WASHINGTON - Os protestos registrados pelo oitavo dia consecutivo nos Estados Unidos tiveram menos incidentes violentos na maioria das cidades americanas. A terça-feira,2, foi considerada o dia mais calmo desta onda de manifestações que começaram com a morte do ex-segurança negro George Floyd, por um policial branco, em Minneapolis.
Desde o início dos protestos, em dia 25 de maio, mais de 9 mil pessoas foram presas. Na noite de terça-feira, ainda houve registro de saques em Nova York, mas houve um nítido recuo na violência em comparação com os últimos dias, quando manifestações pacíficas terminavam em confrontos violentos com as forças de segurança.
A capital americana se tornou o símbolo da escalada na repressão policial defendida pelo presidente Donald Trump e de como a estratégia tende a aumentar a temperatura dos conflitos contra o racismo e a violência policial, que chegam ao oitavo dia nos Estados Unidos.
Nesta terça-feira, 2, um dia depois de o republicano dizer que era o presidente "da lei e da ordem" e estimular uso da força policial para conter protestos, os manifestantes voltaram às ruas mais cedo do que o habitual em Washington, Nova York e Los Angeles.
Bem maior do que nos dias anteriores, o protesto nesta terça-feira em Washington seguiu sem confronto entre manifestantes e polícia até a publicação deste texto. Diferentemente do que aconteceu um dia antes, os policiais não forçaram a dispersão com bombas de gás lacrimogêneo e efeito moral próximo ao horário de recolher. Uma parte do grupo desceu rumo ao Capitólio, enquanto a outra se manteve na Casa Branca.Em alguns bairros da cidade moradores fizeram panelaços pela janela em apoio aos manifestantes que estavam na rua. Trump comemorou no Twitter que Washington era o lugar “mais seguro da terra” na segunda-feira, quando manifestantes foram dispersados com força policial.
Na segunda-feira 1, no jardim da Casa Branca, Trump afirmou que era favorável a manifestações, mas prometeu mobilizar militares para conter a agitação civil - uma promessa que acendeu o sinal de alerta do Pentágono, que ainda não vê necessidade de entrar em ação. Do lado de fora da residência presidencial, enquanto Trump discursava, a polícia lançava bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo para afastar os manifestantes.
O resultado foi temporariamente eficaz: a praça Lafayette, por onde Trump queria atravessar a pé num sinal de força, ficou vazia antes das 19h, quando começou a valer o toque de recolher na cidade. Mas os manifestantes se espalharam pelos bairros de Washington de maneira descentralizada e o policiamento redobrado com apoio da Guarda Nacional entrou em cena e deixou a capital americana em clima de cidade sitiada.
Veículos blindados da Guarda Nacional cercaram a Casa Branca e cruzamentos estratégicos da cidade. Ao menos quatro helicópteros circularam com voo baixo durante toda a noite e madrugada, jogando luz, zumbido e ventania sobre os grupos que ainda estavam na rua. Carros de polícia ficaram estacionados em esquinas, com sirenes ligadas, enquanto policiais em bicicletas fechavam o cerco a manifestantes que estavam em pequenos grupos.
"A 25 minutos do toque de recolher e sem provocação, a polícia federal usou munições contra manifestantes pacíficos em frente à Casa Branca, um ato que fará o trabalho da polícia do Distrito de Columbia mais difícil. Vergonhoso", reclamou a prefeita de Washington, Muriel Bowser.
Minutos antes de os policiais avançarem para encurralar os manifestantes e tirá-los da praça, o secretário de Justiça, William Barr, foi pessoalmente ao local. O esvaziamento da praça à força possibilitou que o presidente cruzasse a área antes ocupada para posar com uma bíblia em frente à igreja St. John's Church, que teve o porão em chamas em razão dos protestos.
Trump, que não é religioso e não frequenta a igreja, foi criticado pelo padre responsável pelo espaço e pela Diocese Episcopal de Washington, que tem Mariann Budde como bispa. "Ultraje", afirmou Mariann. "O presidente usou a bíblia e uma das igrejas da minha diocese, sem nos perguntar, como um cenário para uma mensagem antiética dos ensinamentos de Jesus e de tudo o que nossa igreja prega", afirmou.
Críticas políticas
A retórica de divisão do presidente e o apelo à força foi criticado por adversários políticos e também por senadores republicanos. Joe Biden, que disputará contra Trump a eleição presidencial em novembro, disse que os EUA estão "chorando por liderança".
Trump ignorou, no pronunciamento feito na segunda-feira, o tema dos protestos e não apresentou propostas para responder às demandas pelo fim do racismo e da violência policial. A organização Mapping Police Violence estima que ano passado os negros foram 24% dos mortos pela polícia nos EUA, apesar de representarem 13% da população. Ainda segundo o grupo, entre 2013 e 2019, 99% das mortes pela polícia não resultaram em acusações criminais.
O foco do presidente, no entanto, segue na reação dos manifestantes com a aposta de que a demonstração de força sustentará seu discurso político nas eleições presidenciais. Nesta terça-feira, novamente ele defendeu o reforço nas medidas de segurança e criticou Biden. "A fraqueza nunca derrotará anarquistas, saqueadores ou bandidos, e Joe foi fraco a vida toda. Lei e ordem!", escreveu o presidente em sua conta no Twitter depois das críticas do democrata.
No primeiro dia de protestos em Washington, manifestantes ainda podiam ficar exatamente do outro lado da rua da Casa Branca. Alguns metros separavam os protestos da residência oficial. Desde sábado, a barreira de guardas e as grades foram posicionadas mais à frente, dia após dia, empurrando os manifestantes para cada vez mais longe da propriedade. Nesta terça-feira, a praça Lafayette amanheceu com altas grades pretas, impedindo a entrada dos manifestantes, e o serviço secreto ampliou o perímetro de atuação para ruas que circundam a Casa Branca.
Para tentar conter o avanço dos protestos, as cidades têm antecipado o início do toque de recolher. Em Washington, a medida começa às 19h. Em Nova York, às 20h. Em ambos os casos, ainda à luz do dia.
Nascida e criada em Washington, Janice Ford era criança na época dos protestos de 1968, mas afirma que lembra de ver a rua perto da casa dos seus pais "queimar". Na época, os protestos civis e a agitação social fizeram com que mais de mil focos de incêndio fossem contabilizados pela cidade, além de 8 mil prisões, com algumas partes dos bairros devastados. A Guarda Nacional foi acionada para tentar controlar os protestos. Algumas coisas melhoraram depois disso, diz Janice, que participou do protesto em frente à Casa Branca na segunda-feira.
"Meus pais cresceram aqui, nós vimos a Rua 8, em 1968, queimar. Nós morávamos a três quarteirões dali. Depois daquele protesto vimos a Lei dos Direitos Civis avançar, mais afro-americanos poderem trabalhar no governo. Eu vivo em uma comunidade onde até 1969 afro-americanos não podiam comprar uma casa", conta. Por isso, ela apoia atos enérgicos que resultem eventualmente em depredação e violência.
Proteção ao filho
Desta vez, ela foi à manifestação para proteger o filho, de 18 anos, mas não dos manifestantes, e sim da polícia. "Meu filho poderia facilmente ter sido George Floyd", diz, ao contar que o jovem foi parado pela polícia a caminho da faculdade.
Ao lado da mãe, Jayden Ford disse estar cansado de ver a polícia "poder fazer o que quiser sem nenhuma consequência". Ele aposta que as manifestações de agora têm potencial de impulsionar uma mudança real e maior do que as realizadas pelo mesmo motivo em 2013 e 2014. "Nós não tínhamos todo o apoio que temos agora. Quando isso aconteceu antes, durava por um mês talvez e as pessoas se cansaram. Mas eu acho que agora há mais apoio público", afirma. "Nós tentamos ser pacíficos. Fomos pacíficos por centenas de anos e toda vez que somos pacíficos, tudo o que recebemos é violência", afirma o jovem.
Para o professor de sociologia e estudos afro-americanos da Universidade de Michigan, Alford Young, o momento atual se caracteriza pela incapacidade de o país ter dado respostas efetivas quando manifestações pacíficas sobre o mesmo tema aconteceram. "A comparação que faço entre 1968 e o protesto atual é que ambos os momentos resultam da incapacidade dos Estados Unidos de responder corretamente a momentos anteriores de manifestações pacíficas", afirma.