Rompante de Trump sobre Otan pode fazer a Europa agir por conta própria


Muitos alarmaram-se em razão de comentários sobre ele ‘encorajar’ a Rússia a atacar aliados dos Estados Unidos com pagamentos atrasados à entidade, mas os líderes europeus já consideram uma aliança sem os americanos

Por David E. Sanger

THE NEW YORK TIMES — Muito antes de Donald Trump pronunciar, no fim de semana, a ameaça de estar disposto a deixar a Rússia fazer “o que bem entender” contra aliados da Otan que não contribuam suficientemente para a defesa coletiva, líderes europeus já discutiam nos bastidores como podem se preparar para um mundo no qual os Estados Unidos se retiram e deixam de ser o elemento central da aliança de 75 anos.

Mesmo tendo em conta a típica grandiloquência bombástica de seus comícios eleitorais, e Trump teceu essa declaração em um deles no sábado, o ex-presidente poderá agora forçar o debate na Europa a uma fase muito mais pública.

Até aqui, a discussão nos meios de comunicação europeus colocou o foco na possibilidade de Trump, se retornar à presidência, retirar os EUA da Otan.

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O ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump participa de um comício de campanha em Nashua  Foto: Jabin Botsford/The Washington Post

Mas a implicação maior de sua declaração é que Trump poderá tentar o presidente da Rússia, Vladimir Putin, a escolher uma nação da Otan como alerta e lição para as outras a respeito de acatar demandas do americano.

A fala de Trump deixou muitos na Europa estarrecidos, especialmente após três anos nos quais o presidente Joe Biden, buscando restaurar a confiança na aliança perdida durante os quatro anos de Trump na presidência, afirmou repetidamente que os EUA defenderiam “cada centímetro do território da Otan”. E ainda que um porta-voz da Casa Branca, Andrew Bates, tenha qualificado os comentários de Trump como “tresloucados”, na manhã do domingo eles já haviam ressoado entre aqueles que têm argumentado que a Europa não pode depender dos EUA para dissuadir a Rússia.

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Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, que reúne governos da Europa e define suas políticas em comum, escreveu que “declarações irresponsáveis” como as de Trump “servem apenas ao interesse de Putin”. Michel escreveu que os comentários do ex-presidente tornam mais urgentes os nascentes esforços da Europa no sentido de “desenvolver sua autonomia estratégica e investir em sua defesa”.

E em Berlim, Norbert Röttgen, membro da comissão de assuntos exteriores do Parlamento alemão, escreveu na plataforma de rede social X, “Todos deveriam assistir esse vídeo de #Trump para entender que a Europa logo poderá não ter outra escolha a não ser defender a si mesma”. “Qualquer outra coisa seria capitular e desistir de nós mesmos”, acrescentou ele.

O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, aponta para o lado direito após uma foto com os líderes de países membros da aliança militar em dezembro de 2019, quando Donald Trump era presidente dos Estados Unidos  Foto: Francisco Seco / AP
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Toda essa dúvida deverá dominar a reunião dos ministros da Defesa dos países-membros da Otan na quinta-feira, 15, em Bruxelas, e depois a Conferência de Segurança de Munique, um encontro anual de chefes de seguranças nacionais, na sexta-feira, 16. E mesmo que a vice-presidente Kamala Harris e o secretário de Estado Antony Blinken usem, o que farão indubitavelmente, o momento para celebrar a solidariedade que tem sido crítica para manter a Ucrânia uma nação independente, dois anos após a invasão russa, qualquer declaração que eles fizerem será quase certamente recebida com dúvidas sobre o que será da aliança daqui a um ano.

De fato, essa reavaliação está em operação há meses, afirmam alguns diplomatas e ministros da Defesa europeus, apesar de terem aludido a isso em público apenas indiretamente — ou nem sequer tocado assunto.

O ministro da Defesa alemão, Boris Pistorius, começou a falar a respeito das maneiras com que a Alemanha deve se preparar para a possibilidade de décadas de conflito com a Rússia. De saída da função, o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, afirmou na semana passada que a aliança deve se preparar para um “conflito de décadas” com a Rússia.

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“Qualquer sugestão de que aliados não defenderão uns aos outros mina toda a nossa segurança, incluindo dos EUA, e coloca soldados americanos e europeus em maior risco”, afirmou Stoltenberg em um comunicado, no domingo, 11. “Espero que, independentemente de quem vença a eleição presidencial, os EUA continuem um aliado da Otan forte e comprometido”, acrescentou ele, ecoando declarações feitas por membros da aliança em 2016.

O ministro da Defesa da Dinamarca, Troels Poulsen, afirmou que, em três a cinco anos, a Rússia poderá “testar” a solidariedade da Otan atacando algum de seus membros mais fracos, tentando fraturar a aliança ao demonstrar que os outros signatários não acudirão em sua defesa. “Não era essa a avaliação da Otan em 2023″, disse Poulsen ao jornal dinamarquês Jyllands-Posten, na semana passada, classificando essa informação como “nova”.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião com seu gabinete econômico em Moscou, Rússia  Foto: Alexander Kazakov / AP
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Questão nuclear

No centro da questão, o debate em andamento na Europa resume-se à dúvida sobre os 31 países-membros da Otan terem a garantia de que o guarda-chuva nuclear dos EUA — a dissuasão definitiva contra uma invasão russa — seguirá sobre suas cabeças.

Reino Unido e França possuem seus próprios pequenos arsenais atômicos. Se, ao longo do próximo ano, membros da Otan vierem a duvidar de que os EUA permanecerão comprometidos com o Artigo 5.º do tratado da aliança, que declara um ataque contra um signatário um ataque contra todos, isso também quase inevitavelmente ressuscitaria o debate sobre quem mais na Europa precisar de suas próprias armas nucleares — começando pela Alemanha.

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Durante a última Guerra Fria, essa discussão era bastante aberta, de maneira capaz de parecer chocante hoje. Konrad Adenauer, então chanceler da República Federal da Alemanha, declarou em 1957 que armas nucleares táticas — do tipo que a Rússia ameaçou usar na Ucrânia — não passavam de “mais um desenvolvimento da artilharia”. “Nós não podemos, evidentemente, prescindir delas”, afirmou ele. Durante uma reunião, em 1962, Adenauer acrescentou que a defesa de Berlim “deve ser ser feita desde o início com armas nucleares”.

Por seis décadas, os EUA ajudaram a conter esses sentimentos estacionando armamentos atômicos americanos por toda a Europa. As bombas estão lá até hoje. Mas o valor dessa dissuasão entrou em dúvida conforme Trump — publicamente e privadamente — pressionou seus conselheiros a retirar os EUA da Otan em 2018.

Na época, a equipe de segurança nacional de Trump, incluindo o ex-secretário da Defesa Jim Mattis e dois ex-conselheiros de segurança nacional sucessivos, H.R. McMaster e John Bolton, teve dificuldades para evitar que Trump sabotasse a pedra angular da estratégia europeia de defesa. Sua preocupação era que a influência americana na Europa fosse minada, e a Rússia, encorajada.

Tudo isso ocorreu, evidentemente, antes da guerra na Ucrânia. Agora, questões que soavam teóricas para os europeus — a começar por Putin estar ou não preparado para tentar retomar terras que ele acredita ser da Rússia por direito, remontando a Pedro, o Grande — parecem vívidas, talvez mortíferas.

Quando se preparava na semana passada para reunir-se com Biden em Washington, o atual chanceler alemão, Olaf Scholz, escreveu no Wall Street Journal que “uma vitória russa na Ucrânia não seria apenas o fim da Ucrânia enquanto Estado livre, democrático e independente, mas também mudaria dramaticamente a cara da Europa, (…) serviria de modelo para outros líderes autoritários em todo o planeta”.

Em Washington, Scholz enfatizou que a Alemanha se tornou o segundo maior provedor de ajuda militar para a Ucrânia e foi um dos países que apoiou a recente decisão europeia de fornecer US$ 54 bilhões ao longo dos próximos quatro anos a Kiev para a reconstrução do país.

Este ano, a Alemanha finalmente alcançará a meta de gastar o equivalente a 2% de seu produto interno bruto em defesa — estabelecida para todas as nações da Otan — anos depois de sua promessa original. Os compromissos que a Europa estabeleceu agora com a Ucrânia excedem as atuais promessas de Washington, num momento em que não está claro se os republicanos no Congresso seguirão bloqueando apoio adicional.

O chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, conversa com o primeiro-ministro da Polônia, Donald Tusk, em Berlim, Alemanha  Foto: Clemens Bilan / EFE

Trump não mencionou nada disso em suas declarações ameaçadoras no sábado, evidentemente; a Europa se fazer responsável pelo desafio e estar à altura, mesmo que tardiamente, não encaixa em sua narrativa eleitoral.

Mas o que ressoará em capitais de toda a Europa será a narrativa do que ele descreveu como um encontro com um presidente não identificado “de um grande país”.

Na anedota de Trump, o líder lhe perguntou, “Então, se nós não pagarmos e formos atacados pela Rússia, você vai nos proteger?”. E Trump recordou que respondeu: “Não, eu não vou proteger vocês. Na verdade, eu os encorajaria a fazer o que bem entendessem. Vocês têm que pagar”.

A história, considerada implausível em muitas capitais europeias, define, após 75 anos de aliança, uma Otan mais parecida a um esquema de proteção que a uma aliança.

E Trump vencendo ou não em novembro, o fato de uma visão desse tipo da Otan ter se fortalecido entre um número significativo de americanos representa uma mudança com capacidade de afetar a opinião sobre a aliança transatlântica na Europa anos a fio. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

THE NEW YORK TIMES — Muito antes de Donald Trump pronunciar, no fim de semana, a ameaça de estar disposto a deixar a Rússia fazer “o que bem entender” contra aliados da Otan que não contribuam suficientemente para a defesa coletiva, líderes europeus já discutiam nos bastidores como podem se preparar para um mundo no qual os Estados Unidos se retiram e deixam de ser o elemento central da aliança de 75 anos.

Mesmo tendo em conta a típica grandiloquência bombástica de seus comícios eleitorais, e Trump teceu essa declaração em um deles no sábado, o ex-presidente poderá agora forçar o debate na Europa a uma fase muito mais pública.

Até aqui, a discussão nos meios de comunicação europeus colocou o foco na possibilidade de Trump, se retornar à presidência, retirar os EUA da Otan.

O ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump participa de um comício de campanha em Nashua  Foto: Jabin Botsford/The Washington Post

Mas a implicação maior de sua declaração é que Trump poderá tentar o presidente da Rússia, Vladimir Putin, a escolher uma nação da Otan como alerta e lição para as outras a respeito de acatar demandas do americano.

A fala de Trump deixou muitos na Europa estarrecidos, especialmente após três anos nos quais o presidente Joe Biden, buscando restaurar a confiança na aliança perdida durante os quatro anos de Trump na presidência, afirmou repetidamente que os EUA defenderiam “cada centímetro do território da Otan”. E ainda que um porta-voz da Casa Branca, Andrew Bates, tenha qualificado os comentários de Trump como “tresloucados”, na manhã do domingo eles já haviam ressoado entre aqueles que têm argumentado que a Europa não pode depender dos EUA para dissuadir a Rússia.

Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, que reúne governos da Europa e define suas políticas em comum, escreveu que “declarações irresponsáveis” como as de Trump “servem apenas ao interesse de Putin”. Michel escreveu que os comentários do ex-presidente tornam mais urgentes os nascentes esforços da Europa no sentido de “desenvolver sua autonomia estratégica e investir em sua defesa”.

E em Berlim, Norbert Röttgen, membro da comissão de assuntos exteriores do Parlamento alemão, escreveu na plataforma de rede social X, “Todos deveriam assistir esse vídeo de #Trump para entender que a Europa logo poderá não ter outra escolha a não ser defender a si mesma”. “Qualquer outra coisa seria capitular e desistir de nós mesmos”, acrescentou ele.

O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, aponta para o lado direito após uma foto com os líderes de países membros da aliança militar em dezembro de 2019, quando Donald Trump era presidente dos Estados Unidos  Foto: Francisco Seco / AP

Toda essa dúvida deverá dominar a reunião dos ministros da Defesa dos países-membros da Otan na quinta-feira, 15, em Bruxelas, e depois a Conferência de Segurança de Munique, um encontro anual de chefes de seguranças nacionais, na sexta-feira, 16. E mesmo que a vice-presidente Kamala Harris e o secretário de Estado Antony Blinken usem, o que farão indubitavelmente, o momento para celebrar a solidariedade que tem sido crítica para manter a Ucrânia uma nação independente, dois anos após a invasão russa, qualquer declaração que eles fizerem será quase certamente recebida com dúvidas sobre o que será da aliança daqui a um ano.

De fato, essa reavaliação está em operação há meses, afirmam alguns diplomatas e ministros da Defesa europeus, apesar de terem aludido a isso em público apenas indiretamente — ou nem sequer tocado assunto.

O ministro da Defesa alemão, Boris Pistorius, começou a falar a respeito das maneiras com que a Alemanha deve se preparar para a possibilidade de décadas de conflito com a Rússia. De saída da função, o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, afirmou na semana passada que a aliança deve se preparar para um “conflito de décadas” com a Rússia.

“Qualquer sugestão de que aliados não defenderão uns aos outros mina toda a nossa segurança, incluindo dos EUA, e coloca soldados americanos e europeus em maior risco”, afirmou Stoltenberg em um comunicado, no domingo, 11. “Espero que, independentemente de quem vença a eleição presidencial, os EUA continuem um aliado da Otan forte e comprometido”, acrescentou ele, ecoando declarações feitas por membros da aliança em 2016.

O ministro da Defesa da Dinamarca, Troels Poulsen, afirmou que, em três a cinco anos, a Rússia poderá “testar” a solidariedade da Otan atacando algum de seus membros mais fracos, tentando fraturar a aliança ao demonstrar que os outros signatários não acudirão em sua defesa. “Não era essa a avaliação da Otan em 2023″, disse Poulsen ao jornal dinamarquês Jyllands-Posten, na semana passada, classificando essa informação como “nova”.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião com seu gabinete econômico em Moscou, Rússia  Foto: Alexander Kazakov / AP

Questão nuclear

No centro da questão, o debate em andamento na Europa resume-se à dúvida sobre os 31 países-membros da Otan terem a garantia de que o guarda-chuva nuclear dos EUA — a dissuasão definitiva contra uma invasão russa — seguirá sobre suas cabeças.

Reino Unido e França possuem seus próprios pequenos arsenais atômicos. Se, ao longo do próximo ano, membros da Otan vierem a duvidar de que os EUA permanecerão comprometidos com o Artigo 5.º do tratado da aliança, que declara um ataque contra um signatário um ataque contra todos, isso também quase inevitavelmente ressuscitaria o debate sobre quem mais na Europa precisar de suas próprias armas nucleares — começando pela Alemanha.

Durante a última Guerra Fria, essa discussão era bastante aberta, de maneira capaz de parecer chocante hoje. Konrad Adenauer, então chanceler da República Federal da Alemanha, declarou em 1957 que armas nucleares táticas — do tipo que a Rússia ameaçou usar na Ucrânia — não passavam de “mais um desenvolvimento da artilharia”. “Nós não podemos, evidentemente, prescindir delas”, afirmou ele. Durante uma reunião, em 1962, Adenauer acrescentou que a defesa de Berlim “deve ser ser feita desde o início com armas nucleares”.

Por seis décadas, os EUA ajudaram a conter esses sentimentos estacionando armamentos atômicos americanos por toda a Europa. As bombas estão lá até hoje. Mas o valor dessa dissuasão entrou em dúvida conforme Trump — publicamente e privadamente — pressionou seus conselheiros a retirar os EUA da Otan em 2018.

Na época, a equipe de segurança nacional de Trump, incluindo o ex-secretário da Defesa Jim Mattis e dois ex-conselheiros de segurança nacional sucessivos, H.R. McMaster e John Bolton, teve dificuldades para evitar que Trump sabotasse a pedra angular da estratégia europeia de defesa. Sua preocupação era que a influência americana na Europa fosse minada, e a Rússia, encorajada.

Tudo isso ocorreu, evidentemente, antes da guerra na Ucrânia. Agora, questões que soavam teóricas para os europeus — a começar por Putin estar ou não preparado para tentar retomar terras que ele acredita ser da Rússia por direito, remontando a Pedro, o Grande — parecem vívidas, talvez mortíferas.

Quando se preparava na semana passada para reunir-se com Biden em Washington, o atual chanceler alemão, Olaf Scholz, escreveu no Wall Street Journal que “uma vitória russa na Ucrânia não seria apenas o fim da Ucrânia enquanto Estado livre, democrático e independente, mas também mudaria dramaticamente a cara da Europa, (…) serviria de modelo para outros líderes autoritários em todo o planeta”.

Em Washington, Scholz enfatizou que a Alemanha se tornou o segundo maior provedor de ajuda militar para a Ucrânia e foi um dos países que apoiou a recente decisão europeia de fornecer US$ 54 bilhões ao longo dos próximos quatro anos a Kiev para a reconstrução do país.

Este ano, a Alemanha finalmente alcançará a meta de gastar o equivalente a 2% de seu produto interno bruto em defesa — estabelecida para todas as nações da Otan — anos depois de sua promessa original. Os compromissos que a Europa estabeleceu agora com a Ucrânia excedem as atuais promessas de Washington, num momento em que não está claro se os republicanos no Congresso seguirão bloqueando apoio adicional.

O chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, conversa com o primeiro-ministro da Polônia, Donald Tusk, em Berlim, Alemanha  Foto: Clemens Bilan / EFE

Trump não mencionou nada disso em suas declarações ameaçadoras no sábado, evidentemente; a Europa se fazer responsável pelo desafio e estar à altura, mesmo que tardiamente, não encaixa em sua narrativa eleitoral.

Mas o que ressoará em capitais de toda a Europa será a narrativa do que ele descreveu como um encontro com um presidente não identificado “de um grande país”.

Na anedota de Trump, o líder lhe perguntou, “Então, se nós não pagarmos e formos atacados pela Rússia, você vai nos proteger?”. E Trump recordou que respondeu: “Não, eu não vou proteger vocês. Na verdade, eu os encorajaria a fazer o que bem entendessem. Vocês têm que pagar”.

A história, considerada implausível em muitas capitais europeias, define, após 75 anos de aliança, uma Otan mais parecida a um esquema de proteção que a uma aliança.

E Trump vencendo ou não em novembro, o fato de uma visão desse tipo da Otan ter se fortalecido entre um número significativo de americanos representa uma mudança com capacidade de afetar a opinião sobre a aliança transatlântica na Europa anos a fio. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

THE NEW YORK TIMES — Muito antes de Donald Trump pronunciar, no fim de semana, a ameaça de estar disposto a deixar a Rússia fazer “o que bem entender” contra aliados da Otan que não contribuam suficientemente para a defesa coletiva, líderes europeus já discutiam nos bastidores como podem se preparar para um mundo no qual os Estados Unidos se retiram e deixam de ser o elemento central da aliança de 75 anos.

Mesmo tendo em conta a típica grandiloquência bombástica de seus comícios eleitorais, e Trump teceu essa declaração em um deles no sábado, o ex-presidente poderá agora forçar o debate na Europa a uma fase muito mais pública.

Até aqui, a discussão nos meios de comunicação europeus colocou o foco na possibilidade de Trump, se retornar à presidência, retirar os EUA da Otan.

O ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump participa de um comício de campanha em Nashua  Foto: Jabin Botsford/The Washington Post

Mas a implicação maior de sua declaração é que Trump poderá tentar o presidente da Rússia, Vladimir Putin, a escolher uma nação da Otan como alerta e lição para as outras a respeito de acatar demandas do americano.

A fala de Trump deixou muitos na Europa estarrecidos, especialmente após três anos nos quais o presidente Joe Biden, buscando restaurar a confiança na aliança perdida durante os quatro anos de Trump na presidência, afirmou repetidamente que os EUA defenderiam “cada centímetro do território da Otan”. E ainda que um porta-voz da Casa Branca, Andrew Bates, tenha qualificado os comentários de Trump como “tresloucados”, na manhã do domingo eles já haviam ressoado entre aqueles que têm argumentado que a Europa não pode depender dos EUA para dissuadir a Rússia.

Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, que reúne governos da Europa e define suas políticas em comum, escreveu que “declarações irresponsáveis” como as de Trump “servem apenas ao interesse de Putin”. Michel escreveu que os comentários do ex-presidente tornam mais urgentes os nascentes esforços da Europa no sentido de “desenvolver sua autonomia estratégica e investir em sua defesa”.

E em Berlim, Norbert Röttgen, membro da comissão de assuntos exteriores do Parlamento alemão, escreveu na plataforma de rede social X, “Todos deveriam assistir esse vídeo de #Trump para entender que a Europa logo poderá não ter outra escolha a não ser defender a si mesma”. “Qualquer outra coisa seria capitular e desistir de nós mesmos”, acrescentou ele.

O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, aponta para o lado direito após uma foto com os líderes de países membros da aliança militar em dezembro de 2019, quando Donald Trump era presidente dos Estados Unidos  Foto: Francisco Seco / AP

Toda essa dúvida deverá dominar a reunião dos ministros da Defesa dos países-membros da Otan na quinta-feira, 15, em Bruxelas, e depois a Conferência de Segurança de Munique, um encontro anual de chefes de seguranças nacionais, na sexta-feira, 16. E mesmo que a vice-presidente Kamala Harris e o secretário de Estado Antony Blinken usem, o que farão indubitavelmente, o momento para celebrar a solidariedade que tem sido crítica para manter a Ucrânia uma nação independente, dois anos após a invasão russa, qualquer declaração que eles fizerem será quase certamente recebida com dúvidas sobre o que será da aliança daqui a um ano.

De fato, essa reavaliação está em operação há meses, afirmam alguns diplomatas e ministros da Defesa europeus, apesar de terem aludido a isso em público apenas indiretamente — ou nem sequer tocado assunto.

O ministro da Defesa alemão, Boris Pistorius, começou a falar a respeito das maneiras com que a Alemanha deve se preparar para a possibilidade de décadas de conflito com a Rússia. De saída da função, o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, afirmou na semana passada que a aliança deve se preparar para um “conflito de décadas” com a Rússia.

“Qualquer sugestão de que aliados não defenderão uns aos outros mina toda a nossa segurança, incluindo dos EUA, e coloca soldados americanos e europeus em maior risco”, afirmou Stoltenberg em um comunicado, no domingo, 11. “Espero que, independentemente de quem vença a eleição presidencial, os EUA continuem um aliado da Otan forte e comprometido”, acrescentou ele, ecoando declarações feitas por membros da aliança em 2016.

O ministro da Defesa da Dinamarca, Troels Poulsen, afirmou que, em três a cinco anos, a Rússia poderá “testar” a solidariedade da Otan atacando algum de seus membros mais fracos, tentando fraturar a aliança ao demonstrar que os outros signatários não acudirão em sua defesa. “Não era essa a avaliação da Otan em 2023″, disse Poulsen ao jornal dinamarquês Jyllands-Posten, na semana passada, classificando essa informação como “nova”.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião com seu gabinete econômico em Moscou, Rússia  Foto: Alexander Kazakov / AP

Questão nuclear

No centro da questão, o debate em andamento na Europa resume-se à dúvida sobre os 31 países-membros da Otan terem a garantia de que o guarda-chuva nuclear dos EUA — a dissuasão definitiva contra uma invasão russa — seguirá sobre suas cabeças.

Reino Unido e França possuem seus próprios pequenos arsenais atômicos. Se, ao longo do próximo ano, membros da Otan vierem a duvidar de que os EUA permanecerão comprometidos com o Artigo 5.º do tratado da aliança, que declara um ataque contra um signatário um ataque contra todos, isso também quase inevitavelmente ressuscitaria o debate sobre quem mais na Europa precisar de suas próprias armas nucleares — começando pela Alemanha.

Durante a última Guerra Fria, essa discussão era bastante aberta, de maneira capaz de parecer chocante hoje. Konrad Adenauer, então chanceler da República Federal da Alemanha, declarou em 1957 que armas nucleares táticas — do tipo que a Rússia ameaçou usar na Ucrânia — não passavam de “mais um desenvolvimento da artilharia”. “Nós não podemos, evidentemente, prescindir delas”, afirmou ele. Durante uma reunião, em 1962, Adenauer acrescentou que a defesa de Berlim “deve ser ser feita desde o início com armas nucleares”.

Por seis décadas, os EUA ajudaram a conter esses sentimentos estacionando armamentos atômicos americanos por toda a Europa. As bombas estão lá até hoje. Mas o valor dessa dissuasão entrou em dúvida conforme Trump — publicamente e privadamente — pressionou seus conselheiros a retirar os EUA da Otan em 2018.

Na época, a equipe de segurança nacional de Trump, incluindo o ex-secretário da Defesa Jim Mattis e dois ex-conselheiros de segurança nacional sucessivos, H.R. McMaster e John Bolton, teve dificuldades para evitar que Trump sabotasse a pedra angular da estratégia europeia de defesa. Sua preocupação era que a influência americana na Europa fosse minada, e a Rússia, encorajada.

Tudo isso ocorreu, evidentemente, antes da guerra na Ucrânia. Agora, questões que soavam teóricas para os europeus — a começar por Putin estar ou não preparado para tentar retomar terras que ele acredita ser da Rússia por direito, remontando a Pedro, o Grande — parecem vívidas, talvez mortíferas.

Quando se preparava na semana passada para reunir-se com Biden em Washington, o atual chanceler alemão, Olaf Scholz, escreveu no Wall Street Journal que “uma vitória russa na Ucrânia não seria apenas o fim da Ucrânia enquanto Estado livre, democrático e independente, mas também mudaria dramaticamente a cara da Europa, (…) serviria de modelo para outros líderes autoritários em todo o planeta”.

Em Washington, Scholz enfatizou que a Alemanha se tornou o segundo maior provedor de ajuda militar para a Ucrânia e foi um dos países que apoiou a recente decisão europeia de fornecer US$ 54 bilhões ao longo dos próximos quatro anos a Kiev para a reconstrução do país.

Este ano, a Alemanha finalmente alcançará a meta de gastar o equivalente a 2% de seu produto interno bruto em defesa — estabelecida para todas as nações da Otan — anos depois de sua promessa original. Os compromissos que a Europa estabeleceu agora com a Ucrânia excedem as atuais promessas de Washington, num momento em que não está claro se os republicanos no Congresso seguirão bloqueando apoio adicional.

O chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, conversa com o primeiro-ministro da Polônia, Donald Tusk, em Berlim, Alemanha  Foto: Clemens Bilan / EFE

Trump não mencionou nada disso em suas declarações ameaçadoras no sábado, evidentemente; a Europa se fazer responsável pelo desafio e estar à altura, mesmo que tardiamente, não encaixa em sua narrativa eleitoral.

Mas o que ressoará em capitais de toda a Europa será a narrativa do que ele descreveu como um encontro com um presidente não identificado “de um grande país”.

Na anedota de Trump, o líder lhe perguntou, “Então, se nós não pagarmos e formos atacados pela Rússia, você vai nos proteger?”. E Trump recordou que respondeu: “Não, eu não vou proteger vocês. Na verdade, eu os encorajaria a fazer o que bem entendessem. Vocês têm que pagar”.

A história, considerada implausível em muitas capitais europeias, define, após 75 anos de aliança, uma Otan mais parecida a um esquema de proteção que a uma aliança.

E Trump vencendo ou não em novembro, o fato de uma visão desse tipo da Otan ter se fortalecido entre um número significativo de americanos representa uma mudança com capacidade de afetar a opinião sobre a aliança transatlântica na Europa anos a fio. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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