THE NEW YORK TIMES - Em paralelo aos conflitos entre os militares russos e ucranianos no leste da Ucrânia, a Rússia se ocupa em restaurar a infraestrutura de transporte e de outras áreas importantes no território ocupado do sul do país. Após conquistar a região durante a guerra, os russos querem estabelecer um “tráfego de pleno direito” entre o próprio país e a Crimeia, ocupada em 2014 e localizada no extremo sul da Ucrânia, entre o Mar de Azov e o Mar Negro.
Os objetivos russos foram declarados pelo ministro da Defesa do país, Sergei K. Shoigu, nesta terça-feira, 7. Segundo Shoigu, os militares trabalham com a Russian Railways, companhia ferroviária estatal, para reparar cerca de 1,2 mil quilômetros de trilhos no sudeste da Ucrânia. Os trilhos sairiam da Rússia e atravessariam a região do Donbas, no leste da Ucrânia, e a cidade de Kherson antes de chegar à Crimeia.
Além das obras de transporte, Shoigu também informou que as tropas russas desobstruíram o canal que leva água até a Crimeia, cortado pela Ucrânia após a anexação da península pelo Kremlin em 2014. A água voltou a fluir normalmente até o território anexado, segundo o ministro. Imagens de satélite mostram que partes do canal que estavam secas até março deste ano, no início da invasão, agora possuem água.
O ministro também afirmou que a Rússia trabalha para reabrir os portos ao longo da costa ocupada no sul da Ucrânia. Segundo ele, ao menos dois portos -- Berdiansk e Mariupol -- foram limpos de minas deixadas pelas forças ucranianas em retirada e estão prontos para retomar as operações.
O The New York Times atestou o retorno da água pelo canal da Crimeia, mas não conseguiu verificar as outras alegações russas. As autoridades ucranianas não comentaram o assunto.
Os anúncios de Shoigu mostram que, embora Moscou tenha redirecionado a maior parte das forças de combate para os conflitos na região do Donbas, a Rússia também trabalha para consolidar o domínio sobre as terras conquistadas no sul. A criação da ponte terrestre enter a Rússia e o território ocupado cumpriria um dos principais objetivos do Kremlin, segundo os analistas.
Com mais de 100 dias de guerra, a Rússia passou a ocupar 20% do território da Ucrânia. A maior parte se estende pelas regiões de Kherson e Zaporizka. Nas duas regiões, eles introduziram a moeda russa e nomearam representantes, sinalizando a intenção de anexar essas terras. Agora, esse objetivo se torna ainda mais claro com o anúncio da restauração da infraestrutura.
A retomada do canal da Crimeia, chamado Canal da Crimeia do Norte, é um prêmio importante para os russos. O canal chegou a representar 85% da água doce utilizada pelos moradores da península até 2014, quando o território foi anexado pela Rússia e o governo ucraniano construiu uma barragem na cidade de Kalanchak para bloquear o fluxo da água para o sul. A anexação da Crimeia foi um movimento considerado ilegal pela Ucrânia e seus aliados ocidentais.
O canal é considerado vital de guerra para os planos de longo prazo do Kremlin, na visão de Petro Lakichuk, analista do Centro de Estudos Globais “Estratégia XXI”, baseado em Kiev. A retomada aconteceu horas depois da invasão russa na Ucrânia iniciar, no dia 24 de fevereiro.
Os analistas também afirmam que a restauração das linhas ferroviárias também pode ajudar os russos ao permitir um fluxo de armas pesadas da Rússia para o território ocupado através de linhas férreas. Além disso, serviria como um ponto de apoio para as forças que estão no Mar Negro.
Captura de Mariupol permitiu rota terrestre
A rota terrestre entre a Rússia e a Crimeia foi adiada durante meses pela dificuldade da Rússia em conquistar a cidade de Mariupol, que teve a batalha mais sangrenta da guerra até o momento. Combatentes ucranianos resistiram de março até meados de maio, apesar de estarem em menor número e desarmados, e atrasaram os planos russos.
O território que se estende pelo leste e sul da Ucrânia, ao longo da costa do Mar Negro até a Crimeia, é chamado pelo presidente russo Vladimir Putin de “Nova Rússia”. A captura de Mariupol representou um passo fundamental para o cumprimento deste objetivo e rapidamente o Kremlin agiu para instituir o rublo, redirecionar conexões de internet para servidores russos e substituir operadoras de celular ucranianas por russas. Até o código do país do telefone foi alterado para o da Rússia.
Segundo o chefe ucraniano da administração regional de Kherson, Hennadii Lahuta, o Kremlin planeja realizar um referendo no último trimestre deste ano para incorporar a região à Rússia. As autoridades ucranianas prometeram lutar contra tal medida, mas até o momento a contra-ofensiva na região não conseguiu retomar muitos territórios.
Guerra na Ucrânia
Na análise da Rochan Consulting, consultoria que acompanha os desenvolvimentos da guerra, as informações sobre os combates no sul, embora limitadas, sugerem que a contra-ofensiva ucraniana “pode parar” por falta de tanques e outros veículos de guerra. Já o Ministério da Defesa do Reino Unido diz que os progressos da Ucrânia na região são limitados.
O vice-comandante de uma unidade militar ucraniana localizada a nordeste de Kherson, Roman Kovaliov, afirmou em uma entrevista na semana passada que a Ucrânia foca mais em ações táticas na região do que em um contra-ataque definitivo. “Existem alguns assentamentos que liberamos por meio de nossas ações, mas essas foram lutas de nível tático”, disse.
Batalhas clandestinas
Ao mesmo tempo que a Ucrânia afirma que oficialmente não realiza um contra-ataque completo, batalhas clandestinas surgem nas regiões ocupadas. Elas envolvem apoiadores do Kremlin, militares russos e ucranianos e partisans (tropa informal que se põe à ocupação estrangeira em uma determinada área).
Nesta terça-feira, a mídia ucraniana postou um vídeo que mostra uma explosão em um café que servia de ponto de encontro para pessoas que colaboravam com as forças russas em Kherson. A mídia estatal russa descreveu o fato como um ato de “terror”.
O vídeo é o mais recente de uma série de ataques feitos na região contra apoiadores e representantes russos. Isso ocorre em meio a relatos -- mais impossíveis de serem verificados pela imprensa -- de pontes importantes explodidas, linhas ferroviárias usadas pelas forças russas atacadas e soldados russos mortos em patrulha. Os responsáveis seriam partisans ucranianos.
A existência destes no sul do país foi admitido por Oleksi Arestovich, assessor do presidente ucraniano Volodmir Zelenski, durante uma transmissão em seu canal do YouTube. “Os partisans estão lutando muito ativamente”, disse.
O major Kovaliov, na frente de Kherson, disse que as forças ucranianas lutam com o que tem. “Geralmente, a maioria das armas que estão sendo enviadas para a Ucrânia vão para o leste”, disse ele. “E nós entendemos isso daqui”.