Em um discurso nesta sexta-feira, 25, no gabinete de paredes bege no qual ele vem conduzindo grande parte de seus negócios públicos neste mês, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, não fez menção à guerra na Ucrânia. Em vez disso, ele expandiu uma obsessão pessoal: a cultura do cancelamento.
As elites ocidentais “cancelaram” a autora J.K. Rowling porque ela “não agradou aos fãs das chamadas liberdades de gênero”, disse Putin em seus comentários televisionados nacionalmente, ladeado por duas bandeiras russas. Rowling foi amplamente criticada em 2020 depois de expressar apoio a um pesquisador cujas opiniões sobre pessoas trans foram condenadas por um tribunal.
O Japão, afirmou, “decidiu cinicamente ‘cancelar’” o fato de que foram os EUA que lançaram bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki no fim da 2ª Guerra. E agora, disse ele, o Ocidente está ocupado “cancelando” a Rússia, “um país milenar, nosso povo”.
O fato de o presidente russo ter feito uma dissertação sobre o discurso público ocidental nesta sexta-feira pode parecer estranho em um momento em que a Rússia está travando o que alguns analistas acreditam ser sua guerra mais sangrenta desde a invasão soviética do Afeganistão na década de 80.
Mas ressalta como Putin tenta canalizar queixas culturais e estereótipos comuns para ganho político – enquanto usa uma linguagem que também lhe permite falar diretamente com possíveis aliados no Ocidente.
“Essa é sua frente cultural”, disse Andrei Kolesnikov, membro sênior do Carnegie Moscow Center. “Ele também está em guerra lá.” Falando no início de uma videoconferência com figuras culturais russas, Putin disse que “o proverbial ‘cultura do cancelamento’ tornou-se o cancelamento da cultura”.
E, como parece inevitável nos discursos de Putin nos dias de hoje, os nazistas também surgiram.
“Os nomes de Tchaikovsky, Shostakovich e Rachmaninoff estão sendo removidos dos Playbills. Escritores russos e seus livros estão sendo proibidos”, disse Putin. “A última vez que uma campanha em massa para destruir literatura censurável foi realizada pelos nazistas na Alemanha há quase 90 anos.”
Público doméstico
No momento, disse Kolesnikov, o principal público de Putin quando critica a “cultura do cancelamento” ocidental é doméstico, com o Kremlin tentando alimentar as queixas contra o Ocidente, das quais Putin extrai muito de seu apoio. Mas colocar a Rússia como protetora dos valores tradicionais diante da escravidão do liberalismo devasso também é uma mensagem que encontra simpatia em todo o mundo – incluindo entre comentaristas de direita americanos como Tucker Carlson, da Fox News, cujos monólogos são frequentemente exibidos na televisão estatal russa.
“Temos o direito constitucional a uma imprensa livre, mas não a temos”, disse Carlson, dublado em russo, em um clipe de seu programa que foi exibido em um segmento de notícias do Canal 1, controlado pelo Estado, esta semana. “E isso não é propaganda russa.”
Putin definiu na sexta-feira a “cultura do cancelamento” como o “ostracismo público, boicote e até silenciamento completo” de pessoas que “não se encaixam nos modelos modernos, por mais absurdos que sejam”.
Foi pelo menos a terceira vez nos últimos meses que ele falou sobre o assunto, algo que parece resumir para ele a hipocrisia e a superficialidade das elites ocidentais.
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O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, acusou o governo americano de atrapalhar as negociações com a Ucrânia
É também uma mensagem particularmente importante para Putin agora, enquanto ele tenta convencer os russos de que eles não precisam se desesperar porque seu país está se tornando um pária no Ocidente, com empresas e instituições culturais cortando laços.
O Spotify, gigante do streaming de música, tornou-se na sexta-feira a mais recente empresa a suspender as operações na Rússia, depois de cobrir Moscou em anúncios quando entrou no mercado russo em 2020.
“A cultura doméstica sempre protegeu a identidade da Rússia”, disse Putin. “Ela aceitou prontamente tudo de melhor e criativo, mas rejeitou o enganoso e passageiro, o que destruiu a continuidade de nossos valores espirituais, princípios morais e memória histórica.”
Na linha de frente
A Rússia, segundo o argumento de Putin, é culturalmente superior, porque respeita a história e os valores tradicionais. Agora, diz ele, o Ocidente está traindo sua “russofobia” ao tentar “cancelar” a própria Rússia, incluindo suas contribuições para as artes e para a história, particularmente para a derrota da Alemanha nazista.
Mas quão amplamente as figuras culturais russas devem ser punidas em resposta à guerra na Ucrânia é um tópico de debate em todo o mundo. Alguns pediram o isolamento total da Rússia, enquanto outros argumentam que a proibição geral de todas as entradas russas em festivais de cinema, por exemplo, vai longe demais.
Sem cancelamento aos russos
No geral, no entanto, relativamente poucos artistas russos foram “cancelados”, como Putin diria. Embora haja exemplos dispersos de organizações artísticas no Ocidente cancelando obras e artistas russos após a invasão da Ucrânia por Putin, a grande maioria continuou a destacar a cultura russa.
O Metropolitan Opera na sexta-feira estava abrindo um renascimento de Eugene Onegin, de Tchaikovsky, com três artistas russos. Naquela mesma noite, a Filarmônica de Nova York tocava a Nona Sinfonia de Shostakovich (na próxima semana, a orquestra tocará Rachmaninoff e Prokofiev). A Sinfônica de Chicago, por sua vez, está no meio de uma série de concertos só de Tchaikovsky.
Para Putin, porém, a ideia de que o Ocidente está se levantando contra todas as coisas russas é um contraste conveniente. Ele fez com que o maestro Valery Gergiev se juntasse a ele para a videoconferência de sexta-feira, que foi realizada para marcar o Dia dos Trabalhadores da Cultura na Rússia e homenageou os vencedores de um prêmio de artes do Kremlin.
Gergiev, um proeminente defensor de Putin, foi removido de seu cargo de regente-chefe da Filarmônica de Munique neste mês depois que ele se recusou a denunciar a invasão da Ucrânia. Na sexta-feira, Putin mostrou o que parecia ser uma recompensa pela lealdade de Gergiev: ele perguntou ao maestro se ele estava interessado em “recriar uma diretoria comum” que unisse o Teatro Bolshoi em Moscou ao Teatro Mariinsky em São Petersburgo./NYT