Saiba o que é a rebelião de Stonewall e por que ela é um marco importante do movimento LGBT


Confronto em bar nos Estados Unidos influenciou o mundo todo e lançou as bases da luta moderna pela igualdade

Por Redação
Atualização:

Em 28 de junho de 1969, a polícia de Nova York fez uma batida no bar Stonewall Inn, sob o pretexto de interromper a venda de bebidas destiladas no estabelecimento, de propriedade da máfia, que não tinha licença para isso.

Um antigo estábulo de cavalos em edifícios contíguos nas ruas Christopher Street 51 e 53, o Stonewall era um local sinuoso com janelas escurecidas, paredes pintadas de preto e um porteiro que examinava os clientes em potencial através de um olho mágico. Mas também tinha uma pista de dança popular e pulsante que atraiu um público diversificado, em grande parte jovem e LGBT.

Stonewall fazia parte de uma cena gay de Greenwich Village que era conhecida, mas não aberta. Na época, relacionar-se com alguém do mesmo sexo ou vestir-se de forma considerada inadequada podia resultar em prisão, e vários bares haviam perdido as licenças de comercialização de bebidas alcoólicas por servirem pessoas que se enquadravam nessa descrição. Era comum que clubes noturnos gays funcionassem ilegalmente.

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A polícia, não raro, abusava de clientes gays em algumas batidas. Naquela madrugada, os patronos e o público de Stonewall, fartos da situação, decidiram reagir.

Ativistas comemoram decisão da Suprema Corte americana favorável aos direitos LGBT na frente do Stonewall em Nova York Foto: Shannon Stapleton/REUTERS

Os frequentadores do bar começaram a atirar moedas, depois latas de cerveja e garrafas, contou o historiador David Carter em seu meticuloso livro Stonewall: The Riots that Sparked the Gay Revolution. Em algum momento, uma pedra de paralelepípedo foi atirada contra um carro de patrulha, fazendo com que a polícia organizasse uma barricada dentro dele.

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A multidão ficou maior e mais inquieta, jogando tijolos, garrafas cheias de combustível e latas de lixo. Algumas pessoas tentaram colocar fogo no local, enquanto outras bateram na janela de compensado com um parquímetro.

Enquanto isso, os policiais temiam por suas vidas, de pistolas em punho, diz o relato de Carter.A polícia ficou chocada, escreveu o historiador, não apenas com a rapidez com que a multidão havia crescido, mas com o fato de homossexuais, normalmente aquiescentes, estarem em força, gritando "Poder gay!"

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“Foi como quando Rosa Parks não desistiu de seu lugar no ônibus. Você só consegue empurrar as pessoas por um certo tempo”, disse o militante LGBT Randy Wicker à agência Reuters em 2019, em razão dos 50 anos da revolta. “Quando eles adquirem um certo senso de respeito próprio, e dizem que estão cansados de ser tratados dessa forma, eles resistem.”

Eventualmente, o corpo de bombeiros e o esquadrão de choque da polícia conhecido como Força Tática de Patrulha (TPF) chegaram, separando a multidão. Mas houve mais tumultos e batalhas de rua com a TPF na noite seguinte, e uma atmosfera de tensão mais contida permaneceu em Greenwich Village por mais alguns dias antes de uma noite final de indignação.

“Parado do outro lado da rua naquela noite, aquele garotinho de 18 anos que eu era nunca pensou que estaria 50 anos depois falando sobre isso. Não sabíamos que fazíamos história. Apenas sabíamos que algo tinha mudado”, contou Mark Segal, um dos participantes da rebelião, à agência Reuters também em 2019. “Lembro-me de dizer a mim mesmo em apenas um instante: é isso que farei pelo resto da minha vida.”

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Mark Segal tinha 18 anos quando participou da rebelião de Stonewall e, desde então, se dedica ao ativismo LGBT Foto: Brendan McDermid/REUTERS

As sementes do movimento LGBT moderno

O ano de 1969 foi propício para o levante. A sociedade americana estava em efervescência, engajando-se em protestos contra a guerra do Vietnã. Movimentos negros, latinos e feministas ganhavam força.

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Na época, ser gay era virtualmente ilegal e as leis anti-discriminação inexistentes, mas Greenwich Village era um território relativamente livre para todos: lésbicas “butch”, drag queens, mulheres transexuais negras e, claro, homens gays. Todos eram acolhidos em Stonewall.

Muitos detalhes do que aconteceu naquela madrugada estão envolvidos em diferentes perspectivas, disputas e incertezas de memórias de meio século. Mas os contornos são claros. Em uma época em que a homossexualidade era definida como doença mental e podia levar à cadeia, uma multidão diversificada de centenas de gays, bissexuais, lésbicas e transgêneros se recusou a abaixar a cabeça. E foi assim que, aos poucos, a comunidade LGBT começou a ficar cada vez mais motivada e organizada.

Os Estados Unidos já haviam sido palco de alguns protestos gays organizados e conflitos entre LGBTs e a polícia. Mas Stonewall foi um ponto de inflexão: desencadeou uma explosão sustentada e organizada que mudou o tom e o volume do ativismo LGBT no país e no mundo, alterando a forma como algumas pessoas se viam em uma sociedade que as havia relegado às sombras e à vergonha.

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“Eu sabia que merecia os mesmos direitos que qualquer outra pessoa, mas precisei de tudo isso para me fazer perceber que nós, como um povo, podíamos lutar”, conta Segal, desde então um ativista incansável pelos direitos LGBT.

Marsha P. Johnson fundou organização de defesa dos direitos trans ao lado de Sylvia Rivera Foto: Diana Davies-NYPL/Handout

Rabiscadas nas janelas fechadas com tábuas do Stonewall na noite após a invasão estavam palavras que deixaram Dale Mitchell espantado: "Apoie o Poder Gay."

“Eu nunca tinha visto ‘gay’ como parte de um slogan político antes”, contou ele à agência Associated Press em 2019. “Muito menos associado à palavra ‘poder’.”

Mitchell, então com 20 anos, não se sentia tão poderoso. Ele teve que abandonar a faculdade depois de romper com sua família por causa de sua orientação sexual, e morava em uma pensão cheia de drogas com um homem mais velho que estava mortificado pela rebelião de Stonewall.

Mitchell, porém, ficou impressionado com isso e com a multidão que se reuniu na noite após a operação, clamando pelo poder dos gays enquanto outro impasse tenso se desenvolvia com a polícia.

Muitos grupos ativistas surgiram de Stonewall. O principal foi a Frente de Libertação Gay (GLF, na sigla em inglês). Um de seus primeiros ativistas, John Knoebel, contou à Associated Press que o próprio nome da organização já era uma afronta -- à época, “homossexual” era o termo mais comum, e seus defensores eram chamados de “homófilos”. 

“'Gay' era uma palavra radical nova e dinâmica para se usar”, disse Knoebel. “Fomos a primeira organização que realmente se autodenominava gay e essa foi uma palavra ofensiva para muitas pessoas. Estávamos nos nomeando e nos identificando e, finalmente, saindo do armário, abertos e radicais. ”

Vista do Stonewall National Monument, nas proximidades do Stonewall Inn Foto: Mike Segar/REUTERS

O GLF era, de fato, muito mais radical que os grupos anteriores, preocupados em se manifestar de forma decorosa, com a mensagem de que gays eram pessoas comuns.Os membros da GLF “não se importavam mais com essas sutilezas”, disse à Associated Press Karla Jay, então uma estudante de graduação que se tornou a primeira líder feminina do grupo. “Queríamos que a sociedade mudasse.”

De curta duração, mas influente, o GLF marchou na Times Square e fez piquetes em sedes de jornais. Os membros iniciaram uma série de outros grupos, incluindo uma organização de defesa dos direitos trans fundada por Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera.

Os ativistas pressionaram as autoridades a aprovar leis antidiscriminação e os psiquiatras a pararem de classificar a homossexualidade como um transtorno mental. Os novos grupos realizavam bailes para socializar ao ar livre.

Um legado de décadas

O bar em si não durou muito depois da invasão. Ao longo dos anos que se seguiram, o espaço foi dividido e usado por uma loja de bagels, um restaurante chinês e outros estabelecimentos, incluindo um bar gay chamado Stonewall, que funcionou brevemente na 51 Christopher no final dos anos 1980. As reformas mudaram a decoração do interior. 

Em 1990, um bar chamado Stonewall abriu na metade ocidental do local original (53 Christopher Street), sendo renovado e retomando o nome Stonewall Inn em 2007. Os prédios entraram para a lista de marcos históricos nacionais dos EUA em 2000. Em 2016, o então presidente dos Estados Unidos Barack Obama tornou o bar um monumento nacional.

Sara Ramirez performa durante abertura de celebrações de 50 anos de Stonewall, em 2019 Foto: Lucas Jackson/REUTERS

O novo Stonewall continua sendo um ponto de encontro para ativistas LGBT. As pessoas se reuniram lá para comemorar quando a Suprema Corte legalizou o casamento gay em todo o país em 2015; para lamentar o próximo ano quando um homem armado matou 49 pessoas em uma boate gay na Flórida; e para protestar em 2017, quando o presidente Donald Trump rescindiu a orientação que incentivava os alunos transgêneros a usarem os banheiros de sua escolha na escola.

As últimas grandes celebrações realizadas no espaço aconteceram em 2019, quando a rebelião completou 50 anos. Em 2020, a pandemia de coronavírus impediu festividades. Neste ano, o Stonewall hospedou um evento virtual para dar início ao mês do Orgulho LGBT. / Com AP e REUTERS

Em 28 de junho de 1969, a polícia de Nova York fez uma batida no bar Stonewall Inn, sob o pretexto de interromper a venda de bebidas destiladas no estabelecimento, de propriedade da máfia, que não tinha licença para isso.

Um antigo estábulo de cavalos em edifícios contíguos nas ruas Christopher Street 51 e 53, o Stonewall era um local sinuoso com janelas escurecidas, paredes pintadas de preto e um porteiro que examinava os clientes em potencial através de um olho mágico. Mas também tinha uma pista de dança popular e pulsante que atraiu um público diversificado, em grande parte jovem e LGBT.

Stonewall fazia parte de uma cena gay de Greenwich Village que era conhecida, mas não aberta. Na época, relacionar-se com alguém do mesmo sexo ou vestir-se de forma considerada inadequada podia resultar em prisão, e vários bares haviam perdido as licenças de comercialização de bebidas alcoólicas por servirem pessoas que se enquadravam nessa descrição. Era comum que clubes noturnos gays funcionassem ilegalmente.

A polícia, não raro, abusava de clientes gays em algumas batidas. Naquela madrugada, os patronos e o público de Stonewall, fartos da situação, decidiram reagir.

Ativistas comemoram decisão da Suprema Corte americana favorável aos direitos LGBT na frente do Stonewall em Nova York Foto: Shannon Stapleton/REUTERS

Os frequentadores do bar começaram a atirar moedas, depois latas de cerveja e garrafas, contou o historiador David Carter em seu meticuloso livro Stonewall: The Riots that Sparked the Gay Revolution. Em algum momento, uma pedra de paralelepípedo foi atirada contra um carro de patrulha, fazendo com que a polícia organizasse uma barricada dentro dele.

A multidão ficou maior e mais inquieta, jogando tijolos, garrafas cheias de combustível e latas de lixo. Algumas pessoas tentaram colocar fogo no local, enquanto outras bateram na janela de compensado com um parquímetro.

Enquanto isso, os policiais temiam por suas vidas, de pistolas em punho, diz o relato de Carter.A polícia ficou chocada, escreveu o historiador, não apenas com a rapidez com que a multidão havia crescido, mas com o fato de homossexuais, normalmente aquiescentes, estarem em força, gritando "Poder gay!"

“Foi como quando Rosa Parks não desistiu de seu lugar no ônibus. Você só consegue empurrar as pessoas por um certo tempo”, disse o militante LGBT Randy Wicker à agência Reuters em 2019, em razão dos 50 anos da revolta. “Quando eles adquirem um certo senso de respeito próprio, e dizem que estão cansados de ser tratados dessa forma, eles resistem.”

Eventualmente, o corpo de bombeiros e o esquadrão de choque da polícia conhecido como Força Tática de Patrulha (TPF) chegaram, separando a multidão. Mas houve mais tumultos e batalhas de rua com a TPF na noite seguinte, e uma atmosfera de tensão mais contida permaneceu em Greenwich Village por mais alguns dias antes de uma noite final de indignação.

“Parado do outro lado da rua naquela noite, aquele garotinho de 18 anos que eu era nunca pensou que estaria 50 anos depois falando sobre isso. Não sabíamos que fazíamos história. Apenas sabíamos que algo tinha mudado”, contou Mark Segal, um dos participantes da rebelião, à agência Reuters também em 2019. “Lembro-me de dizer a mim mesmo em apenas um instante: é isso que farei pelo resto da minha vida.”

Mark Segal tinha 18 anos quando participou da rebelião de Stonewall e, desde então, se dedica ao ativismo LGBT Foto: Brendan McDermid/REUTERS

As sementes do movimento LGBT moderno

O ano de 1969 foi propício para o levante. A sociedade americana estava em efervescência, engajando-se em protestos contra a guerra do Vietnã. Movimentos negros, latinos e feministas ganhavam força.

Na época, ser gay era virtualmente ilegal e as leis anti-discriminação inexistentes, mas Greenwich Village era um território relativamente livre para todos: lésbicas “butch”, drag queens, mulheres transexuais negras e, claro, homens gays. Todos eram acolhidos em Stonewall.

Muitos detalhes do que aconteceu naquela madrugada estão envolvidos em diferentes perspectivas, disputas e incertezas de memórias de meio século. Mas os contornos são claros. Em uma época em que a homossexualidade era definida como doença mental e podia levar à cadeia, uma multidão diversificada de centenas de gays, bissexuais, lésbicas e transgêneros se recusou a abaixar a cabeça. E foi assim que, aos poucos, a comunidade LGBT começou a ficar cada vez mais motivada e organizada.

Os Estados Unidos já haviam sido palco de alguns protestos gays organizados e conflitos entre LGBTs e a polícia. Mas Stonewall foi um ponto de inflexão: desencadeou uma explosão sustentada e organizada que mudou o tom e o volume do ativismo LGBT no país e no mundo, alterando a forma como algumas pessoas se viam em uma sociedade que as havia relegado às sombras e à vergonha.

“Eu sabia que merecia os mesmos direitos que qualquer outra pessoa, mas precisei de tudo isso para me fazer perceber que nós, como um povo, podíamos lutar”, conta Segal, desde então um ativista incansável pelos direitos LGBT.

Marsha P. Johnson fundou organização de defesa dos direitos trans ao lado de Sylvia Rivera Foto: Diana Davies-NYPL/Handout

Rabiscadas nas janelas fechadas com tábuas do Stonewall na noite após a invasão estavam palavras que deixaram Dale Mitchell espantado: "Apoie o Poder Gay."

“Eu nunca tinha visto ‘gay’ como parte de um slogan político antes”, contou ele à agência Associated Press em 2019. “Muito menos associado à palavra ‘poder’.”

Mitchell, então com 20 anos, não se sentia tão poderoso. Ele teve que abandonar a faculdade depois de romper com sua família por causa de sua orientação sexual, e morava em uma pensão cheia de drogas com um homem mais velho que estava mortificado pela rebelião de Stonewall.

Mitchell, porém, ficou impressionado com isso e com a multidão que se reuniu na noite após a operação, clamando pelo poder dos gays enquanto outro impasse tenso se desenvolvia com a polícia.

Muitos grupos ativistas surgiram de Stonewall. O principal foi a Frente de Libertação Gay (GLF, na sigla em inglês). Um de seus primeiros ativistas, John Knoebel, contou à Associated Press que o próprio nome da organização já era uma afronta -- à época, “homossexual” era o termo mais comum, e seus defensores eram chamados de “homófilos”. 

“'Gay' era uma palavra radical nova e dinâmica para se usar”, disse Knoebel. “Fomos a primeira organização que realmente se autodenominava gay e essa foi uma palavra ofensiva para muitas pessoas. Estávamos nos nomeando e nos identificando e, finalmente, saindo do armário, abertos e radicais. ”

Vista do Stonewall National Monument, nas proximidades do Stonewall Inn Foto: Mike Segar/REUTERS

O GLF era, de fato, muito mais radical que os grupos anteriores, preocupados em se manifestar de forma decorosa, com a mensagem de que gays eram pessoas comuns.Os membros da GLF “não se importavam mais com essas sutilezas”, disse à Associated Press Karla Jay, então uma estudante de graduação que se tornou a primeira líder feminina do grupo. “Queríamos que a sociedade mudasse.”

De curta duração, mas influente, o GLF marchou na Times Square e fez piquetes em sedes de jornais. Os membros iniciaram uma série de outros grupos, incluindo uma organização de defesa dos direitos trans fundada por Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera.

Os ativistas pressionaram as autoridades a aprovar leis antidiscriminação e os psiquiatras a pararem de classificar a homossexualidade como um transtorno mental. Os novos grupos realizavam bailes para socializar ao ar livre.

Um legado de décadas

O bar em si não durou muito depois da invasão. Ao longo dos anos que se seguiram, o espaço foi dividido e usado por uma loja de bagels, um restaurante chinês e outros estabelecimentos, incluindo um bar gay chamado Stonewall, que funcionou brevemente na 51 Christopher no final dos anos 1980. As reformas mudaram a decoração do interior. 

Em 1990, um bar chamado Stonewall abriu na metade ocidental do local original (53 Christopher Street), sendo renovado e retomando o nome Stonewall Inn em 2007. Os prédios entraram para a lista de marcos históricos nacionais dos EUA em 2000. Em 2016, o então presidente dos Estados Unidos Barack Obama tornou o bar um monumento nacional.

Sara Ramirez performa durante abertura de celebrações de 50 anos de Stonewall, em 2019 Foto: Lucas Jackson/REUTERS

O novo Stonewall continua sendo um ponto de encontro para ativistas LGBT. As pessoas se reuniram lá para comemorar quando a Suprema Corte legalizou o casamento gay em todo o país em 2015; para lamentar o próximo ano quando um homem armado matou 49 pessoas em uma boate gay na Flórida; e para protestar em 2017, quando o presidente Donald Trump rescindiu a orientação que incentivava os alunos transgêneros a usarem os banheiros de sua escolha na escola.

As últimas grandes celebrações realizadas no espaço aconteceram em 2019, quando a rebelião completou 50 anos. Em 2020, a pandemia de coronavírus impediu festividades. Neste ano, o Stonewall hospedou um evento virtual para dar início ao mês do Orgulho LGBT. / Com AP e REUTERS

Em 28 de junho de 1969, a polícia de Nova York fez uma batida no bar Stonewall Inn, sob o pretexto de interromper a venda de bebidas destiladas no estabelecimento, de propriedade da máfia, que não tinha licença para isso.

Um antigo estábulo de cavalos em edifícios contíguos nas ruas Christopher Street 51 e 53, o Stonewall era um local sinuoso com janelas escurecidas, paredes pintadas de preto e um porteiro que examinava os clientes em potencial através de um olho mágico. Mas também tinha uma pista de dança popular e pulsante que atraiu um público diversificado, em grande parte jovem e LGBT.

Stonewall fazia parte de uma cena gay de Greenwich Village que era conhecida, mas não aberta. Na época, relacionar-se com alguém do mesmo sexo ou vestir-se de forma considerada inadequada podia resultar em prisão, e vários bares haviam perdido as licenças de comercialização de bebidas alcoólicas por servirem pessoas que se enquadravam nessa descrição. Era comum que clubes noturnos gays funcionassem ilegalmente.

A polícia, não raro, abusava de clientes gays em algumas batidas. Naquela madrugada, os patronos e o público de Stonewall, fartos da situação, decidiram reagir.

Ativistas comemoram decisão da Suprema Corte americana favorável aos direitos LGBT na frente do Stonewall em Nova York Foto: Shannon Stapleton/REUTERS

Os frequentadores do bar começaram a atirar moedas, depois latas de cerveja e garrafas, contou o historiador David Carter em seu meticuloso livro Stonewall: The Riots that Sparked the Gay Revolution. Em algum momento, uma pedra de paralelepípedo foi atirada contra um carro de patrulha, fazendo com que a polícia organizasse uma barricada dentro dele.

A multidão ficou maior e mais inquieta, jogando tijolos, garrafas cheias de combustível e latas de lixo. Algumas pessoas tentaram colocar fogo no local, enquanto outras bateram na janela de compensado com um parquímetro.

Enquanto isso, os policiais temiam por suas vidas, de pistolas em punho, diz o relato de Carter.A polícia ficou chocada, escreveu o historiador, não apenas com a rapidez com que a multidão havia crescido, mas com o fato de homossexuais, normalmente aquiescentes, estarem em força, gritando "Poder gay!"

“Foi como quando Rosa Parks não desistiu de seu lugar no ônibus. Você só consegue empurrar as pessoas por um certo tempo”, disse o militante LGBT Randy Wicker à agência Reuters em 2019, em razão dos 50 anos da revolta. “Quando eles adquirem um certo senso de respeito próprio, e dizem que estão cansados de ser tratados dessa forma, eles resistem.”

Eventualmente, o corpo de bombeiros e o esquadrão de choque da polícia conhecido como Força Tática de Patrulha (TPF) chegaram, separando a multidão. Mas houve mais tumultos e batalhas de rua com a TPF na noite seguinte, e uma atmosfera de tensão mais contida permaneceu em Greenwich Village por mais alguns dias antes de uma noite final de indignação.

“Parado do outro lado da rua naquela noite, aquele garotinho de 18 anos que eu era nunca pensou que estaria 50 anos depois falando sobre isso. Não sabíamos que fazíamos história. Apenas sabíamos que algo tinha mudado”, contou Mark Segal, um dos participantes da rebelião, à agência Reuters também em 2019. “Lembro-me de dizer a mim mesmo em apenas um instante: é isso que farei pelo resto da minha vida.”

Mark Segal tinha 18 anos quando participou da rebelião de Stonewall e, desde então, se dedica ao ativismo LGBT Foto: Brendan McDermid/REUTERS

As sementes do movimento LGBT moderno

O ano de 1969 foi propício para o levante. A sociedade americana estava em efervescência, engajando-se em protestos contra a guerra do Vietnã. Movimentos negros, latinos e feministas ganhavam força.

Na época, ser gay era virtualmente ilegal e as leis anti-discriminação inexistentes, mas Greenwich Village era um território relativamente livre para todos: lésbicas “butch”, drag queens, mulheres transexuais negras e, claro, homens gays. Todos eram acolhidos em Stonewall.

Muitos detalhes do que aconteceu naquela madrugada estão envolvidos em diferentes perspectivas, disputas e incertezas de memórias de meio século. Mas os contornos são claros. Em uma época em que a homossexualidade era definida como doença mental e podia levar à cadeia, uma multidão diversificada de centenas de gays, bissexuais, lésbicas e transgêneros se recusou a abaixar a cabeça. E foi assim que, aos poucos, a comunidade LGBT começou a ficar cada vez mais motivada e organizada.

Os Estados Unidos já haviam sido palco de alguns protestos gays organizados e conflitos entre LGBTs e a polícia. Mas Stonewall foi um ponto de inflexão: desencadeou uma explosão sustentada e organizada que mudou o tom e o volume do ativismo LGBT no país e no mundo, alterando a forma como algumas pessoas se viam em uma sociedade que as havia relegado às sombras e à vergonha.

“Eu sabia que merecia os mesmos direitos que qualquer outra pessoa, mas precisei de tudo isso para me fazer perceber que nós, como um povo, podíamos lutar”, conta Segal, desde então um ativista incansável pelos direitos LGBT.

Marsha P. Johnson fundou organização de defesa dos direitos trans ao lado de Sylvia Rivera Foto: Diana Davies-NYPL/Handout

Rabiscadas nas janelas fechadas com tábuas do Stonewall na noite após a invasão estavam palavras que deixaram Dale Mitchell espantado: "Apoie o Poder Gay."

“Eu nunca tinha visto ‘gay’ como parte de um slogan político antes”, contou ele à agência Associated Press em 2019. “Muito menos associado à palavra ‘poder’.”

Mitchell, então com 20 anos, não se sentia tão poderoso. Ele teve que abandonar a faculdade depois de romper com sua família por causa de sua orientação sexual, e morava em uma pensão cheia de drogas com um homem mais velho que estava mortificado pela rebelião de Stonewall.

Mitchell, porém, ficou impressionado com isso e com a multidão que se reuniu na noite após a operação, clamando pelo poder dos gays enquanto outro impasse tenso se desenvolvia com a polícia.

Muitos grupos ativistas surgiram de Stonewall. O principal foi a Frente de Libertação Gay (GLF, na sigla em inglês). Um de seus primeiros ativistas, John Knoebel, contou à Associated Press que o próprio nome da organização já era uma afronta -- à época, “homossexual” era o termo mais comum, e seus defensores eram chamados de “homófilos”. 

“'Gay' era uma palavra radical nova e dinâmica para se usar”, disse Knoebel. “Fomos a primeira organização que realmente se autodenominava gay e essa foi uma palavra ofensiva para muitas pessoas. Estávamos nos nomeando e nos identificando e, finalmente, saindo do armário, abertos e radicais. ”

Vista do Stonewall National Monument, nas proximidades do Stonewall Inn Foto: Mike Segar/REUTERS

O GLF era, de fato, muito mais radical que os grupos anteriores, preocupados em se manifestar de forma decorosa, com a mensagem de que gays eram pessoas comuns.Os membros da GLF “não se importavam mais com essas sutilezas”, disse à Associated Press Karla Jay, então uma estudante de graduação que se tornou a primeira líder feminina do grupo. “Queríamos que a sociedade mudasse.”

De curta duração, mas influente, o GLF marchou na Times Square e fez piquetes em sedes de jornais. Os membros iniciaram uma série de outros grupos, incluindo uma organização de defesa dos direitos trans fundada por Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera.

Os ativistas pressionaram as autoridades a aprovar leis antidiscriminação e os psiquiatras a pararem de classificar a homossexualidade como um transtorno mental. Os novos grupos realizavam bailes para socializar ao ar livre.

Um legado de décadas

O bar em si não durou muito depois da invasão. Ao longo dos anos que se seguiram, o espaço foi dividido e usado por uma loja de bagels, um restaurante chinês e outros estabelecimentos, incluindo um bar gay chamado Stonewall, que funcionou brevemente na 51 Christopher no final dos anos 1980. As reformas mudaram a decoração do interior. 

Em 1990, um bar chamado Stonewall abriu na metade ocidental do local original (53 Christopher Street), sendo renovado e retomando o nome Stonewall Inn em 2007. Os prédios entraram para a lista de marcos históricos nacionais dos EUA em 2000. Em 2016, o então presidente dos Estados Unidos Barack Obama tornou o bar um monumento nacional.

Sara Ramirez performa durante abertura de celebrações de 50 anos de Stonewall, em 2019 Foto: Lucas Jackson/REUTERS

O novo Stonewall continua sendo um ponto de encontro para ativistas LGBT. As pessoas se reuniram lá para comemorar quando a Suprema Corte legalizou o casamento gay em todo o país em 2015; para lamentar o próximo ano quando um homem armado matou 49 pessoas em uma boate gay na Flórida; e para protestar em 2017, quando o presidente Donald Trump rescindiu a orientação que incentivava os alunos transgêneros a usarem os banheiros de sua escolha na escola.

As últimas grandes celebrações realizadas no espaço aconteceram em 2019, quando a rebelião completou 50 anos. Em 2020, a pandemia de coronavírus impediu festividades. Neste ano, o Stonewall hospedou um evento virtual para dar início ao mês do Orgulho LGBT. / Com AP e REUTERS

Em 28 de junho de 1969, a polícia de Nova York fez uma batida no bar Stonewall Inn, sob o pretexto de interromper a venda de bebidas destiladas no estabelecimento, de propriedade da máfia, que não tinha licença para isso.

Um antigo estábulo de cavalos em edifícios contíguos nas ruas Christopher Street 51 e 53, o Stonewall era um local sinuoso com janelas escurecidas, paredes pintadas de preto e um porteiro que examinava os clientes em potencial através de um olho mágico. Mas também tinha uma pista de dança popular e pulsante que atraiu um público diversificado, em grande parte jovem e LGBT.

Stonewall fazia parte de uma cena gay de Greenwich Village que era conhecida, mas não aberta. Na época, relacionar-se com alguém do mesmo sexo ou vestir-se de forma considerada inadequada podia resultar em prisão, e vários bares haviam perdido as licenças de comercialização de bebidas alcoólicas por servirem pessoas que se enquadravam nessa descrição. Era comum que clubes noturnos gays funcionassem ilegalmente.

A polícia, não raro, abusava de clientes gays em algumas batidas. Naquela madrugada, os patronos e o público de Stonewall, fartos da situação, decidiram reagir.

Ativistas comemoram decisão da Suprema Corte americana favorável aos direitos LGBT na frente do Stonewall em Nova York Foto: Shannon Stapleton/REUTERS

Os frequentadores do bar começaram a atirar moedas, depois latas de cerveja e garrafas, contou o historiador David Carter em seu meticuloso livro Stonewall: The Riots that Sparked the Gay Revolution. Em algum momento, uma pedra de paralelepípedo foi atirada contra um carro de patrulha, fazendo com que a polícia organizasse uma barricada dentro dele.

A multidão ficou maior e mais inquieta, jogando tijolos, garrafas cheias de combustível e latas de lixo. Algumas pessoas tentaram colocar fogo no local, enquanto outras bateram na janela de compensado com um parquímetro.

Enquanto isso, os policiais temiam por suas vidas, de pistolas em punho, diz o relato de Carter.A polícia ficou chocada, escreveu o historiador, não apenas com a rapidez com que a multidão havia crescido, mas com o fato de homossexuais, normalmente aquiescentes, estarem em força, gritando "Poder gay!"

“Foi como quando Rosa Parks não desistiu de seu lugar no ônibus. Você só consegue empurrar as pessoas por um certo tempo”, disse o militante LGBT Randy Wicker à agência Reuters em 2019, em razão dos 50 anos da revolta. “Quando eles adquirem um certo senso de respeito próprio, e dizem que estão cansados de ser tratados dessa forma, eles resistem.”

Eventualmente, o corpo de bombeiros e o esquadrão de choque da polícia conhecido como Força Tática de Patrulha (TPF) chegaram, separando a multidão. Mas houve mais tumultos e batalhas de rua com a TPF na noite seguinte, e uma atmosfera de tensão mais contida permaneceu em Greenwich Village por mais alguns dias antes de uma noite final de indignação.

“Parado do outro lado da rua naquela noite, aquele garotinho de 18 anos que eu era nunca pensou que estaria 50 anos depois falando sobre isso. Não sabíamos que fazíamos história. Apenas sabíamos que algo tinha mudado”, contou Mark Segal, um dos participantes da rebelião, à agência Reuters também em 2019. “Lembro-me de dizer a mim mesmo em apenas um instante: é isso que farei pelo resto da minha vida.”

Mark Segal tinha 18 anos quando participou da rebelião de Stonewall e, desde então, se dedica ao ativismo LGBT Foto: Brendan McDermid/REUTERS

As sementes do movimento LGBT moderno

O ano de 1969 foi propício para o levante. A sociedade americana estava em efervescência, engajando-se em protestos contra a guerra do Vietnã. Movimentos negros, latinos e feministas ganhavam força.

Na época, ser gay era virtualmente ilegal e as leis anti-discriminação inexistentes, mas Greenwich Village era um território relativamente livre para todos: lésbicas “butch”, drag queens, mulheres transexuais negras e, claro, homens gays. Todos eram acolhidos em Stonewall.

Muitos detalhes do que aconteceu naquela madrugada estão envolvidos em diferentes perspectivas, disputas e incertezas de memórias de meio século. Mas os contornos são claros. Em uma época em que a homossexualidade era definida como doença mental e podia levar à cadeia, uma multidão diversificada de centenas de gays, bissexuais, lésbicas e transgêneros se recusou a abaixar a cabeça. E foi assim que, aos poucos, a comunidade LGBT começou a ficar cada vez mais motivada e organizada.

Os Estados Unidos já haviam sido palco de alguns protestos gays organizados e conflitos entre LGBTs e a polícia. Mas Stonewall foi um ponto de inflexão: desencadeou uma explosão sustentada e organizada que mudou o tom e o volume do ativismo LGBT no país e no mundo, alterando a forma como algumas pessoas se viam em uma sociedade que as havia relegado às sombras e à vergonha.

“Eu sabia que merecia os mesmos direitos que qualquer outra pessoa, mas precisei de tudo isso para me fazer perceber que nós, como um povo, podíamos lutar”, conta Segal, desde então um ativista incansável pelos direitos LGBT.

Marsha P. Johnson fundou organização de defesa dos direitos trans ao lado de Sylvia Rivera Foto: Diana Davies-NYPL/Handout

Rabiscadas nas janelas fechadas com tábuas do Stonewall na noite após a invasão estavam palavras que deixaram Dale Mitchell espantado: "Apoie o Poder Gay."

“Eu nunca tinha visto ‘gay’ como parte de um slogan político antes”, contou ele à agência Associated Press em 2019. “Muito menos associado à palavra ‘poder’.”

Mitchell, então com 20 anos, não se sentia tão poderoso. Ele teve que abandonar a faculdade depois de romper com sua família por causa de sua orientação sexual, e morava em uma pensão cheia de drogas com um homem mais velho que estava mortificado pela rebelião de Stonewall.

Mitchell, porém, ficou impressionado com isso e com a multidão que se reuniu na noite após a operação, clamando pelo poder dos gays enquanto outro impasse tenso se desenvolvia com a polícia.

Muitos grupos ativistas surgiram de Stonewall. O principal foi a Frente de Libertação Gay (GLF, na sigla em inglês). Um de seus primeiros ativistas, John Knoebel, contou à Associated Press que o próprio nome da organização já era uma afronta -- à época, “homossexual” era o termo mais comum, e seus defensores eram chamados de “homófilos”. 

“'Gay' era uma palavra radical nova e dinâmica para se usar”, disse Knoebel. “Fomos a primeira organização que realmente se autodenominava gay e essa foi uma palavra ofensiva para muitas pessoas. Estávamos nos nomeando e nos identificando e, finalmente, saindo do armário, abertos e radicais. ”

Vista do Stonewall National Monument, nas proximidades do Stonewall Inn Foto: Mike Segar/REUTERS

O GLF era, de fato, muito mais radical que os grupos anteriores, preocupados em se manifestar de forma decorosa, com a mensagem de que gays eram pessoas comuns.Os membros da GLF “não se importavam mais com essas sutilezas”, disse à Associated Press Karla Jay, então uma estudante de graduação que se tornou a primeira líder feminina do grupo. “Queríamos que a sociedade mudasse.”

De curta duração, mas influente, o GLF marchou na Times Square e fez piquetes em sedes de jornais. Os membros iniciaram uma série de outros grupos, incluindo uma organização de defesa dos direitos trans fundada por Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera.

Os ativistas pressionaram as autoridades a aprovar leis antidiscriminação e os psiquiatras a pararem de classificar a homossexualidade como um transtorno mental. Os novos grupos realizavam bailes para socializar ao ar livre.

Um legado de décadas

O bar em si não durou muito depois da invasão. Ao longo dos anos que se seguiram, o espaço foi dividido e usado por uma loja de bagels, um restaurante chinês e outros estabelecimentos, incluindo um bar gay chamado Stonewall, que funcionou brevemente na 51 Christopher no final dos anos 1980. As reformas mudaram a decoração do interior. 

Em 1990, um bar chamado Stonewall abriu na metade ocidental do local original (53 Christopher Street), sendo renovado e retomando o nome Stonewall Inn em 2007. Os prédios entraram para a lista de marcos históricos nacionais dos EUA em 2000. Em 2016, o então presidente dos Estados Unidos Barack Obama tornou o bar um monumento nacional.

Sara Ramirez performa durante abertura de celebrações de 50 anos de Stonewall, em 2019 Foto: Lucas Jackson/REUTERS

O novo Stonewall continua sendo um ponto de encontro para ativistas LGBT. As pessoas se reuniram lá para comemorar quando a Suprema Corte legalizou o casamento gay em todo o país em 2015; para lamentar o próximo ano quando um homem armado matou 49 pessoas em uma boate gay na Flórida; e para protestar em 2017, quando o presidente Donald Trump rescindiu a orientação que incentivava os alunos transgêneros a usarem os banheiros de sua escolha na escola.

As últimas grandes celebrações realizadas no espaço aconteceram em 2019, quando a rebelião completou 50 anos. Em 2020, a pandemia de coronavírus impediu festividades. Neste ano, o Stonewall hospedou um evento virtual para dar início ao mês do Orgulho LGBT. / Com AP e REUTERS

Em 28 de junho de 1969, a polícia de Nova York fez uma batida no bar Stonewall Inn, sob o pretexto de interromper a venda de bebidas destiladas no estabelecimento, de propriedade da máfia, que não tinha licença para isso.

Um antigo estábulo de cavalos em edifícios contíguos nas ruas Christopher Street 51 e 53, o Stonewall era um local sinuoso com janelas escurecidas, paredes pintadas de preto e um porteiro que examinava os clientes em potencial através de um olho mágico. Mas também tinha uma pista de dança popular e pulsante que atraiu um público diversificado, em grande parte jovem e LGBT.

Stonewall fazia parte de uma cena gay de Greenwich Village que era conhecida, mas não aberta. Na época, relacionar-se com alguém do mesmo sexo ou vestir-se de forma considerada inadequada podia resultar em prisão, e vários bares haviam perdido as licenças de comercialização de bebidas alcoólicas por servirem pessoas que se enquadravam nessa descrição. Era comum que clubes noturnos gays funcionassem ilegalmente.

A polícia, não raro, abusava de clientes gays em algumas batidas. Naquela madrugada, os patronos e o público de Stonewall, fartos da situação, decidiram reagir.

Ativistas comemoram decisão da Suprema Corte americana favorável aos direitos LGBT na frente do Stonewall em Nova York Foto: Shannon Stapleton/REUTERS

Os frequentadores do bar começaram a atirar moedas, depois latas de cerveja e garrafas, contou o historiador David Carter em seu meticuloso livro Stonewall: The Riots that Sparked the Gay Revolution. Em algum momento, uma pedra de paralelepípedo foi atirada contra um carro de patrulha, fazendo com que a polícia organizasse uma barricada dentro dele.

A multidão ficou maior e mais inquieta, jogando tijolos, garrafas cheias de combustível e latas de lixo. Algumas pessoas tentaram colocar fogo no local, enquanto outras bateram na janela de compensado com um parquímetro.

Enquanto isso, os policiais temiam por suas vidas, de pistolas em punho, diz o relato de Carter.A polícia ficou chocada, escreveu o historiador, não apenas com a rapidez com que a multidão havia crescido, mas com o fato de homossexuais, normalmente aquiescentes, estarem em força, gritando "Poder gay!"

“Foi como quando Rosa Parks não desistiu de seu lugar no ônibus. Você só consegue empurrar as pessoas por um certo tempo”, disse o militante LGBT Randy Wicker à agência Reuters em 2019, em razão dos 50 anos da revolta. “Quando eles adquirem um certo senso de respeito próprio, e dizem que estão cansados de ser tratados dessa forma, eles resistem.”

Eventualmente, o corpo de bombeiros e o esquadrão de choque da polícia conhecido como Força Tática de Patrulha (TPF) chegaram, separando a multidão. Mas houve mais tumultos e batalhas de rua com a TPF na noite seguinte, e uma atmosfera de tensão mais contida permaneceu em Greenwich Village por mais alguns dias antes de uma noite final de indignação.

“Parado do outro lado da rua naquela noite, aquele garotinho de 18 anos que eu era nunca pensou que estaria 50 anos depois falando sobre isso. Não sabíamos que fazíamos história. Apenas sabíamos que algo tinha mudado”, contou Mark Segal, um dos participantes da rebelião, à agência Reuters também em 2019. “Lembro-me de dizer a mim mesmo em apenas um instante: é isso que farei pelo resto da minha vida.”

Mark Segal tinha 18 anos quando participou da rebelião de Stonewall e, desde então, se dedica ao ativismo LGBT Foto: Brendan McDermid/REUTERS

As sementes do movimento LGBT moderno

O ano de 1969 foi propício para o levante. A sociedade americana estava em efervescência, engajando-se em protestos contra a guerra do Vietnã. Movimentos negros, latinos e feministas ganhavam força.

Na época, ser gay era virtualmente ilegal e as leis anti-discriminação inexistentes, mas Greenwich Village era um território relativamente livre para todos: lésbicas “butch”, drag queens, mulheres transexuais negras e, claro, homens gays. Todos eram acolhidos em Stonewall.

Muitos detalhes do que aconteceu naquela madrugada estão envolvidos em diferentes perspectivas, disputas e incertezas de memórias de meio século. Mas os contornos são claros. Em uma época em que a homossexualidade era definida como doença mental e podia levar à cadeia, uma multidão diversificada de centenas de gays, bissexuais, lésbicas e transgêneros se recusou a abaixar a cabeça. E foi assim que, aos poucos, a comunidade LGBT começou a ficar cada vez mais motivada e organizada.

Os Estados Unidos já haviam sido palco de alguns protestos gays organizados e conflitos entre LGBTs e a polícia. Mas Stonewall foi um ponto de inflexão: desencadeou uma explosão sustentada e organizada que mudou o tom e o volume do ativismo LGBT no país e no mundo, alterando a forma como algumas pessoas se viam em uma sociedade que as havia relegado às sombras e à vergonha.

“Eu sabia que merecia os mesmos direitos que qualquer outra pessoa, mas precisei de tudo isso para me fazer perceber que nós, como um povo, podíamos lutar”, conta Segal, desde então um ativista incansável pelos direitos LGBT.

Marsha P. Johnson fundou organização de defesa dos direitos trans ao lado de Sylvia Rivera Foto: Diana Davies-NYPL/Handout

Rabiscadas nas janelas fechadas com tábuas do Stonewall na noite após a invasão estavam palavras que deixaram Dale Mitchell espantado: "Apoie o Poder Gay."

“Eu nunca tinha visto ‘gay’ como parte de um slogan político antes”, contou ele à agência Associated Press em 2019. “Muito menos associado à palavra ‘poder’.”

Mitchell, então com 20 anos, não se sentia tão poderoso. Ele teve que abandonar a faculdade depois de romper com sua família por causa de sua orientação sexual, e morava em uma pensão cheia de drogas com um homem mais velho que estava mortificado pela rebelião de Stonewall.

Mitchell, porém, ficou impressionado com isso e com a multidão que se reuniu na noite após a operação, clamando pelo poder dos gays enquanto outro impasse tenso se desenvolvia com a polícia.

Muitos grupos ativistas surgiram de Stonewall. O principal foi a Frente de Libertação Gay (GLF, na sigla em inglês). Um de seus primeiros ativistas, John Knoebel, contou à Associated Press que o próprio nome da organização já era uma afronta -- à época, “homossexual” era o termo mais comum, e seus defensores eram chamados de “homófilos”. 

“'Gay' era uma palavra radical nova e dinâmica para se usar”, disse Knoebel. “Fomos a primeira organização que realmente se autodenominava gay e essa foi uma palavra ofensiva para muitas pessoas. Estávamos nos nomeando e nos identificando e, finalmente, saindo do armário, abertos e radicais. ”

Vista do Stonewall National Monument, nas proximidades do Stonewall Inn Foto: Mike Segar/REUTERS

O GLF era, de fato, muito mais radical que os grupos anteriores, preocupados em se manifestar de forma decorosa, com a mensagem de que gays eram pessoas comuns.Os membros da GLF “não se importavam mais com essas sutilezas”, disse à Associated Press Karla Jay, então uma estudante de graduação que se tornou a primeira líder feminina do grupo. “Queríamos que a sociedade mudasse.”

De curta duração, mas influente, o GLF marchou na Times Square e fez piquetes em sedes de jornais. Os membros iniciaram uma série de outros grupos, incluindo uma organização de defesa dos direitos trans fundada por Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera.

Os ativistas pressionaram as autoridades a aprovar leis antidiscriminação e os psiquiatras a pararem de classificar a homossexualidade como um transtorno mental. Os novos grupos realizavam bailes para socializar ao ar livre.

Um legado de décadas

O bar em si não durou muito depois da invasão. Ao longo dos anos que se seguiram, o espaço foi dividido e usado por uma loja de bagels, um restaurante chinês e outros estabelecimentos, incluindo um bar gay chamado Stonewall, que funcionou brevemente na 51 Christopher no final dos anos 1980. As reformas mudaram a decoração do interior. 

Em 1990, um bar chamado Stonewall abriu na metade ocidental do local original (53 Christopher Street), sendo renovado e retomando o nome Stonewall Inn em 2007. Os prédios entraram para a lista de marcos históricos nacionais dos EUA em 2000. Em 2016, o então presidente dos Estados Unidos Barack Obama tornou o bar um monumento nacional.

Sara Ramirez performa durante abertura de celebrações de 50 anos de Stonewall, em 2019 Foto: Lucas Jackson/REUTERS

O novo Stonewall continua sendo um ponto de encontro para ativistas LGBT. As pessoas se reuniram lá para comemorar quando a Suprema Corte legalizou o casamento gay em todo o país em 2015; para lamentar o próximo ano quando um homem armado matou 49 pessoas em uma boate gay na Flórida; e para protestar em 2017, quando o presidente Donald Trump rescindiu a orientação que incentivava os alunos transgêneros a usarem os banheiros de sua escolha na escola.

As últimas grandes celebrações realizadas no espaço aconteceram em 2019, quando a rebelião completou 50 anos. Em 2020, a pandemia de coronavírus impediu festividades. Neste ano, o Stonewall hospedou um evento virtual para dar início ao mês do Orgulho LGBT. / Com AP e REUTERS

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