Shahd e o medo das bombas: a história da jovem que atualizou o Brasil sobre a guerra em Gaza


A estudante universitária Shahd Albanna, de 18 anos, morava há um ano e meio no território palestino cercado por Israel, depois da morte da mãe jornalista por câncer

Por Felipe Frazão
Atualização:

BRASÍLIA - Em 37 dias, Shahd Albanna tornou-se um rosto nacionalmente conhecido do Brasil. A jovem brasileira e palestina, de 18 anos, informava o País, com boletins diários nas redes sociais, sobre a saga do grupo de 32 pessoas que viveram a angústia e o risco de fugir da guerra entre as Forças de Defesa de Israel e o grupo terrorista Hamas na Faixa de Gaza.

A reportagem do Estadão foi a última a ter uma conversa exclusiva com ela, já num quente início de noite na Base Aérea de Brasília, nesta terça-feira, dia 14.

Shahd e outros repatriados estavam exaustos. Haviam desembarcado a menos de 24 horas, passaram boa parte da noite em claro. Eles concederiam dezenas de entrevistas naquela tarde. Atenderam 85 jornalistas, da imprensa nacional e estrangeira. Cada um por cerca de 5 minutos. Por se expressar confortavelmente em português, a menina era uma da mais requisitadas e permaneceu até o fim.

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“Eu só queria agradecer muito a todos que nos acompanharam, ao governo e ao pessoal que torceu para chegarmos até aqui. Muito obrigada”, disse Shahd, quando questionada sobre o que ela própria tinha vontade de dizer, em vez de responder, após a maratona de entrevistas.

Shahd e outros brasileiros que vieram da zona de Guerra da Faixa de Gaza no Oriente Médio ficaram temporariamente no Hotel de Trânsito dos Oficiais na Base Aérea de Brasília. Foto: WILTON JUNIOR

A conversa ocorreu já na penumbra, no quintal do Hotel de Trânsito de Oficiais da Aeronáutica, onde o grupo passou a primeira noite no Brasil. Shahd estava prester a jantar pela primeira vez, mas tinha desejo de comer algo muito típico: “Faz quase dois anos que estou querendo comer um pão de queijo”.

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A estudante universitária carregava no peito uma medalha com o mapa da Faixa de Gaza. A jóia dourada expressa um significado singular neste momento. Representa o futuro e o passado. A terra onde ainda estão seus únicos familiares e amigos no mundo. E onde despediu-se da mãe. “É um mapa e a bandeira da Palestina. Eu comprei esse colar com a minha mãe”, lembrou a jovem.

Shahd tem 18 anos e dava boletins sobre a guerra em Gaza nas redes sociais Foto: WILTON JUNIOR

A pior guerra em Gaza

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Shahd não quis falar sobre o pai. Nem sequer o nome da mãe. Em respeito a ela e à orientação de psicólogos do SUS especializados em situações traumáticas, a reportagem não insistiu em perguntas que pudessem desesestabilizar os repatriados.

Os 32 resgatados permanecem sob supervisão direta de psicólogos do Sistema Único de Saúde (SUS). Crianças se assustaram com fotógrafos que vestiam coletes com bolsos diversos, lotados de equipamentos e lentes. Associaram a imagem à de homens-bomba e perguntaram aos piscólgos se os repórteres fotográficos eram “homens maus”, contou a Débora Noal, especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial em Desastres da Fundação Oswaldo Cruz.

“Uma mãe disse que rezava todos noite para que o filho sobrevivesse mais 24 horas e que chegou num lugar que finalmente eles podem dormir tranquilos”, relatou Noal. “Cada avião que passava no céu, os pequeninhos diziam ‘bomba’, ‘avião-bomba’.”

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Lula recebeu os brasileiros que estavam retidos em Gaza e conversou com Shahd Albanna Foto: WILTON JUNIOR

Por iniciativa própria, Shahd havia contado ao desembarcar na base aérea que vivia em Gaza porque viajara com a mãe, que tinha um câncer terminal e desejava despedir-se de parentes. Ela morreria em Gaza, e Shahd decidiu ficar por lá, ao lado da irmã Shams Albanna, de 14 anos, da avó materna e outros parentes.

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Shahd nasceu em Gaza. A família vivia na parcela do centro para o Norte, justamente a que foi mais atingida pelos militares de Israel. Aos 11 anos, veio morar no Brasil com a mãe. Estabeleceram-se em São Paulo e ficaram até um ano e meio atrás. Retornaram sem medo dos conflitos.

Shahd diz que o atual conflito em Gaza tem uma dimensão maior que os anteriores Foto: WILTON JUNIOR

Civis e o atentado do Hamas

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Ela conta que os civis palestinos de Gaza não sabiam do ataque terrorista do Hamas. E relata ter se surpreendido com o bombardeio israelense, em revide, que atingiu de uma só vez diversos pontos do território. Não era uma troca de hostilidades corriqueira, ou como ela expressa, um “guerra normal”, como ela já havia vivenciado.

“Achamos que ia ser uma guerra ‘normal’, como sempre acontece. A Cidade de Gaza sempre foi área de guerra, sempre acontece, mas por uns dias e acaba. Dessa vez foi algo horrível, diferente. O pessoal não estava entendendo o que estava acontecendo ainda, porque aconteceu de uma só vez em vários lugares. Todos ficaram assustados. Eles começaram a jogar bombas em todos os lugares, a matar crianças aletoriamente. Minha casa foi bombardeada, mas sou brasileira. Por que fizeram isso comigo?”

A influência materna ajuda a entender a desenvoltura frente às câmeras. Shahd conta que a mãe era jornalista e que, por isso, desde pequena brincava de produzir programas de entrevistas em Gaza.

O momento que Shahd Albanna pediu que fosse registrado, enquanto concedia entrevista a jornalistas na Base Aérea de Brasília Foto: Felipe Frazão

“Eu tenho um passado lindo com o jornalismo. A primeira vez que subi num palco eu tinha 3 aninhos, era bem pequena e gordinha, segurando um microfone grandão. Eu tinha um programinha para crianças, de perguntas e respostas, de entrevistas com crianças na rua”, relevou ela.

Apesar da desenvoltura, Shahd ficou surpresa em ter se tornado famosa. Pediu que tirassem fotos dela mesma dando entrevista. A menina ainda não havia se dado conta, mas ela e Hasan Rabee, outro repatriado, tornaram-se os “correspondentes de guerra” do Brasil na Faixa de Gaza, numa clássico exemplo de jornalismo cidadão. Abasteciam a diplomacia e o País com informações diárias sobre a situação dos agora repatriados.

“Agora eu me sinto famosa, falei até com o presidente”, disse Shahd. “Estou começando a gostar dessa coisa do jornalismo. ´Não tinha pensado nisso, mas é uma boa ideia”, disse, quando questionada sobre que carreira seguir.

Shahd Albanna registrou do celular a destruição de sua terra de origem, a Faixa de Gaza Foto: Reprodução/Redes sociais

Por falta de opção, ela havia se matriculado num curso universitário de Literatura Inglesa, em Gaza. Assistiu a quatro aulas somente. A sede da universidade foi um dos primeiros lugares que ela viu ser bombardeado.

O sonho de criança era ser piloto de avião. Durante o trânsito de regresso ao Brasil, auxiliou a tripulação militar a se comunicar com os repatriados que não falavam português.

Como passatempo na fuga e no refúgio em Rafah, na fronteira com o Egito, pediu a amigos que lhe enviassem livros digitais pela internet, para que os baixasse e pudesse ler. O fornecimento de internet e energia elétrica estava precarizado. E não havia muito mais o que fazer. Mas os bombardeios, conta, impediam que se concentrasse na leitura.

“Não dá para focar muito enquanto está tendo bombardeio. Não consegui ler muita coisa, não. Também passei um tempo brincando com as crianças, elas ficavam com muito medo”, conta Shahd.

O próximo passo no destino de Shahd é um abrigo para refugiados em São Paulo. Ela seguirá viagem com a irmã Shams Albanna, de 14 anos, a avó materna, palestina em processo de migração, e o amigo feito na escola onde se refugiaram Ahmed Nabil, de 43 anos.

Tios, tias e primos da família de Shahd permaneceram em Gaza. Nem as irmãs Albanna nem Nabil possuem vínculos ou mais parentes no Brasil. Para eles, nada mais é certo. Não há planos de longo prazo.

Hasan Rabee, um dos repatriados da zona de Guerra da Faixa de Gaza, no alojamento militar em Brasília  Foto: WILTON JUNIOR

“Quero muito que essa guerra pare e quero ajudar a retirar o resto dos brasileiros e da minha família que estão lá ainda. Quero compartilhar com eles minha felicidade só aqui no Brasil.”

Nascido na Faixa Gaza, Ahmed era policial no território palestino. Ele não comentou, mas segundo Shahd 45 familiares dele morreram na guerra vítima de bombardeios, entre eles crianças. “Acabou a minha vida, acabou a minha vida”, repetiu Ahmed ao Estadão. “Meu apartamento, minha casa, minha família...”.

A sensação de fim de um tempo é a mesma descrita por Shahd, quando questionada se pretendia voltar a Gaza. “Voltar aonde?”, devolveu ela ao repórter e a si mesma. “Ah, já não tenho mais casa, foi bombardeada. O país está sem futuro, não temos como voltar. A situação é difícil.”

O ex-policial em Gaza Ahmed Nabil, de 43 anos, afirma ter perdido tudo na guerra FOTO:  WILTON JUNIOR/ESTADÃO Foto: Wilton Junior

BRASÍLIA - Em 37 dias, Shahd Albanna tornou-se um rosto nacionalmente conhecido do Brasil. A jovem brasileira e palestina, de 18 anos, informava o País, com boletins diários nas redes sociais, sobre a saga do grupo de 32 pessoas que viveram a angústia e o risco de fugir da guerra entre as Forças de Defesa de Israel e o grupo terrorista Hamas na Faixa de Gaza.

A reportagem do Estadão foi a última a ter uma conversa exclusiva com ela, já num quente início de noite na Base Aérea de Brasília, nesta terça-feira, dia 14.

Shahd e outros repatriados estavam exaustos. Haviam desembarcado a menos de 24 horas, passaram boa parte da noite em claro. Eles concederiam dezenas de entrevistas naquela tarde. Atenderam 85 jornalistas, da imprensa nacional e estrangeira. Cada um por cerca de 5 minutos. Por se expressar confortavelmente em português, a menina era uma da mais requisitadas e permaneceu até o fim.

“Eu só queria agradecer muito a todos que nos acompanharam, ao governo e ao pessoal que torceu para chegarmos até aqui. Muito obrigada”, disse Shahd, quando questionada sobre o que ela própria tinha vontade de dizer, em vez de responder, após a maratona de entrevistas.

Shahd e outros brasileiros que vieram da zona de Guerra da Faixa de Gaza no Oriente Médio ficaram temporariamente no Hotel de Trânsito dos Oficiais na Base Aérea de Brasília. Foto: WILTON JUNIOR

A conversa ocorreu já na penumbra, no quintal do Hotel de Trânsito de Oficiais da Aeronáutica, onde o grupo passou a primeira noite no Brasil. Shahd estava prester a jantar pela primeira vez, mas tinha desejo de comer algo muito típico: “Faz quase dois anos que estou querendo comer um pão de queijo”.

A estudante universitária carregava no peito uma medalha com o mapa da Faixa de Gaza. A jóia dourada expressa um significado singular neste momento. Representa o futuro e o passado. A terra onde ainda estão seus únicos familiares e amigos no mundo. E onde despediu-se da mãe. “É um mapa e a bandeira da Palestina. Eu comprei esse colar com a minha mãe”, lembrou a jovem.

Shahd tem 18 anos e dava boletins sobre a guerra em Gaza nas redes sociais Foto: WILTON JUNIOR

A pior guerra em Gaza

Shahd não quis falar sobre o pai. Nem sequer o nome da mãe. Em respeito a ela e à orientação de psicólogos do SUS especializados em situações traumáticas, a reportagem não insistiu em perguntas que pudessem desesestabilizar os repatriados.

Os 32 resgatados permanecem sob supervisão direta de psicólogos do Sistema Único de Saúde (SUS). Crianças se assustaram com fotógrafos que vestiam coletes com bolsos diversos, lotados de equipamentos e lentes. Associaram a imagem à de homens-bomba e perguntaram aos piscólgos se os repórteres fotográficos eram “homens maus”, contou a Débora Noal, especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial em Desastres da Fundação Oswaldo Cruz.

“Uma mãe disse que rezava todos noite para que o filho sobrevivesse mais 24 horas e que chegou num lugar que finalmente eles podem dormir tranquilos”, relatou Noal. “Cada avião que passava no céu, os pequeninhos diziam ‘bomba’, ‘avião-bomba’.”

Lula recebeu os brasileiros que estavam retidos em Gaza e conversou com Shahd Albanna Foto: WILTON JUNIOR

Por iniciativa própria, Shahd havia contado ao desembarcar na base aérea que vivia em Gaza porque viajara com a mãe, que tinha um câncer terminal e desejava despedir-se de parentes. Ela morreria em Gaza, e Shahd decidiu ficar por lá, ao lado da irmã Shams Albanna, de 14 anos, da avó materna e outros parentes.

Shahd nasceu em Gaza. A família vivia na parcela do centro para o Norte, justamente a que foi mais atingida pelos militares de Israel. Aos 11 anos, veio morar no Brasil com a mãe. Estabeleceram-se em São Paulo e ficaram até um ano e meio atrás. Retornaram sem medo dos conflitos.

Shahd diz que o atual conflito em Gaza tem uma dimensão maior que os anteriores Foto: WILTON JUNIOR

Civis e o atentado do Hamas

Ela conta que os civis palestinos de Gaza não sabiam do ataque terrorista do Hamas. E relata ter se surpreendido com o bombardeio israelense, em revide, que atingiu de uma só vez diversos pontos do território. Não era uma troca de hostilidades corriqueira, ou como ela expressa, um “guerra normal”, como ela já havia vivenciado.

“Achamos que ia ser uma guerra ‘normal’, como sempre acontece. A Cidade de Gaza sempre foi área de guerra, sempre acontece, mas por uns dias e acaba. Dessa vez foi algo horrível, diferente. O pessoal não estava entendendo o que estava acontecendo ainda, porque aconteceu de uma só vez em vários lugares. Todos ficaram assustados. Eles começaram a jogar bombas em todos os lugares, a matar crianças aletoriamente. Minha casa foi bombardeada, mas sou brasileira. Por que fizeram isso comigo?”

A influência materna ajuda a entender a desenvoltura frente às câmeras. Shahd conta que a mãe era jornalista e que, por isso, desde pequena brincava de produzir programas de entrevistas em Gaza.

O momento que Shahd Albanna pediu que fosse registrado, enquanto concedia entrevista a jornalistas na Base Aérea de Brasília Foto: Felipe Frazão

“Eu tenho um passado lindo com o jornalismo. A primeira vez que subi num palco eu tinha 3 aninhos, era bem pequena e gordinha, segurando um microfone grandão. Eu tinha um programinha para crianças, de perguntas e respostas, de entrevistas com crianças na rua”, relevou ela.

Apesar da desenvoltura, Shahd ficou surpresa em ter se tornado famosa. Pediu que tirassem fotos dela mesma dando entrevista. A menina ainda não havia se dado conta, mas ela e Hasan Rabee, outro repatriado, tornaram-se os “correspondentes de guerra” do Brasil na Faixa de Gaza, numa clássico exemplo de jornalismo cidadão. Abasteciam a diplomacia e o País com informações diárias sobre a situação dos agora repatriados.

“Agora eu me sinto famosa, falei até com o presidente”, disse Shahd. “Estou começando a gostar dessa coisa do jornalismo. ´Não tinha pensado nisso, mas é uma boa ideia”, disse, quando questionada sobre que carreira seguir.

Shahd Albanna registrou do celular a destruição de sua terra de origem, a Faixa de Gaza Foto: Reprodução/Redes sociais

Por falta de opção, ela havia se matriculado num curso universitário de Literatura Inglesa, em Gaza. Assistiu a quatro aulas somente. A sede da universidade foi um dos primeiros lugares que ela viu ser bombardeado.

O sonho de criança era ser piloto de avião. Durante o trânsito de regresso ao Brasil, auxiliou a tripulação militar a se comunicar com os repatriados que não falavam português.

Como passatempo na fuga e no refúgio em Rafah, na fronteira com o Egito, pediu a amigos que lhe enviassem livros digitais pela internet, para que os baixasse e pudesse ler. O fornecimento de internet e energia elétrica estava precarizado. E não havia muito mais o que fazer. Mas os bombardeios, conta, impediam que se concentrasse na leitura.

“Não dá para focar muito enquanto está tendo bombardeio. Não consegui ler muita coisa, não. Também passei um tempo brincando com as crianças, elas ficavam com muito medo”, conta Shahd.

O próximo passo no destino de Shahd é um abrigo para refugiados em São Paulo. Ela seguirá viagem com a irmã Shams Albanna, de 14 anos, a avó materna, palestina em processo de migração, e o amigo feito na escola onde se refugiaram Ahmed Nabil, de 43 anos.

Tios, tias e primos da família de Shahd permaneceram em Gaza. Nem as irmãs Albanna nem Nabil possuem vínculos ou mais parentes no Brasil. Para eles, nada mais é certo. Não há planos de longo prazo.

Hasan Rabee, um dos repatriados da zona de Guerra da Faixa de Gaza, no alojamento militar em Brasília  Foto: WILTON JUNIOR

“Quero muito que essa guerra pare e quero ajudar a retirar o resto dos brasileiros e da minha família que estão lá ainda. Quero compartilhar com eles minha felicidade só aqui no Brasil.”

Nascido na Faixa Gaza, Ahmed era policial no território palestino. Ele não comentou, mas segundo Shahd 45 familiares dele morreram na guerra vítima de bombardeios, entre eles crianças. “Acabou a minha vida, acabou a minha vida”, repetiu Ahmed ao Estadão. “Meu apartamento, minha casa, minha família...”.

A sensação de fim de um tempo é a mesma descrita por Shahd, quando questionada se pretendia voltar a Gaza. “Voltar aonde?”, devolveu ela ao repórter e a si mesma. “Ah, já não tenho mais casa, foi bombardeada. O país está sem futuro, não temos como voltar. A situação é difícil.”

O ex-policial em Gaza Ahmed Nabil, de 43 anos, afirma ter perdido tudo na guerra FOTO:  WILTON JUNIOR/ESTADÃO Foto: Wilton Junior

BRASÍLIA - Em 37 dias, Shahd Albanna tornou-se um rosto nacionalmente conhecido do Brasil. A jovem brasileira e palestina, de 18 anos, informava o País, com boletins diários nas redes sociais, sobre a saga do grupo de 32 pessoas que viveram a angústia e o risco de fugir da guerra entre as Forças de Defesa de Israel e o grupo terrorista Hamas na Faixa de Gaza.

A reportagem do Estadão foi a última a ter uma conversa exclusiva com ela, já num quente início de noite na Base Aérea de Brasília, nesta terça-feira, dia 14.

Shahd e outros repatriados estavam exaustos. Haviam desembarcado a menos de 24 horas, passaram boa parte da noite em claro. Eles concederiam dezenas de entrevistas naquela tarde. Atenderam 85 jornalistas, da imprensa nacional e estrangeira. Cada um por cerca de 5 minutos. Por se expressar confortavelmente em português, a menina era uma da mais requisitadas e permaneceu até o fim.

“Eu só queria agradecer muito a todos que nos acompanharam, ao governo e ao pessoal que torceu para chegarmos até aqui. Muito obrigada”, disse Shahd, quando questionada sobre o que ela própria tinha vontade de dizer, em vez de responder, após a maratona de entrevistas.

Shahd e outros brasileiros que vieram da zona de Guerra da Faixa de Gaza no Oriente Médio ficaram temporariamente no Hotel de Trânsito dos Oficiais na Base Aérea de Brasília. Foto: WILTON JUNIOR

A conversa ocorreu já na penumbra, no quintal do Hotel de Trânsito de Oficiais da Aeronáutica, onde o grupo passou a primeira noite no Brasil. Shahd estava prester a jantar pela primeira vez, mas tinha desejo de comer algo muito típico: “Faz quase dois anos que estou querendo comer um pão de queijo”.

A estudante universitária carregava no peito uma medalha com o mapa da Faixa de Gaza. A jóia dourada expressa um significado singular neste momento. Representa o futuro e o passado. A terra onde ainda estão seus únicos familiares e amigos no mundo. E onde despediu-se da mãe. “É um mapa e a bandeira da Palestina. Eu comprei esse colar com a minha mãe”, lembrou a jovem.

Shahd tem 18 anos e dava boletins sobre a guerra em Gaza nas redes sociais Foto: WILTON JUNIOR

A pior guerra em Gaza

Shahd não quis falar sobre o pai. Nem sequer o nome da mãe. Em respeito a ela e à orientação de psicólogos do SUS especializados em situações traumáticas, a reportagem não insistiu em perguntas que pudessem desesestabilizar os repatriados.

Os 32 resgatados permanecem sob supervisão direta de psicólogos do Sistema Único de Saúde (SUS). Crianças se assustaram com fotógrafos que vestiam coletes com bolsos diversos, lotados de equipamentos e lentes. Associaram a imagem à de homens-bomba e perguntaram aos piscólgos se os repórteres fotográficos eram “homens maus”, contou a Débora Noal, especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial em Desastres da Fundação Oswaldo Cruz.

“Uma mãe disse que rezava todos noite para que o filho sobrevivesse mais 24 horas e que chegou num lugar que finalmente eles podem dormir tranquilos”, relatou Noal. “Cada avião que passava no céu, os pequeninhos diziam ‘bomba’, ‘avião-bomba’.”

Lula recebeu os brasileiros que estavam retidos em Gaza e conversou com Shahd Albanna Foto: WILTON JUNIOR

Por iniciativa própria, Shahd havia contado ao desembarcar na base aérea que vivia em Gaza porque viajara com a mãe, que tinha um câncer terminal e desejava despedir-se de parentes. Ela morreria em Gaza, e Shahd decidiu ficar por lá, ao lado da irmã Shams Albanna, de 14 anos, da avó materna e outros parentes.

Shahd nasceu em Gaza. A família vivia na parcela do centro para o Norte, justamente a que foi mais atingida pelos militares de Israel. Aos 11 anos, veio morar no Brasil com a mãe. Estabeleceram-se em São Paulo e ficaram até um ano e meio atrás. Retornaram sem medo dos conflitos.

Shahd diz que o atual conflito em Gaza tem uma dimensão maior que os anteriores Foto: WILTON JUNIOR

Civis e o atentado do Hamas

Ela conta que os civis palestinos de Gaza não sabiam do ataque terrorista do Hamas. E relata ter se surpreendido com o bombardeio israelense, em revide, que atingiu de uma só vez diversos pontos do território. Não era uma troca de hostilidades corriqueira, ou como ela expressa, um “guerra normal”, como ela já havia vivenciado.

“Achamos que ia ser uma guerra ‘normal’, como sempre acontece. A Cidade de Gaza sempre foi área de guerra, sempre acontece, mas por uns dias e acaba. Dessa vez foi algo horrível, diferente. O pessoal não estava entendendo o que estava acontecendo ainda, porque aconteceu de uma só vez em vários lugares. Todos ficaram assustados. Eles começaram a jogar bombas em todos os lugares, a matar crianças aletoriamente. Minha casa foi bombardeada, mas sou brasileira. Por que fizeram isso comigo?”

A influência materna ajuda a entender a desenvoltura frente às câmeras. Shahd conta que a mãe era jornalista e que, por isso, desde pequena brincava de produzir programas de entrevistas em Gaza.

O momento que Shahd Albanna pediu que fosse registrado, enquanto concedia entrevista a jornalistas na Base Aérea de Brasília Foto: Felipe Frazão

“Eu tenho um passado lindo com o jornalismo. A primeira vez que subi num palco eu tinha 3 aninhos, era bem pequena e gordinha, segurando um microfone grandão. Eu tinha um programinha para crianças, de perguntas e respostas, de entrevistas com crianças na rua”, relevou ela.

Apesar da desenvoltura, Shahd ficou surpresa em ter se tornado famosa. Pediu que tirassem fotos dela mesma dando entrevista. A menina ainda não havia se dado conta, mas ela e Hasan Rabee, outro repatriado, tornaram-se os “correspondentes de guerra” do Brasil na Faixa de Gaza, numa clássico exemplo de jornalismo cidadão. Abasteciam a diplomacia e o País com informações diárias sobre a situação dos agora repatriados.

“Agora eu me sinto famosa, falei até com o presidente”, disse Shahd. “Estou começando a gostar dessa coisa do jornalismo. ´Não tinha pensado nisso, mas é uma boa ideia”, disse, quando questionada sobre que carreira seguir.

Shahd Albanna registrou do celular a destruição de sua terra de origem, a Faixa de Gaza Foto: Reprodução/Redes sociais

Por falta de opção, ela havia se matriculado num curso universitário de Literatura Inglesa, em Gaza. Assistiu a quatro aulas somente. A sede da universidade foi um dos primeiros lugares que ela viu ser bombardeado.

O sonho de criança era ser piloto de avião. Durante o trânsito de regresso ao Brasil, auxiliou a tripulação militar a se comunicar com os repatriados que não falavam português.

Como passatempo na fuga e no refúgio em Rafah, na fronteira com o Egito, pediu a amigos que lhe enviassem livros digitais pela internet, para que os baixasse e pudesse ler. O fornecimento de internet e energia elétrica estava precarizado. E não havia muito mais o que fazer. Mas os bombardeios, conta, impediam que se concentrasse na leitura.

“Não dá para focar muito enquanto está tendo bombardeio. Não consegui ler muita coisa, não. Também passei um tempo brincando com as crianças, elas ficavam com muito medo”, conta Shahd.

O próximo passo no destino de Shahd é um abrigo para refugiados em São Paulo. Ela seguirá viagem com a irmã Shams Albanna, de 14 anos, a avó materna, palestina em processo de migração, e o amigo feito na escola onde se refugiaram Ahmed Nabil, de 43 anos.

Tios, tias e primos da família de Shahd permaneceram em Gaza. Nem as irmãs Albanna nem Nabil possuem vínculos ou mais parentes no Brasil. Para eles, nada mais é certo. Não há planos de longo prazo.

Hasan Rabee, um dos repatriados da zona de Guerra da Faixa de Gaza, no alojamento militar em Brasília  Foto: WILTON JUNIOR

“Quero muito que essa guerra pare e quero ajudar a retirar o resto dos brasileiros e da minha família que estão lá ainda. Quero compartilhar com eles minha felicidade só aqui no Brasil.”

Nascido na Faixa Gaza, Ahmed era policial no território palestino. Ele não comentou, mas segundo Shahd 45 familiares dele morreram na guerra vítima de bombardeios, entre eles crianças. “Acabou a minha vida, acabou a minha vida”, repetiu Ahmed ao Estadão. “Meu apartamento, minha casa, minha família...”.

A sensação de fim de um tempo é a mesma descrita por Shahd, quando questionada se pretendia voltar a Gaza. “Voltar aonde?”, devolveu ela ao repórter e a si mesma. “Ah, já não tenho mais casa, foi bombardeada. O país está sem futuro, não temos como voltar. A situação é difícil.”

O ex-policial em Gaza Ahmed Nabil, de 43 anos, afirma ter perdido tudo na guerra FOTO:  WILTON JUNIOR/ESTADÃO Foto: Wilton Junior

BRASÍLIA - Em 37 dias, Shahd Albanna tornou-se um rosto nacionalmente conhecido do Brasil. A jovem brasileira e palestina, de 18 anos, informava o País, com boletins diários nas redes sociais, sobre a saga do grupo de 32 pessoas que viveram a angústia e o risco de fugir da guerra entre as Forças de Defesa de Israel e o grupo terrorista Hamas na Faixa de Gaza.

A reportagem do Estadão foi a última a ter uma conversa exclusiva com ela, já num quente início de noite na Base Aérea de Brasília, nesta terça-feira, dia 14.

Shahd e outros repatriados estavam exaustos. Haviam desembarcado a menos de 24 horas, passaram boa parte da noite em claro. Eles concederiam dezenas de entrevistas naquela tarde. Atenderam 85 jornalistas, da imprensa nacional e estrangeira. Cada um por cerca de 5 minutos. Por se expressar confortavelmente em português, a menina era uma da mais requisitadas e permaneceu até o fim.

“Eu só queria agradecer muito a todos que nos acompanharam, ao governo e ao pessoal que torceu para chegarmos até aqui. Muito obrigada”, disse Shahd, quando questionada sobre o que ela própria tinha vontade de dizer, em vez de responder, após a maratona de entrevistas.

Shahd e outros brasileiros que vieram da zona de Guerra da Faixa de Gaza no Oriente Médio ficaram temporariamente no Hotel de Trânsito dos Oficiais na Base Aérea de Brasília. Foto: WILTON JUNIOR

A conversa ocorreu já na penumbra, no quintal do Hotel de Trânsito de Oficiais da Aeronáutica, onde o grupo passou a primeira noite no Brasil. Shahd estava prester a jantar pela primeira vez, mas tinha desejo de comer algo muito típico: “Faz quase dois anos que estou querendo comer um pão de queijo”.

A estudante universitária carregava no peito uma medalha com o mapa da Faixa de Gaza. A jóia dourada expressa um significado singular neste momento. Representa o futuro e o passado. A terra onde ainda estão seus únicos familiares e amigos no mundo. E onde despediu-se da mãe. “É um mapa e a bandeira da Palestina. Eu comprei esse colar com a minha mãe”, lembrou a jovem.

Shahd tem 18 anos e dava boletins sobre a guerra em Gaza nas redes sociais Foto: WILTON JUNIOR

A pior guerra em Gaza

Shahd não quis falar sobre o pai. Nem sequer o nome da mãe. Em respeito a ela e à orientação de psicólogos do SUS especializados em situações traumáticas, a reportagem não insistiu em perguntas que pudessem desesestabilizar os repatriados.

Os 32 resgatados permanecem sob supervisão direta de psicólogos do Sistema Único de Saúde (SUS). Crianças se assustaram com fotógrafos que vestiam coletes com bolsos diversos, lotados de equipamentos e lentes. Associaram a imagem à de homens-bomba e perguntaram aos piscólgos se os repórteres fotográficos eram “homens maus”, contou a Débora Noal, especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial em Desastres da Fundação Oswaldo Cruz.

“Uma mãe disse que rezava todos noite para que o filho sobrevivesse mais 24 horas e que chegou num lugar que finalmente eles podem dormir tranquilos”, relatou Noal. “Cada avião que passava no céu, os pequeninhos diziam ‘bomba’, ‘avião-bomba’.”

Lula recebeu os brasileiros que estavam retidos em Gaza e conversou com Shahd Albanna Foto: WILTON JUNIOR

Por iniciativa própria, Shahd havia contado ao desembarcar na base aérea que vivia em Gaza porque viajara com a mãe, que tinha um câncer terminal e desejava despedir-se de parentes. Ela morreria em Gaza, e Shahd decidiu ficar por lá, ao lado da irmã Shams Albanna, de 14 anos, da avó materna e outros parentes.

Shahd nasceu em Gaza. A família vivia na parcela do centro para o Norte, justamente a que foi mais atingida pelos militares de Israel. Aos 11 anos, veio morar no Brasil com a mãe. Estabeleceram-se em São Paulo e ficaram até um ano e meio atrás. Retornaram sem medo dos conflitos.

Shahd diz que o atual conflito em Gaza tem uma dimensão maior que os anteriores Foto: WILTON JUNIOR

Civis e o atentado do Hamas

Ela conta que os civis palestinos de Gaza não sabiam do ataque terrorista do Hamas. E relata ter se surpreendido com o bombardeio israelense, em revide, que atingiu de uma só vez diversos pontos do território. Não era uma troca de hostilidades corriqueira, ou como ela expressa, um “guerra normal”, como ela já havia vivenciado.

“Achamos que ia ser uma guerra ‘normal’, como sempre acontece. A Cidade de Gaza sempre foi área de guerra, sempre acontece, mas por uns dias e acaba. Dessa vez foi algo horrível, diferente. O pessoal não estava entendendo o que estava acontecendo ainda, porque aconteceu de uma só vez em vários lugares. Todos ficaram assustados. Eles começaram a jogar bombas em todos os lugares, a matar crianças aletoriamente. Minha casa foi bombardeada, mas sou brasileira. Por que fizeram isso comigo?”

A influência materna ajuda a entender a desenvoltura frente às câmeras. Shahd conta que a mãe era jornalista e que, por isso, desde pequena brincava de produzir programas de entrevistas em Gaza.

O momento que Shahd Albanna pediu que fosse registrado, enquanto concedia entrevista a jornalistas na Base Aérea de Brasília Foto: Felipe Frazão

“Eu tenho um passado lindo com o jornalismo. A primeira vez que subi num palco eu tinha 3 aninhos, era bem pequena e gordinha, segurando um microfone grandão. Eu tinha um programinha para crianças, de perguntas e respostas, de entrevistas com crianças na rua”, relevou ela.

Apesar da desenvoltura, Shahd ficou surpresa em ter se tornado famosa. Pediu que tirassem fotos dela mesma dando entrevista. A menina ainda não havia se dado conta, mas ela e Hasan Rabee, outro repatriado, tornaram-se os “correspondentes de guerra” do Brasil na Faixa de Gaza, numa clássico exemplo de jornalismo cidadão. Abasteciam a diplomacia e o País com informações diárias sobre a situação dos agora repatriados.

“Agora eu me sinto famosa, falei até com o presidente”, disse Shahd. “Estou começando a gostar dessa coisa do jornalismo. ´Não tinha pensado nisso, mas é uma boa ideia”, disse, quando questionada sobre que carreira seguir.

Shahd Albanna registrou do celular a destruição de sua terra de origem, a Faixa de Gaza Foto: Reprodução/Redes sociais

Por falta de opção, ela havia se matriculado num curso universitário de Literatura Inglesa, em Gaza. Assistiu a quatro aulas somente. A sede da universidade foi um dos primeiros lugares que ela viu ser bombardeado.

O sonho de criança era ser piloto de avião. Durante o trânsito de regresso ao Brasil, auxiliou a tripulação militar a se comunicar com os repatriados que não falavam português.

Como passatempo na fuga e no refúgio em Rafah, na fronteira com o Egito, pediu a amigos que lhe enviassem livros digitais pela internet, para que os baixasse e pudesse ler. O fornecimento de internet e energia elétrica estava precarizado. E não havia muito mais o que fazer. Mas os bombardeios, conta, impediam que se concentrasse na leitura.

“Não dá para focar muito enquanto está tendo bombardeio. Não consegui ler muita coisa, não. Também passei um tempo brincando com as crianças, elas ficavam com muito medo”, conta Shahd.

O próximo passo no destino de Shahd é um abrigo para refugiados em São Paulo. Ela seguirá viagem com a irmã Shams Albanna, de 14 anos, a avó materna, palestina em processo de migração, e o amigo feito na escola onde se refugiaram Ahmed Nabil, de 43 anos.

Tios, tias e primos da família de Shahd permaneceram em Gaza. Nem as irmãs Albanna nem Nabil possuem vínculos ou mais parentes no Brasil. Para eles, nada mais é certo. Não há planos de longo prazo.

Hasan Rabee, um dos repatriados da zona de Guerra da Faixa de Gaza, no alojamento militar em Brasília  Foto: WILTON JUNIOR

“Quero muito que essa guerra pare e quero ajudar a retirar o resto dos brasileiros e da minha família que estão lá ainda. Quero compartilhar com eles minha felicidade só aqui no Brasil.”

Nascido na Faixa Gaza, Ahmed era policial no território palestino. Ele não comentou, mas segundo Shahd 45 familiares dele morreram na guerra vítima de bombardeios, entre eles crianças. “Acabou a minha vida, acabou a minha vida”, repetiu Ahmed ao Estadão. “Meu apartamento, minha casa, minha família...”.

A sensação de fim de um tempo é a mesma descrita por Shahd, quando questionada se pretendia voltar a Gaza. “Voltar aonde?”, devolveu ela ao repórter e a si mesma. “Ah, já não tenho mais casa, foi bombardeada. O país está sem futuro, não temos como voltar. A situação é difícil.”

O ex-policial em Gaza Ahmed Nabil, de 43 anos, afirma ter perdido tudo na guerra FOTO:  WILTON JUNIOR/ESTADÃO Foto: Wilton Junior

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