ARRO, ITÁLIA – A emergência climática provocada pela seca no norte da Itália tem colocado em risco um dos maiores patrimônios culturais da Itália: sua culinária. A falta de chuvas e a seca no Rio Pó ameaça a produção de arroz arbóreo, típico do tradicional risoto italiano. Outros ingredientes clássicos da cozinha local, como a passata de tomate - base da maioria dos molhos de macarrão - e o tradicional azeite de oliva também têm a produção ameaçada pela seca.
Estima-se que o preço desses produtos pode subir até 50% por causa da pior seca em 70 anos. No caso do azeite, a seca diminuiu entre 20 e 30% a produção italiana em relação ao ano passado, segundo o diário britânico The Guardian. Os preços subiram 28%. Com o solo muito seco, as oliveiras não dão fruto.
“Já estamos vendo algumas oliveiras não produzindo frutos, o que só acontece quando os níveis de umidade do solo estão criticamente baixos”, disse o diretor do grupo de pesquisa de mercado Mintec, Kyle Holland.
Os tomates, assim como o arroz, dependem das águas irrigadas do Rio Pó em suas safras, que também diminuíram de forma significativa. Os preços da passata e do arbóreo mais que dobraram desde o início da pandemia, segundo a Mintec.
A próxima safra de arroz arbóreo deve ficar 20% mais cara. Um cenário de pânico para osterias e cozinheiros amadores num país orgulhoso de sua tradição culinária.
Prejuízo nos campos de arroz
Todos os dias ao amanhecer, Roberto Guerrini caminha entre os campos de arroz que a família cultiva há quatro gerações no norte da Itália, para garantir que não haja buracos – feitos com frequência por animais escavadores – nos bancos de terra. Convivendo com uma seca severa, o trabalho é exercido com a determinação de evitar o desperdício de qualquer gota d’água e sob o temor de que as coisas jamais voltarão a ser como eram.
Guerrini – assim como dezenas de milhares de agricultores da bacia do Rio Pó – enfrenta dificuldades para lidar com as consequências da seca, que tende a ficar cada vez mais frequente e mais intensa nesta era de mudanças climáticas. Os italianos vivem agora com algo que parecia inimaginável há pouco tempo: a ameaça de faltar azeite, arroz para risoto e a passata, o que aumentaria ainda mais a crise do custo de vida.
O problema é mais acentuado nas fazendas da bacia do Rio Pó, responsáveis por cerca de 30% da produção agrícola do país, segundo o valor comercial, de acordo com a Coldiretti, a confederação nacional de produtores agrícolas. A seca deste ano ocasionará um prejuízo de 3 bilhões de euros, ou US$ 3,05 bilhões, aos agricultores da região, afirmou a entidade.
Mudanças climáticas
A seca atual é ocasionada por elementos combinados em um mesmo momento: invernos mais secos e chuvas mais escassas até mesmo na primavera, enquanto as temperaturas aumentam. “Chegamos a uma situação em que esses três elementos combinados no mesmo momento produzem essa seca extrema”, diz Massimiliano Pasqui, especialista em mudanças climáticas do Conselho Nacional de Pesquisas.
As consequências são evidentes em toda a região. Pelo menos 11 pessoas morreram quando uma geleira desabou em 3 de julho nas Dolomitas, tragédia que o primeiro-ministro Mario Draghi atribuiu às mudanças climáticas. Cidades de todo o norte italiano têm racionado água há meses. Os carros ficam empoeirados, piscinas, vazias, e em algumas cidades o fornecimento de água é cortado durante a noite. Em Castenaso, no leste de Bolonha, cabeleireiros foram proibidos de lavar duas vezes os cabelos dos clientes.
O aquecimento global aumenta a probabilidade das secas, e enquanto os cientistas ainda estudam a conexão entre o verão implacável na bacia do Rio Pó e o fenômeno mais amplo das mudanças climáticas, períodos de seca de várias graduações estão se tornando a nova realidade de agricultores de toda a região.
Temperaturas mais altas secam o solo e a vegetação e fazem com que caia mais chuva, em vez de neve, o que pode influenciar a disponibilidade da água para a agricultura. As mudanças climáticas também afetam padrões de precipitações em todo o mundo, tonando áreas secas ainda mais secas.
Isso, por sua vez, força agricultores a tomar decisões difíceis, a respeito do que plantar, quanta água devem fornecer aos cultivos e se devem ou não abandonar definitivamente determinados campos.
Maior via fluvial da Itália seca
Atravessando os Alpes na direção do Adriático, o Rio Pó, maior via fluvial da Itália, compõe há séculos um intrincado sistema que ajuda na irrigação da região de sua bacia, que Napoleão descreveu como “as planícies mais férteis do mundo”.
Agora, em alguns trechos, o Pó não passa de um arroio. Clubes de remadores guardaram seus remos, adolescentes loucos para se bronzear lotam as praias à beira do rio, e em Gualtieri, uma cidade no centro do curso do Pó, dois navios que foram afundados em 1944 emergiram este ano quando a água baixou.
Imagens registradas pela Agência Espacial Europeia acompanhando as condições do rio e suas margens ao longo dos últimos três anos foram publicadas recentemente sob a sombria manchete: “O Rio Pó está secando”.
Guerrini cultiva arborio e carnaroli, entre outros produtos, os tipos de arroz preferidos na Itália para a elaboração dos risotos, nas região da aldeia de Arro (214 habitantes), nome que aparentemente deriva do termo “arroz”, remetendo a antigos colonos espanhóis.
A chuva tem sido tão escassa no inverno que Guerrini semeou menos campos de arroz – “eles têm falado há meses sobre uma seca”, afirmou ele – enquanto semanas de céus azuis e altas temperaturas castigam seus cultivos.
“A gestão da água é 80% da cultura do arroz”, afirmou Guerrini. “Se você não é capaz de administrar corretamente a água, você perde a safra.”
O calor está fazendo as plantas amadurecerem mais cedo – “o que não é bom para a qualidade”, afirmou Guerrini – e ele teme que os grãos não chegarão a engordar plenamente; em vez disso, murcharão sob o sol escaldante. Para piorar ainda mais as coisas, o fungo da brusone do arroz (Magnaporthe grisea), que normalmente incide posteriormente em cada temporada, apareceu mais cedo.
Meuccio Berselli, secretário-geral da Autoridade da Bacia do Rio Pó, afirmou que este é o sexto período de seca nas últimas duas décadas, e que não tem dúvida nenhuma sobre o que a está provocando o fenômeno. “Estamos dizendo há anos que temos de acelerar nossa adaptação às mudanças climáticas, que agora são incontestáveis”, afirmou ele.
Arroz em perigo
Os campos de arroz, que são mantidos úmidos por um sistema de irrigação estritamente regulado por consórcios locais, estão em perigo. No alto do rio, mais próximo aos Alpes, a situação já é séria, mas não tão grave quanto rio abaixo, onde muitos agricultores estão sofrendo.
Paolo Carrà, presidente do Escritório Nacional do Arroz, afirmou que é “prematuro” analisar a situação antes de setembro, quando o arroz é colhido normalmente, “mas há sinais de que em algumas regiões os campos de arroz foram completamente destruídos”, afirmou ele. A Itália produz 52% do arroz consumido na Europa, mais do que qualquer outro país, e quase toda a produção ocorre no Piemonte e na Lombardia.
A seca não poderia ter ocorrido em um momento pior para os agricultores. Os preços da eletricidade, da gasolina e dos fertilizantes quase dobraram este ano, afirmou Guerrini, e há pouco alívio financeiro à vista.
O governo alocou na semana passada 36,5 milhões de euros para auxílio emergencial, mas isso dificilmente fará muita diferença: A ajuda será destinada a cinco regiões da Itália e dividida entre instituições locais – poderá levar anos até ser distribuída para os cidadãos.
Seguros agrícolas também não resolverão a equação. Eles cobrem eventos climáticos extremos, como as tempestades de granizo e as pesadas e súbitas enxurradas cada vez mais comuns na Itália, mas não cobrem a seca.
E no mesmo momento em que a situação ficou crítica no norte, foram detectados sinais de que “a seca está se espalhando para o centro e o sul da Itália”, como resultado de temperaturas consistentemente mais altas do que a média, afirmou Ramona Magno, da entidade de pesquisa Drought Climate Services.
Especialistas afirmam que enormes investimentos e uma nova mentalidade são fundamentais para reverter os efeitos das mudanças climáticas, que requerem medidas como construção de lagos e reservatórios, observação dos campos de cultivo via satélite e medidas simples, como melhorias na infraestrutura hidráulica. Magno afirmou que o país perde mais de 40% da água doce que produz por causa de encanamentos dilapidados.
“Temos de mudar a maneira como abordamos o problema, mudar nossa mentalidade para encarar o assunto de frente”, afirmou Magno.
Berselli, da autoridade da bacia do Pó, afirmou que tem outras preocupações. No Delta do Pó, a planície fértil próxima ao Adriático está sendo invadida por água salgada, que modifica o rio e seus estuários, é absorvida pelo solo e coloca em risco a fertilidade das terras.
“Água é vida”, afirmou ele. “Não podemos nos permitir desperdiçá-la.” /REDAÇÃO COM NYT E TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO