THE WASHINGTON POST, IVANIVKA, Ucrânia - Olena espiou pela janela de seu quarto e viu o que parecia ser seu vizinho, um homem apelidado de Girovka, sair de um carro que possuía símbolos russos e começar a disparar sinalizadores do lado da estrada para o céu noturno. No dia seguinte, tanques e veículos blindados saíram da floresta em uma longa coluna pela mesma estrada e invadiram a pequena vila onde a ucraniana morava, a cerca de 100 quilômetros ao sul da fronteira russa.
Dias depois, após a saída dos russos do norte e centro da Ucrânia, quatro investigadores do Serviço de Segurança ucraniano entraram na sala de estar de Olena, de 66 anos. Ela contou a eles o que tinha visto e mostrou o local onde Girovka disparou os sinalizadores. Outros vizinhos disseram aos investigadores que Girovka foi visto andando entre posições ucranianas minutos antes destas serem bombardeadas.
Ninguém na vila viu o vizinho desde então. “Talvez eles tenham feito isso por dinheiro?”, questiona Olena sobre os suspeitos de colaborar com a Rússia. “Eles prometeram algo. Eu me pergunto como é possível vender sua consciência e dignidade. Não sei. Eu não entendo.”
Nas pequenas cidades e vilarejos da Ucrânia ocupadas pelos russos entre fevereiro e março, agora libertadas, o ambiente da guerra foi substituído pela conspiração e a suspeita. Cidadãos de todo o país falam em voz baixa sobre pessoas que eles acreditam ter entregado seus vizinhos e se perguntam se fizeram isso voluntariamente ou sob coação.
As forças armadas da Ucrânia se recusaram a compartilhar quantos ucranianos acusados de colaborar com a Rússia foram identificados ou detidos. Segundo a Associated Press, cerca de 400 pessoas suspeitas foram detidas na região de Kharkiv e podem ser processadas sob novas leis que tornam a colaboração com a Rússia passível de prisão perpétua, caso resulte na morte de ucranianos.
O vice-chefe da administração civil-militar regional de Chernihiv, Dmitro Ivanov, disse que os serviços de segurança investigam casos de supostos colaboradores, que em tese marcariam posições ucranianas com fósforo para estas serem identificadas no céu e os russos direcionarem a artilharia com maior precisão. Além destes, Ivanov afirmou que outro tipo de colaboração investigada são de ucranianos que levaram os russos a armazéns de alimentos e suprimentos. Em alguns casos, colaboradores aceitariam comida ou dinheiro em troca das informações, acrescentou o militar.
“Consideramos que essas pessoas ainda estão aqui”, disse Ivanov. “Neste momento, serviços especiais de segurança trabalham nisso. Não há muitos casos, porque as comunidades aqui estão fortes e unidas mais do que nunca.”
Em vilarejos a nordeste de Mikolaiv, uma cidade ucraniana com cerca de 500 mil habitantes perto da costa do Mar Negro, os ocupantes russos foram expulsos em menos de duas semanas. No entanto, o ressentimento e os rumores de possíveis colaboradores locais permaneceram.
Em Pisky, que tem cerca de 800 moradores, um homem recebeu os jornalistas do Washington Post dizendo para eles que a cidade estava cheia de “ruscistas” – um termo que os ucranianos cunharam como abreviação de “fascistas russos”. Segundo ele, a maioria dos moradores da cidade apoia Viktor Ianukovich, o presidente ucraniano pró-Rússia deposto durante a revolução ocorrida no país em 2014.
Em março, os soldados russos montaram a base na escola de Pisky. As pessoas na cidade ainda acusam a diretora da escola de abrir as portas para os russos e passar informações para eles. A reportagem do Washington Post não conseguiu verificar as acusações de forma independente.
“Quando os russos chegaram, ela estava dizendo a eles: ‘Estamos esperando por vocês há oito anos para que vocês possam trazer a ordem!’”, disse a moradora Marina Polishuk, de 70 anos. “Então, depois que eles saíram, ela disse: ‘Ah, eu entendi mal’”, disse Polishuk. “Você mora na Ucrânia e entendeu mal?”, questiona.
Em muitos casos, as histórias de supostos colaboradores são menos concretas. Rumores e acusações ganham vida própria à medida que são contados por moradores que muitas vezes estão traumatizados pela experiência da guerra. Em alguns casos, parece beirar a paranoia.
Moradores de Berezanka, perto de Chernihiv, contaram ao Washington Post o caso de um funcionário da Agência Estadual de Recursos Florestais. Ele teve a cada invadida por forças russas e várias armas roubadas. O boato local é que os russos invadiram a casa com base em uma dica repassada por um colaborador local, mas outros moradores dizem que na verdade foi o próprio funcionário que voluntariamente ofereceu as armas aos russos. Ele foi preso por agentes de segurança ucranianos, dizem os moradores.
O funcionário, chamado Oleh Nechipurenko, de 50 anos, disse que nada disso era verdade. Visitado por um repórter em casa, onde estava com a esposa, filho e dois cachorros, ele disse que os russos apareceram, levaram sua única arma – um rifle de caça de pequeno calibre – e partiram pacificamente. O ucraniano disse ainda que a polícia chegou a interrogá-lo, mas não o prendeu.
Uma coisa pareceu peculiar, disse Oleh: os russos visitaram apenas duas casas em sua rua, justo aquelas com armas de fogo registradas (os ucranianos são obrigados a registrar todas as armas de fogo com as autoridades locais). “Não tenho certeza de quem fez isso, mas parece que alguém os avisou”, afirmou Nechipurenko.
Na vila vizinha de Yahidne, um casal com cerca de 50 anos disse que soldados russos foram direto para casa deles ao entrar na vila, a invadindo e indo direto a um galpão em busca de dinheiro, joias e outros objetos de valor. O casal é considerado rico na pequena cidade, que tem cerca de 300 pessoas, e acha que os russos tinham informações privilegiadas sobre seu status.
Depois de invadir a residência, os soldados russos usaram o chão como banheiro antes de sair, contou Vitali Minenko, 58 anos. Os moradores que se aventuraram nas ruas foram forçados a cantar o hino nacional russo e foram ameaçados de morte se parassem de cantar, relatou. “A guerra mostrou quem é quem, o outro lado das pessoas”, disse Minenko sobre seus vizinhos. “Quem achávamos que era bom acabou sendo ruim. Quem estava com raiva se tornou legal.”
Dentro da escola em Pisky, há um pôster com elogios para homens e mulheres locais que serviram nas forças armadas ucranianas e lutaram na região de Donbas, no leste do país, contra separatistas apoiados pela Rússia. Um dos retratados é o filho de Polishuk, Evhen Kosteniuk.
Kosteniuk encerrou os serviços no exército ucraniano em 2017 e desconhecia que estava em um poster dentro da escola até o dia em que soldados russos o encontraram e o arrastaram para longe da casa da sua mãe. O ucraniano conta que ficou preso por 24 horas, nas quais foi espancado e torturado, e depois foi levado para a floresta de uma cidade vizinha, onde recebeu um tiro.
Segundo o relato do ucraniano, após o tiro ele caiu no chão e ficou parado com a bala alojada em seu ombro. O pulmão acabou ferido, mas ele sobreviveu. As tropas russas aparentemente pensaram que ele estava morto e o deixaram lá. Kosterniuk se levantou ao ouvir o som das portas do carro se fechando e dos pneus na estrada e acabou encontrando um estranho disposto a ajudar. O homem o ajudou a amarrar o ombro para estancar o sangramento e depois o levou a um posto de controle militar ucraniano.
Polishuk disse que a diretora da escola deixou a cidade quando os russos também saíram, mas já retornou. “Eu disse a ela que ela não teria vida depois da guerra”, disse a ucraniana. “Eu vou estrangulá-la com minhas próprias mãos.”