu. Essa professora começou a acrescentar coisas que eram proibidas antes, como poemas ucranianos que falavam da história de um povo massacrado e escravizado pelos russos”, continua.

Uma volta ao mundo que acabou no Brasil

Nesta mesma época, a Ucrânia vivia uma década dura, colapsada pelo fim da URSS e com a missão de se reconstruir como um país independente, após séculos de dominação do Império Russo e soviético. “Nessa época não tinha salário. Vivíamos de batata e chá”, diz a ucraniana. Por isso, decidiu trabalhar no Japão, onde casou-se com um brasileiro e decidiu vir para o Brasil. Pouco tempo depois, foi abandonada com um filho recém-nascido pelo marido.

Em São Paulo desde 2008, Snizhana começou a dar aulas de russo, uma língua que dominava melhor que o ucraniano por ter sido o idioma oficial de onde cresceu, para sobreviver financeiramente. Escolheu se instalar no bairro Paraíso porque percebeu que era o local mais acessível pelas linhas de metrô da cidade. Aos poucos reuniu alunos, aprendeu português e se estabeleceu. Acompanhava as notícias sobre a Ucrânia à distância e ouvia ainda no início da década passada alguns políticos russos afirmarem que o país pertencia à Rússia. Julgava bobagem, uma loucura que ninguém levava a sério, até a Crimeia ser invadida em 2014.

Quase dez anos depois da invasão da Crimeia, a ucraniana lembra a sensação ao ver as notícias. “Foi uma coisa super louca porque era inacreditável. Você pode imaginar Portugal chegar ao Brasil e falar que um Estado pertence a eles porque historicamente eles foram colônias portuguesas?”, relembra. Desde então, os conflitos na Ucrânia nunca foram interrompidos. O país viveu uma guerra no leste entre o exército ucraniano e grupos separatistas pró-Rússia; pouco a pouco, a aspiração do presidente Vladimir Putin sobre o vizinho cresceu, a relação entre os dois países se deteriorou e a guerra eclodiu.

Culturas entrelaçadas em São Paulo

Os conflitos no leste ucraniano após a invasão da Crimeia não afetaram as atividades do Clube Eslavo fundado por Snizhana em São Paulo. Ela continuou a dar aulas e fazer eventos sobre a cultura russa e ucraniana. À medida que o número de frequentadores aumentou, ela decidiu criar um restaurante para recebê-los. Para isso, contou com ajuda de uma russa, Larissa Korneva, atual chefe de cozinha do local. “Eu não tinha condições de cozinhar sozinha para 50 pessoas que vinham aos eventos. Foi aí que decidi criar o restaurante”, diz.

O Barskiy Dom foi fundado em junho de 2019 com um cardápio que simboliza a relação da Rússia, o maior país do mundo em território, com seus 14 vizinhos, marcada por influências mútuas nas fronteiras. Há, por exemplo, uma salada que leva o nome de “cenoura coreana” criada pelos coreanos que migraram para a Rússia, mas que não existe em nenhuma das Coreias. “A Rússia recebeu todas as influências de culinária estrangeira e transformou do seu modo”, conta Snizhana.

No primeiro andar da casa vermelha, a ucraniana guarda entre clássicos da literatura russa e dicionários outros símbolos da cultura eslava para além da Rússia. São uma lembrança da identidade criada por outros povos: matrioskas pintadas em padrões diferentes, pinturas de símbolos pagãos, anteriores ao cristianismo, em ovos de madeira, bonecas sem rosto. Os símbolos se exibem como resultado de uma identidade própria, ou da busca de uma identidade própria, fomentada ao longo dos séculos pelos povos que ocuparam o território que hoje é a Ucrânia e que demarca diferenças com os russos.

Imagem mostra matrioskas ucraniana (à esq.) e russa (à dir.). Padrões utilizados na pintura das bonecas têm pequenas diferenças nos dois países Foto: Tiago Queiroz/Estadão

A própria língua ucraniana se reafirma cada vez mais como diferente da russa. Apesar do grande número de ucranianos a falar russo, sobretudo no leste do país, desde que a Ucrânia se tornou independente em 1991 reformas são realizadas para recuperar um vocabulário que estava perdido. Segundo Snizhana, o ucraniano formal chega a ser mais próximo do polonês – que dominou os povos que viviam onde hoje é a Ucrânia entre o século 13 e 16 – do que do russo. “A língua ucraniana está para o russo como o português está para o italiano, enquanto o polonês para o ucraniano é como se fosse o espanhol para o português”, compara.

A criação do restaurante, no entanto, foi atrapalhada pela pandemia de coronavírus. Menos de um ano depois de ter aberto, ele precisou ser fechado e reabriu somente em abril 2022, quase dois meses após Vladimir Putin ordenar o exército a bombardear Kiev.

Nesse momento, a relação da comunidade eslava já era outra. Ucranianos, principalmente jovens, passaram a estar mais unidos; a relação desses com os russos que se opõem à guerra permaneceu a mesma de antes; e os laços com os que são favoráveis ao conflito foram cortados, como resultado de uma polarização entre os dois países. “Bloqueei muitas pessoas nas redes sociais que acreditam no que Putin diz”, resume.

Protestos e ações para ajudar ucranianos

A união da comunidade ucraniana e dos russos contra a guerra começou com as manifestações contra Vladimir Putin realizadas em diversos pontos de São Paulo, como no vão do Masp e na frente do consulado russo, na zona Oeste. Até então, Snizhana diz que, ao contrário do que ela testemunhou com a comunidade brasileira no Japão, por exemplo, não existia um senso de comunidade tão forte entre os eslavos da cidade.

As manifestações passaram a ser espaço de encontro entre os mais novos. Os mais velhos já tinham um laço através da igreja, que foi reforçado com mais adeptos depois do início da guerra. “Eu via poucos jovens nas igrejas, mas depois da guerra isso mudou”, conta.

Outra mudança percebida por Snizhana durante a guerra foi a percepção das pessoas que frequentam o Clube Eslavo e o restaurante. “Muita gente que falava sobre ‘operação especial na Ucrânia’, como Putin chama, passou a chamar o que está acontecendo de guerra e mudou de opinião”, diz.

A comunidade eslava também passou a organizar bazares de roupas para refugiados ucranianos que chegam ao Brasil, eventos de arrecadação de fundos para auxiliar na compra de geradores para escolas ucranianas e a fazer o trabalho de intérprete para diversas organizações de proteção a refugiados.

Enquanto a comunidade eslava se une em torno da oposição à guerra, o conflito se estende principalmente no leste da Ucrânia. Snizhana acompanha à distância, mantendo contato com a mãe ucraniana e o pai russo, que permanecem no país invadido. Apesar das diferenças de nacionalidade, os dois enxergam o conflito da mesma forma: como uma violência contra um povo que quer ser independente, após séculos de dominação.

Uma casa vermelha de dois andares no bairro da Aclimação, na região central de São Paulo, reúne a relação secular entre russos e ucranianos através da culinária e da língua. Nela, estão localizados o restaurante russo Barskiy Dom e o Clube Eslavo, uma escola que dá aulas de ucraniano, russo e polonês. Os dois foram fundados por Snizhana Maznova, uma ucraniana de 45 anos nascida na última geração da União Soviética, filha de pai russo e mãe ucraniana, com uma biografia que personifica as histórias entrelaçadas das duas nações hoje em guerra.

No cardápio do restaurante, os pratos tradicionais russos – como o estrogonofe, apropriado pelos brasileiros em receitas mais temperadas – se misturam com os pratos ucranianos – a exemplo do varêniki, uma massa cozida e recheada que também se tornou popular no Brasil – e outros de influência de países vizinhos, como Uzbequistão e Coreia.

Um bom ponto de partida para experimentar a diversidade eslava são os golubtsi, charutos de repolho recheados com arroz e carne preparados no forno durante horas, acompanhados das panquecas de batata belarussas conhecidas como drániki. Para beber, o restaurante oferece kompot de maçã, uma bebida leve e suave feita com a fruta cozida, e kvas, que tem um gosto amargo e se caracteriza pela fermentação.

Imagem mostra ucraniana Snizhana Maznova, fundadora de Clube Eslavo e restaurante russo em São Paulo Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Nascida em 1978, Snizhana cresceu dividida entre a Rússia, onde morou com os avós até os seis anos, e a Ucrânia, onde os pais moravam, quando ambos os países faziam parte da URSS. Na infância, falava russo e não via distinção entre as duas nações, mas aos seis anos foi estudar em uma escola comandada por ucranianos e teve um choque ao descobrir a existência de uma identidade que a diferenciada dos russos. “Uma professora começou a apresentar muitos poetas que não estavam nos livros da escola, criados todos pela União Soviética”, conta.

Quando a URSS caiu em 1991 outro mundo se revelou e ela passou a saber da existência de poetas ucranianos que tinham sido mortos, levados para a Sibéria e apagados da história oficial. Mesmo os poetas que a professora havia apresentado tinham segredos agora descobertos. “Eu tinha mais dois anos de escola quando a União Soviética caiu. Essa professora começou a acrescentar coisas que eram proibidas antes, como poemas ucranianos que falavam da história de um povo massacrado e escravizado pelos russos”, continua.

Uma volta ao mundo que acabou no Brasil

Nesta mesma época, a Ucrânia vivia uma década dura, colapsada pelo fim da URSS e com a missão de se reconstruir como um país independente, após séculos de dominação do Império Russo e soviético. “Nessa época não tinha salário. Vivíamos de batata e chá”, diz a ucraniana. Por isso, decidiu trabalhar no Japão, onde casou-se com um brasileiro e decidiu vir para o Brasil. Pouco tempo depois, foi abandonada com um filho recém-nascido pelo marido.

Em São Paulo desde 2008, Snizhana começou a dar aulas de russo, uma língua que dominava melhor que o ucraniano por ter sido o idioma oficial de onde cresceu, para sobreviver financeiramente. Escolheu se instalar no bairro Paraíso porque percebeu que era o local mais acessível pelas linhas de metrô da cidade. Aos poucos reuniu alunos, aprendeu português e se estabeleceu. Acompanhava as notícias sobre a Ucrânia à distância e ouvia ainda no início da década passada alguns políticos russos afirmarem que o país pertencia à Rússia. Julgava bobagem, uma loucura que ninguém levava a sério, até a Crimeia ser invadida em 2014.

Quase dez anos depois da invasão da Crimeia, a ucraniana lembra a sensação ao ver as notícias. “Foi uma coisa super louca porque era inacreditável. Você pode imaginar Portugal chegar ao Brasil e falar que um Estado pertence a eles porque historicamente eles foram colônias portuguesas?”, relembra. Desde então, os conflitos na Ucrânia nunca foram interrompidos. O país viveu uma guerra no leste entre o exército ucraniano e grupos separatistas pró-Rússia; pouco a pouco, a aspiração do presidente Vladimir Putin sobre o vizinho cresceu, a relação entre os dois países se deteriorou e a guerra eclodiu.

Culturas entrelaçadas em São Paulo

Os conflitos no leste ucraniano após a invasão da Crimeia não afetaram as atividades do Clube Eslavo fundado por Snizhana em São Paulo. Ela continuou a dar aulas e fazer eventos sobre a cultura russa e ucraniana. À medida que o número de frequentadores aumentou, ela decidiu criar um restaurante para recebê-los. Para isso, contou com ajuda de uma russa, Larissa Korneva, atual chefe de cozinha do local. “Eu não tinha condições de cozinhar sozinha para 50 pessoas que vinham aos eventos. Foi aí que decidi criar o restaurante”, diz.

O Barskiy Dom foi fundado em junho de 2019 com um cardápio que simboliza a relação da Rússia, o maior país do mundo em território, com seus 14 vizinhos, marcada por influências mútuas nas fronteiras. Há, por exemplo, uma salada que leva o nome de “cenoura coreana” criada pelos coreanos que migraram para a Rússia, mas que não existe em nenhuma das Coreias. “A Rússia recebeu todas as influências de culinária estrangeira e transformou do seu modo”, conta Snizhana.

No primeiro andar da casa vermelha, a ucraniana guarda entre clássicos da literatura russa e dicionários outros símbolos da cultura eslava para além da Rússia. São uma lembrança da identidade criada por outros povos: matrioskas pintadas em padrões diferentes, pinturas de símbolos pagãos, anteriores ao cristianismo, em ovos de madeira, bonecas sem rosto. Os símbolos se exibem como resultado de uma identidade própria, ou da busca de uma identidade própria, fomentada ao longo dos séculos pelos povos que ocuparam o território que hoje é a Ucrânia e que demarca diferenças com os russos.

Imagem mostra matrioskas ucraniana (à esq.) e russa (à dir.). Padrões utilizados na pintura das bonecas têm pequenas diferenças nos dois países Foto: Tiago Queiroz/Estadão

A própria língua ucraniana se reafirma cada vez mais como diferente da russa. Apesar do grande número de ucranianos a falar russo, sobretudo no leste do país, desde que a Ucrânia se tornou independente em 1991 reformas são realizadas para recuperar um vocabulário que estava perdido. Segundo Snizhana, o ucraniano formal chega a ser mais próximo do polonês – que dominou os povos que viviam onde hoje é a Ucrânia entre o século 13 e 16 – do que do russo. “A língua ucraniana está para o russo como o português está para o italiano, enquanto o polonês para o ucraniano é como se fosse o espanhol para o português”, compara.

A criação do restaurante, no entanto, foi atrapalhada pela pandemia de coronavírus. Menos de um ano depois de ter aberto, ele precisou ser fechado e reabriu somente em abril 2022, quase dois meses após Vladimir Putin ordenar o exército a bombardear Kiev.

Nesse momento, a relação da comunidade eslava já era outra. Ucranianos, principalmente jovens, passaram a estar mais unidos; a relação desses com os russos que se opõem à guerra permaneceu a mesma de antes; e os laços com os que são favoráveis ao conflito foram cortados, como resultado de uma polarização entre os dois países. “Bloqueei muitas pessoas nas redes sociais que acreditam no que Putin diz”, resume.

Protestos e ações para ajudar ucranianos

A união da comunidade ucraniana e dos russos contra a guerra começou com as manifestações contra Vladimir Putin realizadas em diversos pontos de São Paulo, como no vão do Masp e na frente do consulado russo, na zona Oeste. Até então, Snizhana diz que, ao contrário do que ela testemunhou com a comunidade brasileira no Japão, por exemplo, não existia um senso de comunidade tão forte entre os eslavos da cidade.

As manifestações passaram a ser espaço de encontro entre os mais novos. Os mais velhos já tinham um laço através da igreja, que foi reforçado com mais adeptos depois do início da guerra. “Eu via poucos jovens nas igrejas, mas depois da guerra isso mudou”, conta.

Outra mudança percebida por Snizhana durante a guerra foi a percepção das pessoas que frequentam o Clube Eslavo e o restaurante. “Muita gente que falava sobre ‘operação especial na Ucrânia’, como Putin chama, passou a chamar o que está acontecendo de guerra e mudou de opinião”, diz.

A comunidade eslava também passou a organizar bazares de roupas para refugiados ucranianos que chegam ao Brasil, eventos de arrecadação de fundos para auxiliar na compra de geradores para escolas ucranianas e a fazer o trabalho de intérprete para diversas organizações de proteção a refugiados.

Enquanto a comunidade eslava se une em torno da oposição à guerra, o conflito se estende principalmente no leste da Ucrânia. Snizhana acompanha à distância, mantendo contato com a mãe ucraniana e o pai russo, que permanecem no país invadido. Apesar das diferenças de nacionalidade, os dois enxergam o conflito da mesma forma: como uma violência contra um povo que quer ser independente, após séculos de dominação.

Uma casa vermelha de dois andares no bairro da Aclimação, na região central de São Paulo, reúne a relação secular entre russos e ucranianos através da culinária e da língua. Nela, estão localizados o restaurante russo Barskiy Dom e o Clube Eslavo, uma escola que dá aulas de ucraniano, russo e polonês. Os dois foram fundados por Snizhana Maznova, uma ucraniana de 45 anos nascida na última geração da União Soviética, filha de pai russo e mãe ucraniana, com uma biografia que personifica as histórias entrelaçadas das duas nações hoje em guerra.

No cardápio do restaurante, os pratos tradicionais russos – como o estrogonofe, apropriado pelos brasileiros em receitas mais temperadas – se misturam com os pratos ucranianos – a exemplo do varêniki, uma massa cozida e recheada que também se tornou popular no Brasil – e outros de influência de países vizinhos, como Uzbequistão e Coreia.

Um bom ponto de partida para experimentar a diversidade eslava são os golubtsi, charutos de repolho recheados com arroz e carne preparados no forno durante horas, acompanhados das panquecas de batata belarussas conhecidas como drániki. Para beber, o restaurante oferece kompot de maçã, uma bebida leve e suave feita com a fruta cozida, e kvas, que tem um gosto amargo e se caracteriza pela fermentação.

Imagem mostra ucraniana Snizhana Maznova, fundadora de Clube Eslavo e restaurante russo em São Paulo Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Nascida em 1978, Snizhana cresceu dividida entre a Rússia, onde morou com os avós até os seis anos, e a Ucrânia, onde os pais moravam, quando ambos os países faziam parte da URSS. Na infância, falava russo e não via distinção entre as duas nações, mas aos seis anos foi estudar em uma escola comandada por ucranianos e teve um choque ao descobrir a existência de uma identidade que a diferenciada dos russos. “Uma professora começou a apresentar muitos poetas que não estavam nos livros da escola, criados todos pela União Soviética”, conta.

Quando a URSS caiu em 1991 outro mundo se revelou e ela passou a saber da existência de poetas ucranianos que tinham sido mortos, levados para a Sibéria e apagados da história oficial. Mesmo os poetas que a professora havia apresentado tinham segredos agora descobertos. “Eu tinha mais dois anos de escola quando a União Soviética caiu. Essa professora começou a acrescentar coisas que eram proibidas antes, como poemas ucranianos que falavam da história de um povo massacrado e escravizado pelos russos”, continua.

Uma volta ao mundo que acabou no Brasil

Nesta mesma época, a Ucrânia vivia uma década dura, colapsada pelo fim da URSS e com a missão de se reconstruir como um país independente, após séculos de dominação do Império Russo e soviético. “Nessa época não tinha salário. Vivíamos de batata e chá”, diz a ucraniana. Por isso, decidiu trabalhar no Japão, onde casou-se com um brasileiro e decidiu vir para o Brasil. Pouco tempo depois, foi abandonada com um filho recém-nascido pelo marido.

Em São Paulo desde 2008, Snizhana começou a dar aulas de russo, uma língua que dominava melhor que o ucraniano por ter sido o idioma oficial de onde cresceu, para sobreviver financeiramente. Escolheu se instalar no bairro Paraíso porque percebeu que era o local mais acessível pelas linhas de metrô da cidade. Aos poucos reuniu alunos, aprendeu português e se estabeleceu. Acompanhava as notícias sobre a Ucrânia à distância e ouvia ainda no início da década passada alguns políticos russos afirmarem que o país pertencia à Rússia. Julgava bobagem, uma loucura que ninguém levava a sério, até a Crimeia ser invadida em 2014.

Quase dez anos depois da invasão da Crimeia, a ucraniana lembra a sensação ao ver as notícias. “Foi uma coisa super louca porque era inacreditável. Você pode imaginar Portugal chegar ao Brasil e falar que um Estado pertence a eles porque historicamente eles foram colônias portuguesas?”, relembra. Desde então, os conflitos na Ucrânia nunca foram interrompidos. O país viveu uma guerra no leste entre o exército ucraniano e grupos separatistas pró-Rússia; pouco a pouco, a aspiração do presidente Vladimir Putin sobre o vizinho cresceu, a relação entre os dois países se deteriorou e a guerra eclodiu.

Culturas entrelaçadas em São Paulo

Os conflitos no leste ucraniano após a invasão da Crimeia não afetaram as atividades do Clube Eslavo fundado por Snizhana em São Paulo. Ela continuou a dar aulas e fazer eventos sobre a cultura russa e ucraniana. À medida que o número de frequentadores aumentou, ela decidiu criar um restaurante para recebê-los. Para isso, contou com ajuda de uma russa, Larissa Korneva, atual chefe de cozinha do local. “Eu não tinha condições de cozinhar sozinha para 50 pessoas que vinham aos eventos. Foi aí que decidi criar o restaurante”, diz.

O Barskiy Dom foi fundado em junho de 2019 com um cardápio que simboliza a relação da Rússia, o maior país do mundo em território, com seus 14 vizinhos, marcada por influências mútuas nas fronteiras. Há, por exemplo, uma salada que leva o nome de “cenoura coreana” criada pelos coreanos que migraram para a Rússia, mas que não existe em nenhuma das Coreias. “A Rússia recebeu todas as influências de culinária estrangeira e transformou do seu modo”, conta Snizhana.

No primeiro andar da casa vermelha, a ucraniana guarda entre clássicos da literatura russa e dicionários outros símbolos da cultura eslava para além da Rússia. São uma lembrança da identidade criada por outros povos: matrioskas pintadas em padrões diferentes, pinturas de símbolos pagãos, anteriores ao cristianismo, em ovos de madeira, bonecas sem rosto. Os símbolos se exibem como resultado de uma identidade própria, ou da busca de uma identidade própria, fomentada ao longo dos séculos pelos povos que ocuparam o território que hoje é a Ucrânia e que demarca diferenças com os russos.

Imagem mostra matrioskas ucraniana (à esq.) e russa (à dir.). Padrões utilizados na pintura das bonecas têm pequenas diferenças nos dois países Foto: Tiago Queiroz/Estadão

A própria língua ucraniana se reafirma cada vez mais como diferente da russa. Apesar do grande número de ucranianos a falar russo, sobretudo no leste do país, desde que a Ucrânia se tornou independente em 1991 reformas são realizadas para recuperar um vocabulário que estava perdido. Segundo Snizhana, o ucraniano formal chega a ser mais próximo do polonês – que dominou os povos que viviam onde hoje é a Ucrânia entre o século 13 e 16 – do que do russo. “A língua ucraniana está para o russo como o português está para o italiano, enquanto o polonês para o ucraniano é como se fosse o espanhol para o português”, compara.

A criação do restaurante, no entanto, foi atrapalhada pela pandemia de coronavírus. Menos de um ano depois de ter aberto, ele precisou ser fechado e reabriu somente em abril 2022, quase dois meses após Vladimir Putin ordenar o exército a bombardear Kiev.

Nesse momento, a relação da comunidade eslava já era outra. Ucranianos, principalmente jovens, passaram a estar mais unidos; a relação desses com os russos que se opõem à guerra permaneceu a mesma de antes; e os laços com os que são favoráveis ao conflito foram cortados, como resultado de uma polarização entre os dois países. “Bloqueei muitas pessoas nas redes sociais que acreditam no que Putin diz”, resume.

Protestos e ações para ajudar ucranianos

A união da comunidade ucraniana e dos russos contra a guerra começou com as manifestações contra Vladimir Putin realizadas em diversos pontos de São Paulo, como no vão do Masp e na frente do consulado russo, na zona Oeste. Até então, Snizhana diz que, ao contrário do que ela testemunhou com a comunidade brasileira no Japão, por exemplo, não existia um senso de comunidade tão forte entre os eslavos da cidade.

As manifestações passaram a ser espaço de encontro entre os mais novos. Os mais velhos já tinham um laço através da igreja, que foi reforçado com mais adeptos depois do início da guerra. “Eu via poucos jovens nas igrejas, mas depois da guerra isso mudou”, conta.

Outra mudança percebida por Snizhana durante a guerra foi a percepção das pessoas que frequentam o Clube Eslavo e o restaurante. “Muita gente que falava sobre ‘operação especial na Ucrânia’, como Putin chama, passou a chamar o que está acontecendo de guerra e mudou de opinião”, diz.

A comunidade eslava também passou a organizar bazares de roupas para refugiados ucranianos que chegam ao Brasil, eventos de arrecadação de fundos para auxiliar na compra de geradores para escolas ucranianas e a fazer o trabalho de intérprete para diversas organizações de proteção a refugiados.

Enquanto a comunidade eslava se une em torno da oposição à guerra, o conflito se estende principalmente no leste da Ucrânia. Snizhana acompanha à distância, mantendo contato com a mãe ucraniana e o pai russo, que permanecem no país invadido. Apesar das diferenças de nacionalidade, os dois enxergam o conflito da mesma forma: como uma violência contra um povo que quer ser independente, após séculos de dominação.

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