Quando Volodmir Zelenski se retirou da Casa Branca, na tarde desta sexta-feira, após ser pessoalmente expulso por Donald Trump, havia protagonizado um dos momentos mais indecorosos da história da diplomacia americana.
Definitivamente não foi uma cena agradável – dois chefes de Estado e um vice-presidente batendo boca no salão mais importante do país mais poderoso de todos os tempos, com o mundo inteiro prestando atenção. Mas se é possível acusar Donald Trump de inúmeras coisas, não dá para dizer que ele agiu de maneira incoerente.
Trump nunca escondeu o seu pouco apreço por Zelenski – a quem chamou de “ditador” há poucos dias – e a sua admiração por Vladimir Putin.
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O presidente ucraniano viajou para Washington para assinar a resolução sobre extração de minerais na Ucrânia, mas o encontro com Trump terminou em bate-boca.
Críticas durante a campanha
Na campanha, o nova-iorquino exaltou o exército russo, culpou os Estados Unidos pela guerra e desdenhou de Zelenski incontáveis vezes.
“Biden diz: ‘Não sairemos até vencermos’. O que acontece se vencerem? É isso o que eles fazem, eles [os russos] lutam em guerras. Como alguém me disse outro dia, eles derrotaram Hitler, eles derrotaram Napoleão. É isso o que eles fazem. Eles lutam. E não é agradável.”
“Continuamos a dar bilhões de dólares a um homem que se recusa a fazer um acordo, Zelenski.”
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“A Ucrânia se foi. Não existe mais Ucrânia. Você nunca poderá substituir essas cidades e vilas e nunca poderá substituir as pessoas mortas, tantas pessoas mortas.”
Quando foi confrontado por Kamala Harris no debate presidencial se era capaz de declarar publicamente a sua torcida para a vitória da Ucrânia na guerra, Trump se negou a responder a pergunta mais fácil da história dos debates presidenciais americanos.
Kamala Harris devolveu à questão dizendo que Trump era incapaz de defender publicamente uma vitória ucraniana porque torcia para uma vitória russa. E ela tinha razão.
Um ranço antigo
Ao longo dos anos, Trump se posicionou repetidas vezes alinhado ao discurso oficial do Kremlin sobre os mais diversos assuntos, e nunca escondeu a sua empolgação com a invasão russa na Ucrânia. Em março de 2014, ele chegou a elogiar a anexação da Crimeia, prevendo que o “o resto da Ucrânia” cairia, e que era possível que caísse “rapidamente”.
Um mês depois, numa entrevista para o comentarista político Eric Bolling, da Fox Business, Trump disse que a anexação da Crimeia foi um movimento “muito inteligente” e que os ucranianos estavam “prejudicando os russos”:
“Bem, ele [Putin] fez um trabalho incrível ao assumir o comando. E ele tirou isso do presidente, e você olha o que ele está fazendo – e de forma tão inteligente. Quando você vê os tumultos em um país porque eles estão prejudicando os russos, ok, ‘nós iremos e assumiremos o controle’. E ele realmente vai, passo a passo, e você tem que dar muito crédito a ele.”
“Curiosamente, sou dono do concurso Miss Universo. Acabamos de sair de Moscou. Ele não poderia ter sido mais gentil. Ele foi tão gentil e tudo mais. Mas você tem que dar o crédito porque o que ele está fazendo por aquele país, em termos do seu prestígio mundial, é muito forte.”
Na ocasião, Trump também argumentou que o movimento pró-Rússia na Crimeia era real e não uma “armação” – ou seja: que Putin estava libertando os russos da região.
E em fevereiro de 2022, quando o mundo estava em pânico com a invasão em larga escala da Rússia em direção a Kiev, o republicano também elogiou o movimento de Vladimir Putin na Ucrânia:
“[Putin está] tomando conta de um país por dois dólares em sanções. Eu diria que isso é bem inteligente.”
Fiona Hill, a principal autoridade em Rússia no Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos durante o primeiro governo Trump, diz que, enquanto trabalhou com ele, Trump “não conseguia entender a ideia de que a Ucrânia era um estado independente”:
“Trump deixou bem claro que ele pensava, você sabe, que a Ucrânia, e certamente a Crimeia, deveriam fazer parte da Rússia”.
Raízes do impeachment
No seu primeiro mandato, quando o Congresso americano aprovou o envio de quase US$ 400 milhões para a Ucrânia – que já estava em guerra com a Rússia, em Donetsk e Luhansk – Trump disse ao seu Chefe de Gabinete interino, Mick Mulvaney, para reter o envio do dinheiro, sem apresentar justificativas.
Trump tinha dois objetivos ao segurar o apoio:
- Pressionar o governo ucraniano a anunciar uma investigação de corrupção sobre Joe Biden (e o seu filho Hunter Biden);
- Pressionar o governo ucraniano a participar de uma teoria conspiratória que alegava que havia sido a Ucrânia – e não a Rússia – quem tinha interferido nas eleições presidenciais de 2016 (e tinha feito isso para ajudar os democratas).
O primeiro objetivo prejudicaria o capital político de Biden, e facilitaria a sua reeleição em 2020. Trump efetivamente pediu para um país estrangeiro interferir no processo político americano.
Não bastasse, o seu segundo objetivo prejudicaria o capital político da Ucrânia nos Estados Unidos, afastando qualquer apoio de Washington a Zelenski, melhorando o status da Rússia.
Nós sabemos que esses eram os objetivos de Trump porque no dia 25 de julho de 2019, ele e Zelenski conversaram sobre isso por telefone. Ligações telefônicas entre o presidente dos Estados Unidos e líderes estrangeiros são geralmente monitoradas e transcritas por funcionários do Conselho de Segurança Nacional e outras agências responsáveis pela segurança e a inteligência do governo.
Por um tempo, essa conversa foi mantida em sigilo, mas um whistleblower da própria comunidade de inteligência dos Estados Unidos soube do conteúdo da ligação e apresentou uma queixa formal ao Inspetor-Geral da Comunidade de Inteligência. A queixa alegava que Trump havia usado o cargo de presidente para obter benefícios políticos pessoais.
Isso é o que nós chamamos de escândalo político. Nos Estados Unidos, o Congresso tem o poder exclusivo de aprovar o orçamento federal, o que inclui a decisão sobre como e onde os recursos financeiros são alocados.
Este episódio foi decisivo para a aprovação de um processo de impeachment contra Trump pela Câmara dos Representantes, em dezembro de 2019. Pelo caso, Trump foi acusado de abuso de poder e obstrução do Congresso. Ele se tornou apenas o terceiro presidente da história dos Estados Unidos a ter um pedido de impeachment aprovado pela Câmara dos Representantes. Trump só não foi removido do cargo porque foi absolvido pelo Senado, de maioria republicana, em fevereiro de 2020.
O mais novo episódio
O que nós vimos nessa sexta-feira foi apenas mais um episódio de uma longa trajetória política de rejeição à Ucrânia e Zelenski – e de aproximação à Rússia e Putin – por parte de Donald Trump. Não há nenhuma estratégia cerebral brilhante por trás de nada disso; nada oculto por um suposto mestre da negociação.
Como as suas declarações, ações e omissões sempre deixaram muito claro, o presidente americano nunca viu em Zelenski um aliado. E o seu interesse pelos metais de terras raras da Ucrânia nunca passou de uma tentativa de explorar o território de um país dizimado pelo maior conflito em solo europeu desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Ao menos isso serve de consolo pelos últimos acontecimentos: a inocência acabou.