Com a voz rouca e vestindo uma longa jaqueta de couro preta, o presidente argentino Javier Milei se transformou em uma estrela do rock na noite de quarta-feira, 22, e cantou no contexto da apresentação de seu último livro no mítico estádio Luna Park em Buenos Aires.
“Senhores, eu quis fazer isso porque queria cantar”, disse antes de executar junto a uma banda amadora uma única música: sua versão de “Panic Show” do trio de rock argentino La Renga.
Sua equipe afirma que os custos deste evento sairiam do bolso do presidente e de parceiros, não do Estado, e que a cantoria foi uma estratégia de marketing — na juventude, Milei, 53, teve uma banda de rock, a Everest.
Ele não toca instrumentos, tampouco fez aula de canto. “Mas cantar era algo intuitivo”, disse o ele há alguns anos.
Após sua interpretação, o presidente economista deu uma extensa aula de economia baseada em seu décimo terceiro livro “Capitalismo, socialismo e a armadilha neoclássica”. Em seu discurso, atacou o socialismo, defendeu monopólios, negou a existência de falhas no mercado e disse que o aborto respondia a um “mecanismo para massacrar populações”.
À medida que o evento avançava, boa parte dos cerca de 10.000 espectadores começou a se retirar, até que metade do público permaneceu no local.
“Estou aqui para apoiar Javier em tudo o que faz. Gosto de suas ideias, gosto do que ele faz, ele é sincero, é transparente, diz o que pensa”, disse Santiago Roldán, um empregado de supermercado de 20 anos, à AFP.
A liturgia libertária — nas imediações do estádio, vendiam-se bonés das “Forças do céu” que o presidente frequentemente cita, canecas com a inscrição “Lágrimas de esquerdistas” e até livros de autores da escola austríaca de economia, da qual Milei é um fiel divulgador.
O evento teve uma identidade semelhante aos que Milei promove desde sua entrada na arena política em 2021: ele os chama de “recitais” e geralmente começa entoando à capela uma música, evocando sua juventude, quando liderava a banda cover dos Rolling Stones.
O analista político Carlos Fara apontou à AFP que Milei costuma “fazer o show” e destacou que ele “sempre vai alimentar a polarização”. “Há uma lógica de campanha permanente. A comunicação no governo é igual à comunicação em campanha”, estimou.
Para Fara, manter essa lógica de campanha durante a presidência pode ser um “erro conceitual”. “Quando tudo é simpático, para as pessoas estas coisas parecem anedóticas. O problema é quando os resultados começam a não se verificar na realidade, chega um momento em que você é atingido por todas as balas de uma vez”.
Leia Também:
A apresentação do livro ocorreu no mesmo dia em que a cotação do dólar informal atingiu um novo recorde nominal de 1.280 pesos e em um contexto de queda da atividade econômica, com metade da população na pobreza e aumentos de preços de 290% em relação ao ano passado.
Em meio a tensão diplomática com a Espanha, após a retirada da embaixadora do país em Buenos Aires por causa de ofensas preoferidas por Milei contra a mulher do premiê espanhol e contra o governo de esquerda do país, houve cantos contra Pedro Sánchez por parte do público, embora Milei não tenha se aprofundado no tópico e se concentrado em suas lições de teoria macroeconômica.
‘Evento privado’
A apresentação do livro, que estava originalmente planejada para 12 de maio na Feira do Livro de Buenos Aires, foi adiada após diferenças entre o governo e a organização do evento tradicional. No início de seu discurso, Milei agradeceu “à feira do livro que, com sua tentativa de boicote, nos presenteou esta festa”.
O porta-voz presidencial, Manuel Adorni, havia esclarecido horas antes que se tratava de “um evento privado sustentado com fundos ou o patrimônio pessoal do presidente”.
Ao final do show, já com o estádio semivazio após uma discussão econômica entre o presidente, o porta-voz e o deputado José Luis Espert, Milei despediu-se chamando o público para “lutar batalha cultural” porque “se não, os esquerdistas vão nos superar”.
Enquanto Milei dava seus agradecimentos finais, a música “Se viene el estallido”, outro símbolo do rock de protesto dos anos 1990 que Milei usava em campanha e que diz: “Se viene el estallido, da minha guitarra, do teu governo também”./AFP