Ruído sobre Ucrânia se dissipou, mas Brasil e EUA não concordarão sempre, diz embaixadora de Lula


Maria Luiza Viotti afirma que Brasil não vai se engajar em esforço militar no Haiti, como deseja o governo Joe Biden; com passagens por Berlim e Nações Unidas, diplomata será a primeira mulher a chefiar embaixada em Washignton e diz que momento ‘chega com atraso’

Por Felipe Frazão
Atualização:
Foto: WILTON JUNIOR
Entrevista comMaria Luiza ViottiEmbaixadora do Brasil em Washington

BRASÍLIA - A nova embaixadora do Brasil em Washington, Maria Luiza Ribeiro Viotti, afirmou que os ruídos provocados por declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a respeito da guerra na Ucrânia já se dissiparam. Em entrevista exclusiva ao Estadão, ela relatou que após as falas de Lula houve contatos de alto nível para esclarecimentos. As explicações foram cobradas pela Casa Branca. O presidente imputara responsabilidades aos Estados Unidos, União Europeia e Ucrânia pelo prolongamento do conflito com a Rússia.

Indicada por Lula e recém-aprovada pelo Senado Federal, Viotti será a primeira mulher a chefiar a representação brasileira na capital dos EUA, a mais prestigiada do serviço exterior, em quase 200 anos de relações diplomáticas. Para a embaixadora, a vez de uma diplomata “chegou com atraso”.

Viotti afirmou que viu sinais, dos senadores norte-americanos, de que o país deverá mobilizar ainda mais recursos do que os prometidos U$ 500 milhões do governo para a proteção da Amazônia. O presidente Joe Biden ainda não teve aval do Congresso para efetivar as primeiras contribuições prometidas ao Fundo Amazônia.

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A nova embaixadora também disse que, apesar dos apelos do governo Biden, o Brasil rejeitou a proposta de que se engajasse novamente em uma estudada operação militar no Haiti.

Ao longo da carreira diplomática, iniciada em 1975 no Instituto Rio Branco, Viotti foi embaixadora em Berlim, na Alemanha, representante do Brasil nas Nações Unidas, em Nova York, e chefe-de-gabinete do secretário-geral da ONU, António Guterres.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

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É inevitável que os EUA pressionem para que o Brasil siga a mesma posição deles a respeito da guerra na Ucrânia, vide as seguidas reações manifestando decepção com declarações de Lula sobre o “incentivo” ao conflito, após a visita do chanceler russo Serguei Lavrov a Brasília e do embaixador Celso Amorim a Vladimir Putin em Moscou. Como lidar com isso?

Se houve algum ruído na comunicação, isso já se dissipou. Depois da visita do presidente à China, houve uma série de contatos entre o ministro Mauro Vieira e seu homólogo, entre o embaixador Celso Amorim e seu homólogo norte-americano também. As posições brasileiras puderam ser esclarecidas. Temos uma posição muito clara. Condenamos a invasão da Ucrânia, como não poderia deixar de ser, porque é uma violação do direito internacional e da Carta da ONU, mas ao mesmo tempo temos insistido muito na importância de um esforço na direção da paz. Essa nossa insistência nas negociações diplomáticas no momento em que os EUA e outros interlocutores estão muito investidos no apoio militar à Ucrânia tem às vezes gerado a interpretação de que nós estamos tomando partido, o que não é o caso.

A embaixadora Linda Thomas-Greenfield disse em Brasília que as negociações sugeridas pelo governo brasileiro não poderiam recompensar a Rússia.

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Como resultado dessa interlocução, desses contatos nossa posição ficou clara. Há uma compreensão para o fato de que o Brasil ao falar de paz não está procurando ofender ninguém, não está procurando tomar lado, está apenas sendo fiel a suas tradições diplomáticas e seus interesses. A guerra está tento custo altíssimo, em primeiro lugar em vidas humanas, em destruição de cidades inteiras, infraestrutura, deslocamento de populações, impacto indireto na economia mundial, aumento da inflação, problemas de disponibilidade de grãos e alimentos. É preciso levar tudo isso em conta. E há o risco de uma escalada, que ninguém quer, mas há esse risco. Passamos a ter de novo algo que parecia plenamente afastado: o fantasma de um conflito que tenha o componente de armas nucleares.

As declarações de Lula não causaram danos?

Não vejo. Continuamos a ter contatos normais, visitas de alto nível, consultas da embaixadora Maria Laura da Rocha (secretária-geral do Itamaraty, em viagem a Washington) positivas, em clima afável e muito cordial.

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Como reagir no caso respostas como a de um funcionário da Casa Branca, em tom pouco diplomático, que comparou o presidente Lula à figura de um papagaio repetidor de propaganda russa?

O importante é manter sempre o diálogo, poder esclarecer nossas posições. Há uma compreensão para o fato de que o Brasil nem sempre vai concordar, ter uma identidade de posições com os EUA e isso é normal numa relação entre dois países soberanos, com seus próprios interesses. É natural que não haja uma identidade perfeita de posições.

Os EUA esperavam que o governo Lula fosse muito mais vocal na defesa de liberdades e da democracia na nossa região. Refiro-me à situação na Venezuela, na Nicarágua e Cuba. Até pelo papel que os EUA desempenharam quando houve tentativa de golpe de Estado no 8 de janeiro.

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Não tenho essa impressão. Ao contrário, o governo norte-americano está procurando o Brasil para conversar sobre as questões da nossa região com espírito aberto e valorizando muito a possibilidade de influência que o Brasil tem no sentido de estabilidade da região. Temos uma forma de diálogo diferente de um país como os EUA em relação a nossos vizinhos.

As relações entre Brasil e EUA completam 200 anos em 2024. Qual o futuro desse relacionamento, na nova configuração global que toma forma?

Estamos num momento muito estimulante, porque são relações que muito sólidas, consolidadas e com substrato muito importante, conteúdo econômico comercial muito forte, mas ainda assim uma disposição muito favorável dos dois lados a fazer essa relação crescer e se dinamizar. A visita do presidente Lula Washington relançou as relações em alto nível e houve uma sintonia muito boa entre os dois líderes sobre a importância de se retomar um diálogo estreito e de se retomar a cooperação em áreas críticas, como são o meio ambiente, mudança do clima, comércio e investimentos, Direitos Humanos, fortalecimento da Democracia.

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Biden aceitou um convite de Lula para visitar o Brasil. Qual a perspectiva de ocorrer neste ano ou apenas no ano que vem?

Nós retomamos o assunto durante as consultas que houve nesta semana em Washington, da secretária-geral, embaixadora Maria Laura da Rocha, com a sua homóloga, Wendy Sherman. Vamos dar prosseguimento a esses contatos para procurar definir datas. Não há ainda uma indicação de quando essa visita pode ocorrer.

Na visita foi negociado o ingresso no Fundo Amazônia. O aporte inicial tímido, de U$ 50 milhões, virou de U$ 500 milhões ao longo de cinco anos. A senhora vê riscos de que republicanos bloqueiem a doação no Congresso? O que pretende fazer para que se concretize e para que não seja isolada, mas que novos aportes ocorram?

Há indicações interessantes nesse sentido, dadas durante uma audiência pública que se realizou no Senado norte-americano, em março. Esse tema foi levantado e houve uma pergunta do senador Robert Menéndez sobre o que o governo norte-americano estaria fazendo para apoiar os esforços do Brasil na Amazônia, e cobrou, de certa maneira, um aporte maior pelo próprio governo norte-americano. Foi quando eu vi uma resposta que falava em mobilizar filantropia, doações e outros países para contribuir para o Fundo Amazônia. Havia uma disposição quase unânime em relação a essa importância de apoiar o Brasil e de fazerem contribuições mais substantivas, mais expressivas. E o papel da embaixada será de fazer um esforço para convencê-los e fornecer argumentos e informações. A embaixada atuará junto ao Congresso americano para procurar fazer com que ocorra e se agilize.

O Brasil precisa dar alguma resposta, apresentar números mais efetivos de redução do desmatamento, o que ainda não ocorreu no atual governo?

O que estamos fazendo é dar uma demonstração concreta de nosso compromisso em acabar com o desmatamento ilegal e de promover o reflorestamento de áreas degradadas. Isso deve constar do plano que está sendo elaborado pela ministra Marina Silva, o plano de controle do desmatamento. O Itamaraty atuará muito em coordenação com o Ministério do Meio Ambiente para fornecer todas as informações. Há um grupo de trabalho que vai se reunir também periodicamente, então a impressão que eu tenho é que haverá uma comunicação muito constante e muito transparente com o governo norte-americano sobre os progressos que nós esperamos fazer ao longo do tempo.

Na campanha, Biden falou em cifras muito mais vultosas, em U$ 20 bilhões, e até em consequências econômicas se a destruição da floresta não cessasse. As cifras ainda não atingiram esse patamar. E o tom, mudou? Era retórica eleitoral?

Mudou em função do compromisso do governo atual com o combate ao desmatamento e com medidas de recuperação de áreas degradadas e isso é algo que o governo atual tem credibilidade para para dizer porque já foi feito no passado. Então eu acho que com base nessas nesse compromisso, já um tom diferente e à medida que evoluam as nossas atividades e políticas nessa área, minha impressão é que virá ainda mais apoio.

Qual a perspectiva de mudar ou extinguir a tarifação do aço brasileiro vigente desde 2018, no governo Donald Trump, em 25% e com cotas de exportação para acessar o mercado norte-americano?

Houve uma decisão de impor restrições às importações do aço e isso prejudicou muito a posição do Brasil no mercado norte-americano. Vamos continuar a nos empenhar para que essas restrições sejam eliminadas e um aspecto importante é demonstrar que o aço brasileiro não concorre com o aço norte-americano, porque nós exportamos semi manufaturados e isso é necessário para a produção do aço final nos Estados Unidos. Precisamos continuar a fazer esforço ampliando, talvez, a rede de contatos, não só no Congresso, mas em outras áreas também, falando com os governos estaduais. Sem dúvida é parte da prioridade da embaixada.

Houve algum sinal recente de possível alteração desse cenário?

Ainda não. Vamos ter que fazer um esforço adicional e continuar a insistir para que possamos ter um resultado nessa área.

A situação de segurança interna do Haiti é considerada muito grave e é tema de conversas sobre uma nova operação no país. Qual a proposta dos EUA e o governo brasileiro está disposto a fazer?

Os americanos, como nós, estão muito preocupados com a situação atual do Haiti, é uma situação muito delicada em matéria de segurança, e há também uma situação política muito difícil. Os americanos estão explorando a possibilidade de uma Força Regional. Seria uma força de países interessados, mas sem passar pelas Nações Unidas. Aparentemente não há ainda um consenso no âmbito do Conselho de Segurança sobre a possibilidade de uma Força de Paz, então seria uma força que envolveria países como Canadá e outros da região que pudessem se interessarem em enviar tropas para conter essa situação de segurança que prejudica tanto o Haiti.

Estão também discutindo a possibilidade de uma nova operação de paz das Nações Unidas. Não tem havido ainda uma evolução nessas nessas duas propostas. Nós temos trocado ideias com eles, eles têm nos perguntado como o Brasil pretende atuar em relação ao Haiti. A nossa prioridade nesse momento é atuar através do fortalecimento da nossa cooperação técnica, que tem sido muito importante na áreas de saúde e de infraestrutura. Temos feito uma série de projetos com os haitianos, mas não vemos a possibilidade de nos envolvermos com participação numa eventual Força de Paz da ONU ou numa Força Regional.

Eles queriam novamente a liderança brasileira numa força militar ou só a participação?

Nos perguntaram sobre ambas possibilidades, mas no momento o Brasil não está convencido de que nós possamos mais uma vez contribuir com tropas para esse esforço de segurança. É importante encontrar uma solução para o problema de segurança, mas não achamos que o Brasil pode nesse momento dar essa contribuição.

Os EUA terão eleições em 2024. Biden lançou a candidatura à reeleição. E Trump deseja voltar, disputa a preferência no Partido Republicano. Qual cenário a senhora enxerga?

É muito difícil antever o que pode acontecer. Vai ser uma campanha muito interessante, mas muito marcada por essas divisões. Caberá à embaixada um diálogo com as diversas forças políticas e um acompanhamento muito direto da evolução da campanha. Trump é um forte candidato dentro do Partido Republicano, mas há outras figuras surgindo. Então é preciso esperar e acompanhar para ver o que vai acontecer.

Como a embaixada pode auxiliar no diálogo com as grandes empresas de tecnologia norte-americanas, as Big Techs, que discutem com o governo brasileiro e resistem a mudanças na legislação, regulação nas mídias sociais, mesmo diante de uma realidade comum aos países de crimes de ódio e aumento de ataques em escolas?

Temos preocupações compartilhadas e esse assunto surgiu na conversa entre os líderes. Houve uma disposição de continuarmos a conversar sobre isso, trocar informações, enfrentar essa questão da desinformação e do discurso de ódio que foi tão prejudicial. É uma preocupação por toda a parte. Foi interessante ver que o ex-CEO da ChatGPT expressou uma opinião muito favorável à regulamentação da inteligência artificial. Na ONU há também um debate sobre a importância de atuação nesse sentido, uma discussão multilateral que possa fortalecer os benefícios advindos das mídias sociais e dessas novas tecnologias de informação e ao mesmo tempo procurar mitigar um pouco os riscos de efeitos nocivos para a sociedade. Não sei se tem havido, mas é natural que haja um diálogo com as empresas, procurar entender as perspectivas, as possibilidades de que essas empresas assumam algum grau de responsabilidade pelo que possam causar de efeitos na sociedade.

A ascensão feminina à embaixada brasileira em Washington é histórica. Como a senhora recebeu a indicação e qual sua perspectiva de exercer o protagonismo?

Foi um convite do ministro Mauro Vieira. Eu me senti muito honrada com esse convite porque a designação para uma embaixada importante é altamente honrosa para qualquer diplomata, homem ou mulher. Eu também me sinto muito honrada com fato de que pela primeira vez uma mulher seja designada. É de fato algo que pode ser considerado um marco e o que se poderia dizer é que chega com algum atraso, porque não será por falta de mulheres capacitadas que isso não ocorreu antes. O governo atual e atual chefia do Itamaraty estão muito comprometidos com igualdade de gênero e têm dado demonstrações muito claras nesse sentido. Pela primeira vez temos uma secretária geral, entre as altas chefias do Itamaraty três estão sendo ocupadas por mulheres nesse momento, haverá outras designações de diplomatas mulheres. Estamos no caminho certo. É preciso fazer mais, naturalmente.

Os números da Associação de Mulheres Diplomatas do Brasil indicam 31 homens e 4 mulheres designados pelo governo, englobando missões, consulados e embaixadas. Não é tímido?

Haverá novas indicações de mulheres para posto impostos importantes, postos A. Nós não podemos parar por aí, precisamos avançar mais. O ministro já indicou uma série de medidas que vão ser tomadas, tem a promoção do ingresso de mulheres na carreira para aumentar a participação das mulheres no serviço exterior. O que nós precisamos é, não só no Itamaraty, mas no Brasil como um todo, que haja mais mulheres em posição de liderança e de chefia para que chegue logo o momento em que o fato de haver mulheres nessas posições não seja visto como algo excepcional e sim como algo normal, como deve ser.

O que pretende fazer relacionado à questão de gênero na embaixada?

Vou olhar para essa questão com toda atenção, assim que surgirem novas vagas, eu vou examinar com todo o interesse candidaturas femininas. Tive uma experiência muito boa nos meus dois postos anteriores, tanto na missão junto à ONU quanto na embaixada em Berlim, com a participação de mulheres. Tive a possibilidade de contar com duas mulheres como número dois nesses dois postos. O que foi muito muito gratificante para mim. Farei tudo farei para, também na embaixada em Washington, para aumentar a participação feminina.

Como avalia as cobranças sobre o ministro para cumprir as promessas de ampliar o espaço das mulheres?

Acho que é o papel da associação reivindicar e reivindicar com uma certa aspiração maximalista e isso vai contribuir para que a situação avance e que avance com mais celeridade.

No cenário de tensões entre nossos dois parceiros principais, China e EUA, o que podemos explorar da relação com os norte-americanos, diante de tantos acenos chineses na viagem presidencial e da liderança na relação comercial com o Brasil?

Essa disputa estratégica geopolítica é um dos traços marcantes do cenário internacional atualmente, mas não devemos ver as relações Brasil-EUA nesse contexto apenas. Os norte-americanos têm olhado para o Brasil com com grande interesse e mostrado uma disposição muito grande de fazer avançar a nossa cooperação e os Estados Unidos estão em condições de oferecer muito para os nossos esforços de desenvolvimento, de crescimento com inclusão social e com sustentabilidade.

Com o fim da política migratória que permitia deportações sumárias, como pretende dialogar com o governo a respeito dos brasileiros que ingressam ilegalmente nos EUA, tendo em vista que números recorde foram registrados recentemente - 80 mil em 2021?

O que a embaixada continua fazendo é atuar por intermédio dos consulados, na verdade, na fronteira que dão assistência a esses brasileiros que são foram detidos. Vamos dar toda assistência, procurar ver de que maneira podemos apoiá-los, mas são importantes também as campanhas públicas para alertar as populações sobre os riscos dessa travessia irregular. Se surgir necessidade de um diálogo à luz da evolução dessa situação com o governo americano isso será feito isso.

A realidade do fluxo migratório pode mudar e se tornar um problema maior?

Aparentemente o grande fluxo que era esperado em função dessa alteração da política não se concretizou ainda, né? Temos que avaliar à medida que o assunto evoluir.

Nós vimos nos últimos anos algo ligado a essas detenções na fronteira, que eram dezenas de voos de deportação, em condições questionáveis, com cidadãos brasileiros algemados? O governo passado autorizou, algo que durante muito tempo não ocorreu. Isso será mantido e aceito?

O Brasil aceitou esses voos porque considerou que era melhor que houvesse a deportação desses brasileiros que estavam detidos com uma ordem formal de deportação e sempre perspectiva de que isso se alterasse, para evitar uma detenção muito prolongada, muitas vezes envolvendo menores e em situações também pouco adequadas no centro de detenção. Foi por isso que foi tomada decisão de aceitar esses voos. Vamos continuar a insistir com o lado americano para que não haja esse procedimento de utilização de algemas porque é alguma coisa que fere muito a dignidade dessas pessoas e nós vamos continuar a insistir que haja um tratamento digno no caso desses voos de deportação.

Os voos continuam chegando no Brasil?

Não tenho informação de novos voos.

BRASÍLIA - A nova embaixadora do Brasil em Washington, Maria Luiza Ribeiro Viotti, afirmou que os ruídos provocados por declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a respeito da guerra na Ucrânia já se dissiparam. Em entrevista exclusiva ao Estadão, ela relatou que após as falas de Lula houve contatos de alto nível para esclarecimentos. As explicações foram cobradas pela Casa Branca. O presidente imputara responsabilidades aos Estados Unidos, União Europeia e Ucrânia pelo prolongamento do conflito com a Rússia.

Indicada por Lula e recém-aprovada pelo Senado Federal, Viotti será a primeira mulher a chefiar a representação brasileira na capital dos EUA, a mais prestigiada do serviço exterior, em quase 200 anos de relações diplomáticas. Para a embaixadora, a vez de uma diplomata “chegou com atraso”.

Viotti afirmou que viu sinais, dos senadores norte-americanos, de que o país deverá mobilizar ainda mais recursos do que os prometidos U$ 500 milhões do governo para a proteção da Amazônia. O presidente Joe Biden ainda não teve aval do Congresso para efetivar as primeiras contribuições prometidas ao Fundo Amazônia.

A nova embaixadora também disse que, apesar dos apelos do governo Biden, o Brasil rejeitou a proposta de que se engajasse novamente em uma estudada operação militar no Haiti.

Ao longo da carreira diplomática, iniciada em 1975 no Instituto Rio Branco, Viotti foi embaixadora em Berlim, na Alemanha, representante do Brasil nas Nações Unidas, em Nova York, e chefe-de-gabinete do secretário-geral da ONU, António Guterres.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

É inevitável que os EUA pressionem para que o Brasil siga a mesma posição deles a respeito da guerra na Ucrânia, vide as seguidas reações manifestando decepção com declarações de Lula sobre o “incentivo” ao conflito, após a visita do chanceler russo Serguei Lavrov a Brasília e do embaixador Celso Amorim a Vladimir Putin em Moscou. Como lidar com isso?

Se houve algum ruído na comunicação, isso já se dissipou. Depois da visita do presidente à China, houve uma série de contatos entre o ministro Mauro Vieira e seu homólogo, entre o embaixador Celso Amorim e seu homólogo norte-americano também. As posições brasileiras puderam ser esclarecidas. Temos uma posição muito clara. Condenamos a invasão da Ucrânia, como não poderia deixar de ser, porque é uma violação do direito internacional e da Carta da ONU, mas ao mesmo tempo temos insistido muito na importância de um esforço na direção da paz. Essa nossa insistência nas negociações diplomáticas no momento em que os EUA e outros interlocutores estão muito investidos no apoio militar à Ucrânia tem às vezes gerado a interpretação de que nós estamos tomando partido, o que não é o caso.

A embaixadora Linda Thomas-Greenfield disse em Brasília que as negociações sugeridas pelo governo brasileiro não poderiam recompensar a Rússia.

Como resultado dessa interlocução, desses contatos nossa posição ficou clara. Há uma compreensão para o fato de que o Brasil ao falar de paz não está procurando ofender ninguém, não está procurando tomar lado, está apenas sendo fiel a suas tradições diplomáticas e seus interesses. A guerra está tento custo altíssimo, em primeiro lugar em vidas humanas, em destruição de cidades inteiras, infraestrutura, deslocamento de populações, impacto indireto na economia mundial, aumento da inflação, problemas de disponibilidade de grãos e alimentos. É preciso levar tudo isso em conta. E há o risco de uma escalada, que ninguém quer, mas há esse risco. Passamos a ter de novo algo que parecia plenamente afastado: o fantasma de um conflito que tenha o componente de armas nucleares.

As declarações de Lula não causaram danos?

Não vejo. Continuamos a ter contatos normais, visitas de alto nível, consultas da embaixadora Maria Laura da Rocha (secretária-geral do Itamaraty, em viagem a Washington) positivas, em clima afável e muito cordial.

Como reagir no caso respostas como a de um funcionário da Casa Branca, em tom pouco diplomático, que comparou o presidente Lula à figura de um papagaio repetidor de propaganda russa?

O importante é manter sempre o diálogo, poder esclarecer nossas posições. Há uma compreensão para o fato de que o Brasil nem sempre vai concordar, ter uma identidade de posições com os EUA e isso é normal numa relação entre dois países soberanos, com seus próprios interesses. É natural que não haja uma identidade perfeita de posições.

Os EUA esperavam que o governo Lula fosse muito mais vocal na defesa de liberdades e da democracia na nossa região. Refiro-me à situação na Venezuela, na Nicarágua e Cuba. Até pelo papel que os EUA desempenharam quando houve tentativa de golpe de Estado no 8 de janeiro.

Não tenho essa impressão. Ao contrário, o governo norte-americano está procurando o Brasil para conversar sobre as questões da nossa região com espírito aberto e valorizando muito a possibilidade de influência que o Brasil tem no sentido de estabilidade da região. Temos uma forma de diálogo diferente de um país como os EUA em relação a nossos vizinhos.

As relações entre Brasil e EUA completam 200 anos em 2024. Qual o futuro desse relacionamento, na nova configuração global que toma forma?

Estamos num momento muito estimulante, porque são relações que muito sólidas, consolidadas e com substrato muito importante, conteúdo econômico comercial muito forte, mas ainda assim uma disposição muito favorável dos dois lados a fazer essa relação crescer e se dinamizar. A visita do presidente Lula Washington relançou as relações em alto nível e houve uma sintonia muito boa entre os dois líderes sobre a importância de se retomar um diálogo estreito e de se retomar a cooperação em áreas críticas, como são o meio ambiente, mudança do clima, comércio e investimentos, Direitos Humanos, fortalecimento da Democracia.

Biden aceitou um convite de Lula para visitar o Brasil. Qual a perspectiva de ocorrer neste ano ou apenas no ano que vem?

Nós retomamos o assunto durante as consultas que houve nesta semana em Washington, da secretária-geral, embaixadora Maria Laura da Rocha, com a sua homóloga, Wendy Sherman. Vamos dar prosseguimento a esses contatos para procurar definir datas. Não há ainda uma indicação de quando essa visita pode ocorrer.

Na visita foi negociado o ingresso no Fundo Amazônia. O aporte inicial tímido, de U$ 50 milhões, virou de U$ 500 milhões ao longo de cinco anos. A senhora vê riscos de que republicanos bloqueiem a doação no Congresso? O que pretende fazer para que se concretize e para que não seja isolada, mas que novos aportes ocorram?

Há indicações interessantes nesse sentido, dadas durante uma audiência pública que se realizou no Senado norte-americano, em março. Esse tema foi levantado e houve uma pergunta do senador Robert Menéndez sobre o que o governo norte-americano estaria fazendo para apoiar os esforços do Brasil na Amazônia, e cobrou, de certa maneira, um aporte maior pelo próprio governo norte-americano. Foi quando eu vi uma resposta que falava em mobilizar filantropia, doações e outros países para contribuir para o Fundo Amazônia. Havia uma disposição quase unânime em relação a essa importância de apoiar o Brasil e de fazerem contribuições mais substantivas, mais expressivas. E o papel da embaixada será de fazer um esforço para convencê-los e fornecer argumentos e informações. A embaixada atuará junto ao Congresso americano para procurar fazer com que ocorra e se agilize.

O Brasil precisa dar alguma resposta, apresentar números mais efetivos de redução do desmatamento, o que ainda não ocorreu no atual governo?

O que estamos fazendo é dar uma demonstração concreta de nosso compromisso em acabar com o desmatamento ilegal e de promover o reflorestamento de áreas degradadas. Isso deve constar do plano que está sendo elaborado pela ministra Marina Silva, o plano de controle do desmatamento. O Itamaraty atuará muito em coordenação com o Ministério do Meio Ambiente para fornecer todas as informações. Há um grupo de trabalho que vai se reunir também periodicamente, então a impressão que eu tenho é que haverá uma comunicação muito constante e muito transparente com o governo norte-americano sobre os progressos que nós esperamos fazer ao longo do tempo.

Na campanha, Biden falou em cifras muito mais vultosas, em U$ 20 bilhões, e até em consequências econômicas se a destruição da floresta não cessasse. As cifras ainda não atingiram esse patamar. E o tom, mudou? Era retórica eleitoral?

Mudou em função do compromisso do governo atual com o combate ao desmatamento e com medidas de recuperação de áreas degradadas e isso é algo que o governo atual tem credibilidade para para dizer porque já foi feito no passado. Então eu acho que com base nessas nesse compromisso, já um tom diferente e à medida que evoluam as nossas atividades e políticas nessa área, minha impressão é que virá ainda mais apoio.

Qual a perspectiva de mudar ou extinguir a tarifação do aço brasileiro vigente desde 2018, no governo Donald Trump, em 25% e com cotas de exportação para acessar o mercado norte-americano?

Houve uma decisão de impor restrições às importações do aço e isso prejudicou muito a posição do Brasil no mercado norte-americano. Vamos continuar a nos empenhar para que essas restrições sejam eliminadas e um aspecto importante é demonstrar que o aço brasileiro não concorre com o aço norte-americano, porque nós exportamos semi manufaturados e isso é necessário para a produção do aço final nos Estados Unidos. Precisamos continuar a fazer esforço ampliando, talvez, a rede de contatos, não só no Congresso, mas em outras áreas também, falando com os governos estaduais. Sem dúvida é parte da prioridade da embaixada.

Houve algum sinal recente de possível alteração desse cenário?

Ainda não. Vamos ter que fazer um esforço adicional e continuar a insistir para que possamos ter um resultado nessa área.

A situação de segurança interna do Haiti é considerada muito grave e é tema de conversas sobre uma nova operação no país. Qual a proposta dos EUA e o governo brasileiro está disposto a fazer?

Os americanos, como nós, estão muito preocupados com a situação atual do Haiti, é uma situação muito delicada em matéria de segurança, e há também uma situação política muito difícil. Os americanos estão explorando a possibilidade de uma Força Regional. Seria uma força de países interessados, mas sem passar pelas Nações Unidas. Aparentemente não há ainda um consenso no âmbito do Conselho de Segurança sobre a possibilidade de uma Força de Paz, então seria uma força que envolveria países como Canadá e outros da região que pudessem se interessarem em enviar tropas para conter essa situação de segurança que prejudica tanto o Haiti.

Estão também discutindo a possibilidade de uma nova operação de paz das Nações Unidas. Não tem havido ainda uma evolução nessas nessas duas propostas. Nós temos trocado ideias com eles, eles têm nos perguntado como o Brasil pretende atuar em relação ao Haiti. A nossa prioridade nesse momento é atuar através do fortalecimento da nossa cooperação técnica, que tem sido muito importante na áreas de saúde e de infraestrutura. Temos feito uma série de projetos com os haitianos, mas não vemos a possibilidade de nos envolvermos com participação numa eventual Força de Paz da ONU ou numa Força Regional.

Eles queriam novamente a liderança brasileira numa força militar ou só a participação?

Nos perguntaram sobre ambas possibilidades, mas no momento o Brasil não está convencido de que nós possamos mais uma vez contribuir com tropas para esse esforço de segurança. É importante encontrar uma solução para o problema de segurança, mas não achamos que o Brasil pode nesse momento dar essa contribuição.

Os EUA terão eleições em 2024. Biden lançou a candidatura à reeleição. E Trump deseja voltar, disputa a preferência no Partido Republicano. Qual cenário a senhora enxerga?

É muito difícil antever o que pode acontecer. Vai ser uma campanha muito interessante, mas muito marcada por essas divisões. Caberá à embaixada um diálogo com as diversas forças políticas e um acompanhamento muito direto da evolução da campanha. Trump é um forte candidato dentro do Partido Republicano, mas há outras figuras surgindo. Então é preciso esperar e acompanhar para ver o que vai acontecer.

Como a embaixada pode auxiliar no diálogo com as grandes empresas de tecnologia norte-americanas, as Big Techs, que discutem com o governo brasileiro e resistem a mudanças na legislação, regulação nas mídias sociais, mesmo diante de uma realidade comum aos países de crimes de ódio e aumento de ataques em escolas?

Temos preocupações compartilhadas e esse assunto surgiu na conversa entre os líderes. Houve uma disposição de continuarmos a conversar sobre isso, trocar informações, enfrentar essa questão da desinformação e do discurso de ódio que foi tão prejudicial. É uma preocupação por toda a parte. Foi interessante ver que o ex-CEO da ChatGPT expressou uma opinião muito favorável à regulamentação da inteligência artificial. Na ONU há também um debate sobre a importância de atuação nesse sentido, uma discussão multilateral que possa fortalecer os benefícios advindos das mídias sociais e dessas novas tecnologias de informação e ao mesmo tempo procurar mitigar um pouco os riscos de efeitos nocivos para a sociedade. Não sei se tem havido, mas é natural que haja um diálogo com as empresas, procurar entender as perspectivas, as possibilidades de que essas empresas assumam algum grau de responsabilidade pelo que possam causar de efeitos na sociedade.

A ascensão feminina à embaixada brasileira em Washington é histórica. Como a senhora recebeu a indicação e qual sua perspectiva de exercer o protagonismo?

Foi um convite do ministro Mauro Vieira. Eu me senti muito honrada com esse convite porque a designação para uma embaixada importante é altamente honrosa para qualquer diplomata, homem ou mulher. Eu também me sinto muito honrada com fato de que pela primeira vez uma mulher seja designada. É de fato algo que pode ser considerado um marco e o que se poderia dizer é que chega com algum atraso, porque não será por falta de mulheres capacitadas que isso não ocorreu antes. O governo atual e atual chefia do Itamaraty estão muito comprometidos com igualdade de gênero e têm dado demonstrações muito claras nesse sentido. Pela primeira vez temos uma secretária geral, entre as altas chefias do Itamaraty três estão sendo ocupadas por mulheres nesse momento, haverá outras designações de diplomatas mulheres. Estamos no caminho certo. É preciso fazer mais, naturalmente.

Os números da Associação de Mulheres Diplomatas do Brasil indicam 31 homens e 4 mulheres designados pelo governo, englobando missões, consulados e embaixadas. Não é tímido?

Haverá novas indicações de mulheres para posto impostos importantes, postos A. Nós não podemos parar por aí, precisamos avançar mais. O ministro já indicou uma série de medidas que vão ser tomadas, tem a promoção do ingresso de mulheres na carreira para aumentar a participação das mulheres no serviço exterior. O que nós precisamos é, não só no Itamaraty, mas no Brasil como um todo, que haja mais mulheres em posição de liderança e de chefia para que chegue logo o momento em que o fato de haver mulheres nessas posições não seja visto como algo excepcional e sim como algo normal, como deve ser.

O que pretende fazer relacionado à questão de gênero na embaixada?

Vou olhar para essa questão com toda atenção, assim que surgirem novas vagas, eu vou examinar com todo o interesse candidaturas femininas. Tive uma experiência muito boa nos meus dois postos anteriores, tanto na missão junto à ONU quanto na embaixada em Berlim, com a participação de mulheres. Tive a possibilidade de contar com duas mulheres como número dois nesses dois postos. O que foi muito muito gratificante para mim. Farei tudo farei para, também na embaixada em Washington, para aumentar a participação feminina.

Como avalia as cobranças sobre o ministro para cumprir as promessas de ampliar o espaço das mulheres?

Acho que é o papel da associação reivindicar e reivindicar com uma certa aspiração maximalista e isso vai contribuir para que a situação avance e que avance com mais celeridade.

No cenário de tensões entre nossos dois parceiros principais, China e EUA, o que podemos explorar da relação com os norte-americanos, diante de tantos acenos chineses na viagem presidencial e da liderança na relação comercial com o Brasil?

Essa disputa estratégica geopolítica é um dos traços marcantes do cenário internacional atualmente, mas não devemos ver as relações Brasil-EUA nesse contexto apenas. Os norte-americanos têm olhado para o Brasil com com grande interesse e mostrado uma disposição muito grande de fazer avançar a nossa cooperação e os Estados Unidos estão em condições de oferecer muito para os nossos esforços de desenvolvimento, de crescimento com inclusão social e com sustentabilidade.

Com o fim da política migratória que permitia deportações sumárias, como pretende dialogar com o governo a respeito dos brasileiros que ingressam ilegalmente nos EUA, tendo em vista que números recorde foram registrados recentemente - 80 mil em 2021?

O que a embaixada continua fazendo é atuar por intermédio dos consulados, na verdade, na fronteira que dão assistência a esses brasileiros que são foram detidos. Vamos dar toda assistência, procurar ver de que maneira podemos apoiá-los, mas são importantes também as campanhas públicas para alertar as populações sobre os riscos dessa travessia irregular. Se surgir necessidade de um diálogo à luz da evolução dessa situação com o governo americano isso será feito isso.

A realidade do fluxo migratório pode mudar e se tornar um problema maior?

Aparentemente o grande fluxo que era esperado em função dessa alteração da política não se concretizou ainda, né? Temos que avaliar à medida que o assunto evoluir.

Nós vimos nos últimos anos algo ligado a essas detenções na fronteira, que eram dezenas de voos de deportação, em condições questionáveis, com cidadãos brasileiros algemados? O governo passado autorizou, algo que durante muito tempo não ocorreu. Isso será mantido e aceito?

O Brasil aceitou esses voos porque considerou que era melhor que houvesse a deportação desses brasileiros que estavam detidos com uma ordem formal de deportação e sempre perspectiva de que isso se alterasse, para evitar uma detenção muito prolongada, muitas vezes envolvendo menores e em situações também pouco adequadas no centro de detenção. Foi por isso que foi tomada decisão de aceitar esses voos. Vamos continuar a insistir com o lado americano para que não haja esse procedimento de utilização de algemas porque é alguma coisa que fere muito a dignidade dessas pessoas e nós vamos continuar a insistir que haja um tratamento digno no caso desses voos de deportação.

Os voos continuam chegando no Brasil?

Não tenho informação de novos voos.

BRASÍLIA - A nova embaixadora do Brasil em Washington, Maria Luiza Ribeiro Viotti, afirmou que os ruídos provocados por declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a respeito da guerra na Ucrânia já se dissiparam. Em entrevista exclusiva ao Estadão, ela relatou que após as falas de Lula houve contatos de alto nível para esclarecimentos. As explicações foram cobradas pela Casa Branca. O presidente imputara responsabilidades aos Estados Unidos, União Europeia e Ucrânia pelo prolongamento do conflito com a Rússia.

Indicada por Lula e recém-aprovada pelo Senado Federal, Viotti será a primeira mulher a chefiar a representação brasileira na capital dos EUA, a mais prestigiada do serviço exterior, em quase 200 anos de relações diplomáticas. Para a embaixadora, a vez de uma diplomata “chegou com atraso”.

Viotti afirmou que viu sinais, dos senadores norte-americanos, de que o país deverá mobilizar ainda mais recursos do que os prometidos U$ 500 milhões do governo para a proteção da Amazônia. O presidente Joe Biden ainda não teve aval do Congresso para efetivar as primeiras contribuições prometidas ao Fundo Amazônia.

A nova embaixadora também disse que, apesar dos apelos do governo Biden, o Brasil rejeitou a proposta de que se engajasse novamente em uma estudada operação militar no Haiti.

Ao longo da carreira diplomática, iniciada em 1975 no Instituto Rio Branco, Viotti foi embaixadora em Berlim, na Alemanha, representante do Brasil nas Nações Unidas, em Nova York, e chefe-de-gabinete do secretário-geral da ONU, António Guterres.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

É inevitável que os EUA pressionem para que o Brasil siga a mesma posição deles a respeito da guerra na Ucrânia, vide as seguidas reações manifestando decepção com declarações de Lula sobre o “incentivo” ao conflito, após a visita do chanceler russo Serguei Lavrov a Brasília e do embaixador Celso Amorim a Vladimir Putin em Moscou. Como lidar com isso?

Se houve algum ruído na comunicação, isso já se dissipou. Depois da visita do presidente à China, houve uma série de contatos entre o ministro Mauro Vieira e seu homólogo, entre o embaixador Celso Amorim e seu homólogo norte-americano também. As posições brasileiras puderam ser esclarecidas. Temos uma posição muito clara. Condenamos a invasão da Ucrânia, como não poderia deixar de ser, porque é uma violação do direito internacional e da Carta da ONU, mas ao mesmo tempo temos insistido muito na importância de um esforço na direção da paz. Essa nossa insistência nas negociações diplomáticas no momento em que os EUA e outros interlocutores estão muito investidos no apoio militar à Ucrânia tem às vezes gerado a interpretação de que nós estamos tomando partido, o que não é o caso.

A embaixadora Linda Thomas-Greenfield disse em Brasília que as negociações sugeridas pelo governo brasileiro não poderiam recompensar a Rússia.

Como resultado dessa interlocução, desses contatos nossa posição ficou clara. Há uma compreensão para o fato de que o Brasil ao falar de paz não está procurando ofender ninguém, não está procurando tomar lado, está apenas sendo fiel a suas tradições diplomáticas e seus interesses. A guerra está tento custo altíssimo, em primeiro lugar em vidas humanas, em destruição de cidades inteiras, infraestrutura, deslocamento de populações, impacto indireto na economia mundial, aumento da inflação, problemas de disponibilidade de grãos e alimentos. É preciso levar tudo isso em conta. E há o risco de uma escalada, que ninguém quer, mas há esse risco. Passamos a ter de novo algo que parecia plenamente afastado: o fantasma de um conflito que tenha o componente de armas nucleares.

As declarações de Lula não causaram danos?

Não vejo. Continuamos a ter contatos normais, visitas de alto nível, consultas da embaixadora Maria Laura da Rocha (secretária-geral do Itamaraty, em viagem a Washington) positivas, em clima afável e muito cordial.

Como reagir no caso respostas como a de um funcionário da Casa Branca, em tom pouco diplomático, que comparou o presidente Lula à figura de um papagaio repetidor de propaganda russa?

O importante é manter sempre o diálogo, poder esclarecer nossas posições. Há uma compreensão para o fato de que o Brasil nem sempre vai concordar, ter uma identidade de posições com os EUA e isso é normal numa relação entre dois países soberanos, com seus próprios interesses. É natural que não haja uma identidade perfeita de posições.

Os EUA esperavam que o governo Lula fosse muito mais vocal na defesa de liberdades e da democracia na nossa região. Refiro-me à situação na Venezuela, na Nicarágua e Cuba. Até pelo papel que os EUA desempenharam quando houve tentativa de golpe de Estado no 8 de janeiro.

Não tenho essa impressão. Ao contrário, o governo norte-americano está procurando o Brasil para conversar sobre as questões da nossa região com espírito aberto e valorizando muito a possibilidade de influência que o Brasil tem no sentido de estabilidade da região. Temos uma forma de diálogo diferente de um país como os EUA em relação a nossos vizinhos.

As relações entre Brasil e EUA completam 200 anos em 2024. Qual o futuro desse relacionamento, na nova configuração global que toma forma?

Estamos num momento muito estimulante, porque são relações que muito sólidas, consolidadas e com substrato muito importante, conteúdo econômico comercial muito forte, mas ainda assim uma disposição muito favorável dos dois lados a fazer essa relação crescer e se dinamizar. A visita do presidente Lula Washington relançou as relações em alto nível e houve uma sintonia muito boa entre os dois líderes sobre a importância de se retomar um diálogo estreito e de se retomar a cooperação em áreas críticas, como são o meio ambiente, mudança do clima, comércio e investimentos, Direitos Humanos, fortalecimento da Democracia.

Biden aceitou um convite de Lula para visitar o Brasil. Qual a perspectiva de ocorrer neste ano ou apenas no ano que vem?

Nós retomamos o assunto durante as consultas que houve nesta semana em Washington, da secretária-geral, embaixadora Maria Laura da Rocha, com a sua homóloga, Wendy Sherman. Vamos dar prosseguimento a esses contatos para procurar definir datas. Não há ainda uma indicação de quando essa visita pode ocorrer.

Na visita foi negociado o ingresso no Fundo Amazônia. O aporte inicial tímido, de U$ 50 milhões, virou de U$ 500 milhões ao longo de cinco anos. A senhora vê riscos de que republicanos bloqueiem a doação no Congresso? O que pretende fazer para que se concretize e para que não seja isolada, mas que novos aportes ocorram?

Há indicações interessantes nesse sentido, dadas durante uma audiência pública que se realizou no Senado norte-americano, em março. Esse tema foi levantado e houve uma pergunta do senador Robert Menéndez sobre o que o governo norte-americano estaria fazendo para apoiar os esforços do Brasil na Amazônia, e cobrou, de certa maneira, um aporte maior pelo próprio governo norte-americano. Foi quando eu vi uma resposta que falava em mobilizar filantropia, doações e outros países para contribuir para o Fundo Amazônia. Havia uma disposição quase unânime em relação a essa importância de apoiar o Brasil e de fazerem contribuições mais substantivas, mais expressivas. E o papel da embaixada será de fazer um esforço para convencê-los e fornecer argumentos e informações. A embaixada atuará junto ao Congresso americano para procurar fazer com que ocorra e se agilize.

O Brasil precisa dar alguma resposta, apresentar números mais efetivos de redução do desmatamento, o que ainda não ocorreu no atual governo?

O que estamos fazendo é dar uma demonstração concreta de nosso compromisso em acabar com o desmatamento ilegal e de promover o reflorestamento de áreas degradadas. Isso deve constar do plano que está sendo elaborado pela ministra Marina Silva, o plano de controle do desmatamento. O Itamaraty atuará muito em coordenação com o Ministério do Meio Ambiente para fornecer todas as informações. Há um grupo de trabalho que vai se reunir também periodicamente, então a impressão que eu tenho é que haverá uma comunicação muito constante e muito transparente com o governo norte-americano sobre os progressos que nós esperamos fazer ao longo do tempo.

Na campanha, Biden falou em cifras muito mais vultosas, em U$ 20 bilhões, e até em consequências econômicas se a destruição da floresta não cessasse. As cifras ainda não atingiram esse patamar. E o tom, mudou? Era retórica eleitoral?

Mudou em função do compromisso do governo atual com o combate ao desmatamento e com medidas de recuperação de áreas degradadas e isso é algo que o governo atual tem credibilidade para para dizer porque já foi feito no passado. Então eu acho que com base nessas nesse compromisso, já um tom diferente e à medida que evoluam as nossas atividades e políticas nessa área, minha impressão é que virá ainda mais apoio.

Qual a perspectiva de mudar ou extinguir a tarifação do aço brasileiro vigente desde 2018, no governo Donald Trump, em 25% e com cotas de exportação para acessar o mercado norte-americano?

Houve uma decisão de impor restrições às importações do aço e isso prejudicou muito a posição do Brasil no mercado norte-americano. Vamos continuar a nos empenhar para que essas restrições sejam eliminadas e um aspecto importante é demonstrar que o aço brasileiro não concorre com o aço norte-americano, porque nós exportamos semi manufaturados e isso é necessário para a produção do aço final nos Estados Unidos. Precisamos continuar a fazer esforço ampliando, talvez, a rede de contatos, não só no Congresso, mas em outras áreas também, falando com os governos estaduais. Sem dúvida é parte da prioridade da embaixada.

Houve algum sinal recente de possível alteração desse cenário?

Ainda não. Vamos ter que fazer um esforço adicional e continuar a insistir para que possamos ter um resultado nessa área.

A situação de segurança interna do Haiti é considerada muito grave e é tema de conversas sobre uma nova operação no país. Qual a proposta dos EUA e o governo brasileiro está disposto a fazer?

Os americanos, como nós, estão muito preocupados com a situação atual do Haiti, é uma situação muito delicada em matéria de segurança, e há também uma situação política muito difícil. Os americanos estão explorando a possibilidade de uma Força Regional. Seria uma força de países interessados, mas sem passar pelas Nações Unidas. Aparentemente não há ainda um consenso no âmbito do Conselho de Segurança sobre a possibilidade de uma Força de Paz, então seria uma força que envolveria países como Canadá e outros da região que pudessem se interessarem em enviar tropas para conter essa situação de segurança que prejudica tanto o Haiti.

Estão também discutindo a possibilidade de uma nova operação de paz das Nações Unidas. Não tem havido ainda uma evolução nessas nessas duas propostas. Nós temos trocado ideias com eles, eles têm nos perguntado como o Brasil pretende atuar em relação ao Haiti. A nossa prioridade nesse momento é atuar através do fortalecimento da nossa cooperação técnica, que tem sido muito importante na áreas de saúde e de infraestrutura. Temos feito uma série de projetos com os haitianos, mas não vemos a possibilidade de nos envolvermos com participação numa eventual Força de Paz da ONU ou numa Força Regional.

Eles queriam novamente a liderança brasileira numa força militar ou só a participação?

Nos perguntaram sobre ambas possibilidades, mas no momento o Brasil não está convencido de que nós possamos mais uma vez contribuir com tropas para esse esforço de segurança. É importante encontrar uma solução para o problema de segurança, mas não achamos que o Brasil pode nesse momento dar essa contribuição.

Os EUA terão eleições em 2024. Biden lançou a candidatura à reeleição. E Trump deseja voltar, disputa a preferência no Partido Republicano. Qual cenário a senhora enxerga?

É muito difícil antever o que pode acontecer. Vai ser uma campanha muito interessante, mas muito marcada por essas divisões. Caberá à embaixada um diálogo com as diversas forças políticas e um acompanhamento muito direto da evolução da campanha. Trump é um forte candidato dentro do Partido Republicano, mas há outras figuras surgindo. Então é preciso esperar e acompanhar para ver o que vai acontecer.

Como a embaixada pode auxiliar no diálogo com as grandes empresas de tecnologia norte-americanas, as Big Techs, que discutem com o governo brasileiro e resistem a mudanças na legislação, regulação nas mídias sociais, mesmo diante de uma realidade comum aos países de crimes de ódio e aumento de ataques em escolas?

Temos preocupações compartilhadas e esse assunto surgiu na conversa entre os líderes. Houve uma disposição de continuarmos a conversar sobre isso, trocar informações, enfrentar essa questão da desinformação e do discurso de ódio que foi tão prejudicial. É uma preocupação por toda a parte. Foi interessante ver que o ex-CEO da ChatGPT expressou uma opinião muito favorável à regulamentação da inteligência artificial. Na ONU há também um debate sobre a importância de atuação nesse sentido, uma discussão multilateral que possa fortalecer os benefícios advindos das mídias sociais e dessas novas tecnologias de informação e ao mesmo tempo procurar mitigar um pouco os riscos de efeitos nocivos para a sociedade. Não sei se tem havido, mas é natural que haja um diálogo com as empresas, procurar entender as perspectivas, as possibilidades de que essas empresas assumam algum grau de responsabilidade pelo que possam causar de efeitos na sociedade.

A ascensão feminina à embaixada brasileira em Washington é histórica. Como a senhora recebeu a indicação e qual sua perspectiva de exercer o protagonismo?

Foi um convite do ministro Mauro Vieira. Eu me senti muito honrada com esse convite porque a designação para uma embaixada importante é altamente honrosa para qualquer diplomata, homem ou mulher. Eu também me sinto muito honrada com fato de que pela primeira vez uma mulher seja designada. É de fato algo que pode ser considerado um marco e o que se poderia dizer é que chega com algum atraso, porque não será por falta de mulheres capacitadas que isso não ocorreu antes. O governo atual e atual chefia do Itamaraty estão muito comprometidos com igualdade de gênero e têm dado demonstrações muito claras nesse sentido. Pela primeira vez temos uma secretária geral, entre as altas chefias do Itamaraty três estão sendo ocupadas por mulheres nesse momento, haverá outras designações de diplomatas mulheres. Estamos no caminho certo. É preciso fazer mais, naturalmente.

Os números da Associação de Mulheres Diplomatas do Brasil indicam 31 homens e 4 mulheres designados pelo governo, englobando missões, consulados e embaixadas. Não é tímido?

Haverá novas indicações de mulheres para posto impostos importantes, postos A. Nós não podemos parar por aí, precisamos avançar mais. O ministro já indicou uma série de medidas que vão ser tomadas, tem a promoção do ingresso de mulheres na carreira para aumentar a participação das mulheres no serviço exterior. O que nós precisamos é, não só no Itamaraty, mas no Brasil como um todo, que haja mais mulheres em posição de liderança e de chefia para que chegue logo o momento em que o fato de haver mulheres nessas posições não seja visto como algo excepcional e sim como algo normal, como deve ser.

O que pretende fazer relacionado à questão de gênero na embaixada?

Vou olhar para essa questão com toda atenção, assim que surgirem novas vagas, eu vou examinar com todo o interesse candidaturas femininas. Tive uma experiência muito boa nos meus dois postos anteriores, tanto na missão junto à ONU quanto na embaixada em Berlim, com a participação de mulheres. Tive a possibilidade de contar com duas mulheres como número dois nesses dois postos. O que foi muito muito gratificante para mim. Farei tudo farei para, também na embaixada em Washington, para aumentar a participação feminina.

Como avalia as cobranças sobre o ministro para cumprir as promessas de ampliar o espaço das mulheres?

Acho que é o papel da associação reivindicar e reivindicar com uma certa aspiração maximalista e isso vai contribuir para que a situação avance e que avance com mais celeridade.

No cenário de tensões entre nossos dois parceiros principais, China e EUA, o que podemos explorar da relação com os norte-americanos, diante de tantos acenos chineses na viagem presidencial e da liderança na relação comercial com o Brasil?

Essa disputa estratégica geopolítica é um dos traços marcantes do cenário internacional atualmente, mas não devemos ver as relações Brasil-EUA nesse contexto apenas. Os norte-americanos têm olhado para o Brasil com com grande interesse e mostrado uma disposição muito grande de fazer avançar a nossa cooperação e os Estados Unidos estão em condições de oferecer muito para os nossos esforços de desenvolvimento, de crescimento com inclusão social e com sustentabilidade.

Com o fim da política migratória que permitia deportações sumárias, como pretende dialogar com o governo a respeito dos brasileiros que ingressam ilegalmente nos EUA, tendo em vista que números recorde foram registrados recentemente - 80 mil em 2021?

O que a embaixada continua fazendo é atuar por intermédio dos consulados, na verdade, na fronteira que dão assistência a esses brasileiros que são foram detidos. Vamos dar toda assistência, procurar ver de que maneira podemos apoiá-los, mas são importantes também as campanhas públicas para alertar as populações sobre os riscos dessa travessia irregular. Se surgir necessidade de um diálogo à luz da evolução dessa situação com o governo americano isso será feito isso.

A realidade do fluxo migratório pode mudar e se tornar um problema maior?

Aparentemente o grande fluxo que era esperado em função dessa alteração da política não se concretizou ainda, né? Temos que avaliar à medida que o assunto evoluir.

Nós vimos nos últimos anos algo ligado a essas detenções na fronteira, que eram dezenas de voos de deportação, em condições questionáveis, com cidadãos brasileiros algemados? O governo passado autorizou, algo que durante muito tempo não ocorreu. Isso será mantido e aceito?

O Brasil aceitou esses voos porque considerou que era melhor que houvesse a deportação desses brasileiros que estavam detidos com uma ordem formal de deportação e sempre perspectiva de que isso se alterasse, para evitar uma detenção muito prolongada, muitas vezes envolvendo menores e em situações também pouco adequadas no centro de detenção. Foi por isso que foi tomada decisão de aceitar esses voos. Vamos continuar a insistir com o lado americano para que não haja esse procedimento de utilização de algemas porque é alguma coisa que fere muito a dignidade dessas pessoas e nós vamos continuar a insistir que haja um tratamento digno no caso desses voos de deportação.

Os voos continuam chegando no Brasil?

Não tenho informação de novos voos.

BRASÍLIA - A nova embaixadora do Brasil em Washington, Maria Luiza Ribeiro Viotti, afirmou que os ruídos provocados por declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a respeito da guerra na Ucrânia já se dissiparam. Em entrevista exclusiva ao Estadão, ela relatou que após as falas de Lula houve contatos de alto nível para esclarecimentos. As explicações foram cobradas pela Casa Branca. O presidente imputara responsabilidades aos Estados Unidos, União Europeia e Ucrânia pelo prolongamento do conflito com a Rússia.

Indicada por Lula e recém-aprovada pelo Senado Federal, Viotti será a primeira mulher a chefiar a representação brasileira na capital dos EUA, a mais prestigiada do serviço exterior, em quase 200 anos de relações diplomáticas. Para a embaixadora, a vez de uma diplomata “chegou com atraso”.

Viotti afirmou que viu sinais, dos senadores norte-americanos, de que o país deverá mobilizar ainda mais recursos do que os prometidos U$ 500 milhões do governo para a proteção da Amazônia. O presidente Joe Biden ainda não teve aval do Congresso para efetivar as primeiras contribuições prometidas ao Fundo Amazônia.

A nova embaixadora também disse que, apesar dos apelos do governo Biden, o Brasil rejeitou a proposta de que se engajasse novamente em uma estudada operação militar no Haiti.

Ao longo da carreira diplomática, iniciada em 1975 no Instituto Rio Branco, Viotti foi embaixadora em Berlim, na Alemanha, representante do Brasil nas Nações Unidas, em Nova York, e chefe-de-gabinete do secretário-geral da ONU, António Guterres.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

É inevitável que os EUA pressionem para que o Brasil siga a mesma posição deles a respeito da guerra na Ucrânia, vide as seguidas reações manifestando decepção com declarações de Lula sobre o “incentivo” ao conflito, após a visita do chanceler russo Serguei Lavrov a Brasília e do embaixador Celso Amorim a Vladimir Putin em Moscou. Como lidar com isso?

Se houve algum ruído na comunicação, isso já se dissipou. Depois da visita do presidente à China, houve uma série de contatos entre o ministro Mauro Vieira e seu homólogo, entre o embaixador Celso Amorim e seu homólogo norte-americano também. As posições brasileiras puderam ser esclarecidas. Temos uma posição muito clara. Condenamos a invasão da Ucrânia, como não poderia deixar de ser, porque é uma violação do direito internacional e da Carta da ONU, mas ao mesmo tempo temos insistido muito na importância de um esforço na direção da paz. Essa nossa insistência nas negociações diplomáticas no momento em que os EUA e outros interlocutores estão muito investidos no apoio militar à Ucrânia tem às vezes gerado a interpretação de que nós estamos tomando partido, o que não é o caso.

A embaixadora Linda Thomas-Greenfield disse em Brasília que as negociações sugeridas pelo governo brasileiro não poderiam recompensar a Rússia.

Como resultado dessa interlocução, desses contatos nossa posição ficou clara. Há uma compreensão para o fato de que o Brasil ao falar de paz não está procurando ofender ninguém, não está procurando tomar lado, está apenas sendo fiel a suas tradições diplomáticas e seus interesses. A guerra está tento custo altíssimo, em primeiro lugar em vidas humanas, em destruição de cidades inteiras, infraestrutura, deslocamento de populações, impacto indireto na economia mundial, aumento da inflação, problemas de disponibilidade de grãos e alimentos. É preciso levar tudo isso em conta. E há o risco de uma escalada, que ninguém quer, mas há esse risco. Passamos a ter de novo algo que parecia plenamente afastado: o fantasma de um conflito que tenha o componente de armas nucleares.

As declarações de Lula não causaram danos?

Não vejo. Continuamos a ter contatos normais, visitas de alto nível, consultas da embaixadora Maria Laura da Rocha (secretária-geral do Itamaraty, em viagem a Washington) positivas, em clima afável e muito cordial.

Como reagir no caso respostas como a de um funcionário da Casa Branca, em tom pouco diplomático, que comparou o presidente Lula à figura de um papagaio repetidor de propaganda russa?

O importante é manter sempre o diálogo, poder esclarecer nossas posições. Há uma compreensão para o fato de que o Brasil nem sempre vai concordar, ter uma identidade de posições com os EUA e isso é normal numa relação entre dois países soberanos, com seus próprios interesses. É natural que não haja uma identidade perfeita de posições.

Os EUA esperavam que o governo Lula fosse muito mais vocal na defesa de liberdades e da democracia na nossa região. Refiro-me à situação na Venezuela, na Nicarágua e Cuba. Até pelo papel que os EUA desempenharam quando houve tentativa de golpe de Estado no 8 de janeiro.

Não tenho essa impressão. Ao contrário, o governo norte-americano está procurando o Brasil para conversar sobre as questões da nossa região com espírito aberto e valorizando muito a possibilidade de influência que o Brasil tem no sentido de estabilidade da região. Temos uma forma de diálogo diferente de um país como os EUA em relação a nossos vizinhos.

As relações entre Brasil e EUA completam 200 anos em 2024. Qual o futuro desse relacionamento, na nova configuração global que toma forma?

Estamos num momento muito estimulante, porque são relações que muito sólidas, consolidadas e com substrato muito importante, conteúdo econômico comercial muito forte, mas ainda assim uma disposição muito favorável dos dois lados a fazer essa relação crescer e se dinamizar. A visita do presidente Lula Washington relançou as relações em alto nível e houve uma sintonia muito boa entre os dois líderes sobre a importância de se retomar um diálogo estreito e de se retomar a cooperação em áreas críticas, como são o meio ambiente, mudança do clima, comércio e investimentos, Direitos Humanos, fortalecimento da Democracia.

Biden aceitou um convite de Lula para visitar o Brasil. Qual a perspectiva de ocorrer neste ano ou apenas no ano que vem?

Nós retomamos o assunto durante as consultas que houve nesta semana em Washington, da secretária-geral, embaixadora Maria Laura da Rocha, com a sua homóloga, Wendy Sherman. Vamos dar prosseguimento a esses contatos para procurar definir datas. Não há ainda uma indicação de quando essa visita pode ocorrer.

Na visita foi negociado o ingresso no Fundo Amazônia. O aporte inicial tímido, de U$ 50 milhões, virou de U$ 500 milhões ao longo de cinco anos. A senhora vê riscos de que republicanos bloqueiem a doação no Congresso? O que pretende fazer para que se concretize e para que não seja isolada, mas que novos aportes ocorram?

Há indicações interessantes nesse sentido, dadas durante uma audiência pública que se realizou no Senado norte-americano, em março. Esse tema foi levantado e houve uma pergunta do senador Robert Menéndez sobre o que o governo norte-americano estaria fazendo para apoiar os esforços do Brasil na Amazônia, e cobrou, de certa maneira, um aporte maior pelo próprio governo norte-americano. Foi quando eu vi uma resposta que falava em mobilizar filantropia, doações e outros países para contribuir para o Fundo Amazônia. Havia uma disposição quase unânime em relação a essa importância de apoiar o Brasil e de fazerem contribuições mais substantivas, mais expressivas. E o papel da embaixada será de fazer um esforço para convencê-los e fornecer argumentos e informações. A embaixada atuará junto ao Congresso americano para procurar fazer com que ocorra e se agilize.

O Brasil precisa dar alguma resposta, apresentar números mais efetivos de redução do desmatamento, o que ainda não ocorreu no atual governo?

O que estamos fazendo é dar uma demonstração concreta de nosso compromisso em acabar com o desmatamento ilegal e de promover o reflorestamento de áreas degradadas. Isso deve constar do plano que está sendo elaborado pela ministra Marina Silva, o plano de controle do desmatamento. O Itamaraty atuará muito em coordenação com o Ministério do Meio Ambiente para fornecer todas as informações. Há um grupo de trabalho que vai se reunir também periodicamente, então a impressão que eu tenho é que haverá uma comunicação muito constante e muito transparente com o governo norte-americano sobre os progressos que nós esperamos fazer ao longo do tempo.

Na campanha, Biden falou em cifras muito mais vultosas, em U$ 20 bilhões, e até em consequências econômicas se a destruição da floresta não cessasse. As cifras ainda não atingiram esse patamar. E o tom, mudou? Era retórica eleitoral?

Mudou em função do compromisso do governo atual com o combate ao desmatamento e com medidas de recuperação de áreas degradadas e isso é algo que o governo atual tem credibilidade para para dizer porque já foi feito no passado. Então eu acho que com base nessas nesse compromisso, já um tom diferente e à medida que evoluam as nossas atividades e políticas nessa área, minha impressão é que virá ainda mais apoio.

Qual a perspectiva de mudar ou extinguir a tarifação do aço brasileiro vigente desde 2018, no governo Donald Trump, em 25% e com cotas de exportação para acessar o mercado norte-americano?

Houve uma decisão de impor restrições às importações do aço e isso prejudicou muito a posição do Brasil no mercado norte-americano. Vamos continuar a nos empenhar para que essas restrições sejam eliminadas e um aspecto importante é demonstrar que o aço brasileiro não concorre com o aço norte-americano, porque nós exportamos semi manufaturados e isso é necessário para a produção do aço final nos Estados Unidos. Precisamos continuar a fazer esforço ampliando, talvez, a rede de contatos, não só no Congresso, mas em outras áreas também, falando com os governos estaduais. Sem dúvida é parte da prioridade da embaixada.

Houve algum sinal recente de possível alteração desse cenário?

Ainda não. Vamos ter que fazer um esforço adicional e continuar a insistir para que possamos ter um resultado nessa área.

A situação de segurança interna do Haiti é considerada muito grave e é tema de conversas sobre uma nova operação no país. Qual a proposta dos EUA e o governo brasileiro está disposto a fazer?

Os americanos, como nós, estão muito preocupados com a situação atual do Haiti, é uma situação muito delicada em matéria de segurança, e há também uma situação política muito difícil. Os americanos estão explorando a possibilidade de uma Força Regional. Seria uma força de países interessados, mas sem passar pelas Nações Unidas. Aparentemente não há ainda um consenso no âmbito do Conselho de Segurança sobre a possibilidade de uma Força de Paz, então seria uma força que envolveria países como Canadá e outros da região que pudessem se interessarem em enviar tropas para conter essa situação de segurança que prejudica tanto o Haiti.

Estão também discutindo a possibilidade de uma nova operação de paz das Nações Unidas. Não tem havido ainda uma evolução nessas nessas duas propostas. Nós temos trocado ideias com eles, eles têm nos perguntado como o Brasil pretende atuar em relação ao Haiti. A nossa prioridade nesse momento é atuar através do fortalecimento da nossa cooperação técnica, que tem sido muito importante na áreas de saúde e de infraestrutura. Temos feito uma série de projetos com os haitianos, mas não vemos a possibilidade de nos envolvermos com participação numa eventual Força de Paz da ONU ou numa Força Regional.

Eles queriam novamente a liderança brasileira numa força militar ou só a participação?

Nos perguntaram sobre ambas possibilidades, mas no momento o Brasil não está convencido de que nós possamos mais uma vez contribuir com tropas para esse esforço de segurança. É importante encontrar uma solução para o problema de segurança, mas não achamos que o Brasil pode nesse momento dar essa contribuição.

Os EUA terão eleições em 2024. Biden lançou a candidatura à reeleição. E Trump deseja voltar, disputa a preferência no Partido Republicano. Qual cenário a senhora enxerga?

É muito difícil antever o que pode acontecer. Vai ser uma campanha muito interessante, mas muito marcada por essas divisões. Caberá à embaixada um diálogo com as diversas forças políticas e um acompanhamento muito direto da evolução da campanha. Trump é um forte candidato dentro do Partido Republicano, mas há outras figuras surgindo. Então é preciso esperar e acompanhar para ver o que vai acontecer.

Como a embaixada pode auxiliar no diálogo com as grandes empresas de tecnologia norte-americanas, as Big Techs, que discutem com o governo brasileiro e resistem a mudanças na legislação, regulação nas mídias sociais, mesmo diante de uma realidade comum aos países de crimes de ódio e aumento de ataques em escolas?

Temos preocupações compartilhadas e esse assunto surgiu na conversa entre os líderes. Houve uma disposição de continuarmos a conversar sobre isso, trocar informações, enfrentar essa questão da desinformação e do discurso de ódio que foi tão prejudicial. É uma preocupação por toda a parte. Foi interessante ver que o ex-CEO da ChatGPT expressou uma opinião muito favorável à regulamentação da inteligência artificial. Na ONU há também um debate sobre a importância de atuação nesse sentido, uma discussão multilateral que possa fortalecer os benefícios advindos das mídias sociais e dessas novas tecnologias de informação e ao mesmo tempo procurar mitigar um pouco os riscos de efeitos nocivos para a sociedade. Não sei se tem havido, mas é natural que haja um diálogo com as empresas, procurar entender as perspectivas, as possibilidades de que essas empresas assumam algum grau de responsabilidade pelo que possam causar de efeitos na sociedade.

A ascensão feminina à embaixada brasileira em Washington é histórica. Como a senhora recebeu a indicação e qual sua perspectiva de exercer o protagonismo?

Foi um convite do ministro Mauro Vieira. Eu me senti muito honrada com esse convite porque a designação para uma embaixada importante é altamente honrosa para qualquer diplomata, homem ou mulher. Eu também me sinto muito honrada com fato de que pela primeira vez uma mulher seja designada. É de fato algo que pode ser considerado um marco e o que se poderia dizer é que chega com algum atraso, porque não será por falta de mulheres capacitadas que isso não ocorreu antes. O governo atual e atual chefia do Itamaraty estão muito comprometidos com igualdade de gênero e têm dado demonstrações muito claras nesse sentido. Pela primeira vez temos uma secretária geral, entre as altas chefias do Itamaraty três estão sendo ocupadas por mulheres nesse momento, haverá outras designações de diplomatas mulheres. Estamos no caminho certo. É preciso fazer mais, naturalmente.

Os números da Associação de Mulheres Diplomatas do Brasil indicam 31 homens e 4 mulheres designados pelo governo, englobando missões, consulados e embaixadas. Não é tímido?

Haverá novas indicações de mulheres para posto impostos importantes, postos A. Nós não podemos parar por aí, precisamos avançar mais. O ministro já indicou uma série de medidas que vão ser tomadas, tem a promoção do ingresso de mulheres na carreira para aumentar a participação das mulheres no serviço exterior. O que nós precisamos é, não só no Itamaraty, mas no Brasil como um todo, que haja mais mulheres em posição de liderança e de chefia para que chegue logo o momento em que o fato de haver mulheres nessas posições não seja visto como algo excepcional e sim como algo normal, como deve ser.

O que pretende fazer relacionado à questão de gênero na embaixada?

Vou olhar para essa questão com toda atenção, assim que surgirem novas vagas, eu vou examinar com todo o interesse candidaturas femininas. Tive uma experiência muito boa nos meus dois postos anteriores, tanto na missão junto à ONU quanto na embaixada em Berlim, com a participação de mulheres. Tive a possibilidade de contar com duas mulheres como número dois nesses dois postos. O que foi muito muito gratificante para mim. Farei tudo farei para, também na embaixada em Washington, para aumentar a participação feminina.

Como avalia as cobranças sobre o ministro para cumprir as promessas de ampliar o espaço das mulheres?

Acho que é o papel da associação reivindicar e reivindicar com uma certa aspiração maximalista e isso vai contribuir para que a situação avance e que avance com mais celeridade.

No cenário de tensões entre nossos dois parceiros principais, China e EUA, o que podemos explorar da relação com os norte-americanos, diante de tantos acenos chineses na viagem presidencial e da liderança na relação comercial com o Brasil?

Essa disputa estratégica geopolítica é um dos traços marcantes do cenário internacional atualmente, mas não devemos ver as relações Brasil-EUA nesse contexto apenas. Os norte-americanos têm olhado para o Brasil com com grande interesse e mostrado uma disposição muito grande de fazer avançar a nossa cooperação e os Estados Unidos estão em condições de oferecer muito para os nossos esforços de desenvolvimento, de crescimento com inclusão social e com sustentabilidade.

Com o fim da política migratória que permitia deportações sumárias, como pretende dialogar com o governo a respeito dos brasileiros que ingressam ilegalmente nos EUA, tendo em vista que números recorde foram registrados recentemente - 80 mil em 2021?

O que a embaixada continua fazendo é atuar por intermédio dos consulados, na verdade, na fronteira que dão assistência a esses brasileiros que são foram detidos. Vamos dar toda assistência, procurar ver de que maneira podemos apoiá-los, mas são importantes também as campanhas públicas para alertar as populações sobre os riscos dessa travessia irregular. Se surgir necessidade de um diálogo à luz da evolução dessa situação com o governo americano isso será feito isso.

A realidade do fluxo migratório pode mudar e se tornar um problema maior?

Aparentemente o grande fluxo que era esperado em função dessa alteração da política não se concretizou ainda, né? Temos que avaliar à medida que o assunto evoluir.

Nós vimos nos últimos anos algo ligado a essas detenções na fronteira, que eram dezenas de voos de deportação, em condições questionáveis, com cidadãos brasileiros algemados? O governo passado autorizou, algo que durante muito tempo não ocorreu. Isso será mantido e aceito?

O Brasil aceitou esses voos porque considerou que era melhor que houvesse a deportação desses brasileiros que estavam detidos com uma ordem formal de deportação e sempre perspectiva de que isso se alterasse, para evitar uma detenção muito prolongada, muitas vezes envolvendo menores e em situações também pouco adequadas no centro de detenção. Foi por isso que foi tomada decisão de aceitar esses voos. Vamos continuar a insistir com o lado americano para que não haja esse procedimento de utilização de algemas porque é alguma coisa que fere muito a dignidade dessas pessoas e nós vamos continuar a insistir que haja um tratamento digno no caso desses voos de deportação.

Os voos continuam chegando no Brasil?

Não tenho informação de novos voos.

Entrevista por Felipe Frazão

Jornalista especializado em Política e Relações Exteriores. Realizou coberturas e reportagens especiais na Ásia, África, Oriente Médio, Europa e América Latina. Apresenta a coluna Sua Política na rádio Eldorado FM.

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