MOSCOU - A Rússia anunciou com grande alarde a chegada de sua própria vacina, a Sputnik V, na América Latina, na África e até mesmo em alguns países da Europa, chamando-a de solução para a escassez de imunizantes em todo o mundo. Mas tem sido menos eloquente sobre um país que também está importando a vacina: a própria Rússia.
O governo russo contratou a fabricação da Sputnik V junto a uma empresa sul-coreana, que já enviou doses para a Rússia, e planeja fazer o mesmo com uma empresa indiana. Embora seja impossível avaliar a escala das importações, por causa dos acordos de sigilo, elas solapam parte da narrativa que a Rússia orgulhosamente apresentou sobre seu papel na pandemia como exportadora de vacinas para países necessitados.
As importações, que devem aumentar nas próximas semanas e meses, podem ajudar a Rússia a superar uma vacinação terrivelmente lenta em solo nacional. E também ilustram que mesmo os países cujos cientistas criaram imunizantes bem-sucedidos dependem do comércio internacional para o fornecimento de vacinas.
No outono passado (norte), autoridades russas disseram que a manufatura estrangeira poderia atender parcialmente à demanda doméstica, mas desde então não se pronunciaram sobre a importação de um produto que foi considerado um triunfo dos cientistas do país. Fabricar a vacina na Rússia, no entanto, é mais complicado do que parece.
A Rússia recebeu dois aviões cargueiros carregados com Sputnik V da fabricante sul-coreana GL Rapha em dezembro, e a empresa planeja enviar outro carregamento nos próximos dias. Os fabricantes indianos também devem exportar a vacina russa para a Rússia, de acordo com diplomatas indianos.
“Enfrentamos a perspectiva de aumentar essa cooperação no campo das vacinas”, disse o embaixador da Índia na Rússia, Shri Varma, em entrevista coletiva em janeiro. “Prevemos uma grande produção da vacina Sputnik na Índia, usando as instalações indianas para a Índia, para a Rússia e para o mundo inteiro”.
A Rússia tem quatro acordos de produção na Índia. A empresa indiana Virchow Biotech, com sede em Hyderabad, assinou na semana passada um acordo de fabricação com o Fundo de Investimento Direto da Rússia para fazer 200 milhões de doses de Sputnik V por ano. A produção de vacinas russas teve um início lento pois durante os meses do outono passado os produtores tiveram dificuldade para obter equipamentos de biotecnologia fabricados na China, os quais estavam em falta.
Na semana passada, o presidente Vladimir Putin disse que, desde que os reguladores aprovaram o medicamento, em agosto passado, a Rússia distribuiu Sputnik V suficiente para inocular totalmente 8,9 milhões de pessoas. O ministro da Indústria russo disse na segunda-feira que espera um aumento rápido em abril, dobrando esse valor todos os meses.
A campanha de vacinação russa está muito atrás da maioria das nações europeias e dos Estados Unidos. A Rússia vacinou 4,4% de sua população, em comparação com 10% na União Europeia e 26% nos Estados Unidos.
A vacinação de Vladimir Putin
Na semana passada, o Kremlin reconheceu, pela primeira vez, que a escassez da vacina teve papel fundamental na decisão de Putin de adiar sua própria inoculação, para não estimular a demanda por vacinas antes que elas estivessem amplamente disponíveis fora da capital.
Em janeiro, quando chegou a vez do grupo etário de Putin, segundo as regras russas, “a produção ainda não era suficiente para atender totalmente à demanda nas diversas regiões do interior”, disse seu porta-voz, Dmitri Peskov.
Não está claro quão grande será o papel das importações no alívio da escassez, o que poderia acelerar as vacinações e salvar vidas russas. Mas isso deixa a Rússia em posição inferior na hierarquia da geopolítica das vacinas, como importadora e não apenas como exportadora.
As autoridades russas, porém, optaram por dar destaque às exportações. “Uma vacina para toda a humanidade”, declara o site da Sputnik V. A mídia estatal dedicou atenção até mesmo a remessas relativamente pequenas de dezenas ou centenas de milhares de doses para países estrangeiros.
Mais de 20 países começaram a vacinar com pequenas quantidades de vacinas fornecidas pela Rússia, entre eles Argentina, Hungria, Bolívia, Argélia, Paraguai e outros. Autoridades russas disseram que a maior parte da demanda pela Sputnik V em países estrangeiros será atendida pela produção no exterior.
Nacionalismo das vacinas
Mas o nacionalismo das vacinas por países com capacidade de produção parece estar em ascensão. Na semana passada, os contratos para entrega ou direitos de produção provaram ser menos importantes do que controlar os meios de produção no comércio de vacinas.
A Índia, uma grande fabricante de vacinas, evitou exportar quase todos os 2,4 milhões de doses fabricadas por uma empresa privada, o Serum Institute, à medida que o número de infecções por coronavírus disparava em todo o país.
A União Europeia também adotou uma legislação de emergência para restringir as exportações de vacinas, uma mudança que pode limitar as importações britânicas da vacina AstraZeneca, da Universidade de Oxford, por produtores do bloco. O presidente francês, Emmanuel Macron, disse que era o “fim da ingenuidade” para a União Europeia, que tem uma capacidade de produção significativa, mas vem exportando doses apesar do rápido aumento de casos dentro do bloco. Tanto os Estados Unidos quanto o Reino Unido importaram vacinas desenvolvidas internamente e fabricadas em países estrangeiros. Os EUA fizeram isso enquanto proibiam algumas exportações de doses feitas no país para o exterior.
A Rússia importou a Sputnik V produzida na Coreia do Sul em dezembro, quando expandiu as categorias de pessoas elegíveis para a vacinação. As doses chegaram em dois cargueiros da Asiana Airlines, segundo anúncio da companhia aérea que divulgou seu serviço de remessa fria. Em respostas por escrito às perguntas, a fabricante coreana GL Rapha disse que não poderia falar sobre os embarques por causa do acordo de sigilo.
A empresa disse que espera produzir 150 milhões de doses de Sputnik V este ano. O Fundo Russo de Investimento Direto não respondeu a perguntas sobre importações para a Rússia. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU