Sob Putin, uma nova Rússia militarizada surge para desafiar os EUA e o Ocidente


A posse de Putin, na terça feira, iniciando um quinto mandato, não só marcará seu domínio de 25 anos no poder, mas também mostrará a mudança da Rússia

Por Robyn Dixon

MOSCOU - Enquanto Vladimir Putin persiste na sua sangrenta campanha para conquistar a Ucrânia, o líder russo está comandando uma transformação igualmente importante no nível interno, reestruturando seu país na forma de uma sociedade regressiva e militarizada que enxerga o Ocidente como seu inimigo mortal.

A posse de Putin, na terça feira, iniciando um quinto mandato, não só marcará seu domínio de 25 anos no poder, mas também mostrará a mudança da Rússia para o que os comentadores pró-Kremlin chamam de “potência revolucionária”, decidida a virar de ponta cabeça a ordem global, estabelecendo suas próprias regras e exigindo que a autocracia totalitária seja respeitada como uma alternativa legítima à democracia em um mundo novamente dividido em esferas de influência pelas grandes potências.

“Os russos vivem em uma realidade totalmente nova”, escreveu Dmitri Trenin, analista pró-Kremlin, em resposta a perguntas sobre um ensaio no qual argumentava que a mudança da Rússia no sentido de se opor ao Ocidente era “mais radical e de longo alcance” do que qualquer coisa imaginada quando Putin invadiu a Ucrânia, mas também “um elemento relativamente menor da transformação mais ampla que está em curso na economia, na política, na sociedade, na cultura, nos valores e na vida espiritual e intelectual da Rússia”.

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Uma grande estrela com um Z, que passou a representar os militares russos, é exibida em um memorial em homenagem aos heróis da Grande Guerra Patriótica, como é conhecida a Segunda Guerra Mundial na Rússia, em Moscou Foto: Nanna Heitmann/The Washington Post

Em reportagem, o Washington Post documenta a escala histórica das mudanças que Putin está levando a cabo e que aceleraram com uma velocidade vertiginosa ao longo de dois anos de guerra brutal, mesmo com dezenas de milhares de russos fugindo para o estrangeiro. É uma cruzada que dá a Putin uma causa comum com Xi Jinping, da China, bem como com alguns defensores do ex-presidente americano Donald Trump. E isso traz a perspectiva de um conflito civilizacional duradouro para subverter a democracia ocidental e - advertiu Putin - até mesmo a ameaça de uma nova guerra mundial.

Para realizar esta transformação, o Kremlin está:

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- Forjando uma sociedade ultraconservadora e puritana, mobilizada contra as liberdades progressistas e especialmente hostil aos gays e transexuais, na qual a política familiar e os gastos com o bem-estar social impulsionam os valores ortodoxos tradicionais.

- Remodelando a educação em todos os níveis para doutrinar uma nova geração de jovens ultra-patriotas, com livros didáticos reescritos para refletir a propaganda do Kremlin, currículos patrióticos definidos pelo Estado e, a partir de setembro, aulas militares obrigatórias ministradas por soldados denominadas “Fundamentos de Segurança e Proteção da Pátria”, que incluirá treinamento no manuseio de rifles de assalto Kalashnikov, granadas e drones.

- Esterilizando a vida cultural com listas de proibição a cantores, diretores, escritores e artistas progressistas ou contrários à guerra, e com novas diretrizes nacionalistas para museus e cineastas.

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O presidente da Rússia, Vladimir Putin, discursa em Moscou, Rússia  Foto: Sergei Guneyev/AP

- Mobilizando um zeloso ativismo pró-guerra sob o brutal símbolo Z, que foi inicialmente pintado nas laterais dos tanques russos que invadiam a Ucrânia, mas que desde então se espalhou por edifícios governamentais, cartazes, escolas e manifestações orquestradas.

- Revertendo os direitos das mulheres com uma torrente de propaganda a respeito da necessidade de engravidar (durante a juventude e com frequência), restringindo o acesso ao aborto, e acusando ativistas feministas e jornalistas progressistas de terrorismo, extremismo, difamação dos militares e outros crimes.

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- Reescrevendo a história para celebrar Iossif Stalin, o ditador soviético que enviou milhões para o gulag, por meio de pelo menos 95 dos 110 monumentos erguidos na Rússia durante o período de Putin como líder. Enquanto isso, o Memorial, um grupo de defensores dos direitos humanos que expôs os crimes de Estaline e foi um dos ganhadores do Prêmio Nobel da Paz de 2022, foi fechado, e seu co-presidente, o pacifista Oleg Orlov, 71 anos, foi preso.

- Acusando cientistas de traição; equiparando as críticas à guerra ou a Putin com terrorismo ou extremismo; e construindo uma nova elite militarizada de “guerreiros e trabalhadores” dispostos a pegar em armas, redesenhar as fronteiras internacionais e violar as normas globais por ordem do homem forte que governa a Rússia.

“Eles estão tentando desenvolver um putinismo científico como base da propaganda, como base da ideologia, como base do ensino da história”, disse Andrei Kolesnikov, membro sênior do Carnegie Russia Eurasia Center. “Eles precisam de uma nova geração obediente – robôs doutrinados, no sentido ideológico – apoiando Putin, apoiando as suas ideias, apoiando esta militarização da consciência.”

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Kolesnikov, falando em uma entrevista em Moscou, acrescentou: “Eles precisam de bucha de canhão para o futuro”.

O patriarca da Igreja Ortodoxa Russa Kirill conversa com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, em Moscou, Rússia  Foto: Igor Palkin/AP

Pouco antes de ordenar o que acreditava ser uma guerra curta e de choque contra a Ucrânia, Putin publicou um decreto pouco notado e considerado vital para a segurança nacional da Rússia. Apelou a medidas urgentes para proteger “os tradicionais valores espirituais e morais russos” e apontou os Estados Unidos como uma ameaça direta.

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“As ameaças aos valores tradicionais vêm de organizações extremistas e terroristas, de alguns meios de comunicação e plataformas de comunicação, das ações dos Estados Unidos e de outros países estrangeiros hostis”, afirmava a ordem. Um objetivo fundamental, dizia, era “posicionar o Estado russo na cena internacional como guardião e defensor dos tradicionais valores espirituais e morais universais”.

As descrições de Putin do Ocidente como “satânico” e da guerra como “sagrada” são cada vez mais repetidas pelas autoridades e pela Igreja Ortodoxa Russa.

Enquanto ele rompe os laços globais e prepara seu país para uma guerra eterna com o Ocidente, a polícia de choque na Rússia está invadindo discotecas e festas privadas, espancando convidados e processando proprietários de bares voltados ao público gay. Russos foram presos ou multados por usarem brincos de arco-íris ou exibirem bandeiras de arco-íris. Os dissidentes que foram presos na época soviética estão novamente atrás das grades - desta vez por denunciarem a guerra.

O Kremlin defendeu a repressão como uma resposta à exigência popular.

Para este artigo, a reportagem enviou perguntas ao porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, que respondeu a algumas delas, mas não todas. A reportagem também solicitou uma entrevista com Putin, pedido que foi negado.

“Se isso não for aceito pela sociedade, então a polícia terá de tomar medidas para equilibrar a situação com as exigências da sociedade”, escreveu Peskov na sua resposta. “A sociedade é agora menos tolerante com essas festas e discotecas.”

O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, participa de uma recepção para chefes de Estado, em Moscou, Rússia  Foto: Alexey Maishev/AP

Há muito obcecado com o declínio populacional da Rússia, Putin está exortando as mulheres russas a terem oito ou mais bebês, ao mesmo tempo que captura à força parte da população da Ucrânia. A Rússia emitiu mais de 3 milhões de passaportes no leste da Ucrânia desde 2019, segundo o ministério do interior russo.

Na Ucrânia ocupada, é virtualmente impossível trabalhar, conduzir ou obter cuidados de saúde, ajuda humanitária, benefícios ou outros serviços sem ter um passaporte russo – uma potencial violação das Convenções de Genebra, que afirmam que “é proibido obrigar os habitantes de um território ocupado a jurar lealdade à potência hostil”.

Na Crimeia, a Rússia emitiu mais de 1,5 milhão de passaportes depois de invadir e anexar ilegalmente a península em 2014.

Em termos de ambição e escala, o esforço de Putin para moldar uma nova identidade nacional é “tão profundo como a Revolução Russa de Outubro”, disse um membro da elite de Moscou com contatos no Kremlin, referindo-se a 1917, quando os bolcheviques de Vladimir Lenin tomaram o poder. “Ele atropela todos os valores”, disse essa fonte. “Ele corta todos os laços habituais.”

Tal como muitas pessoas neste artigo, esta fonte falou sob condição de anonimato por medo de represálias por parte do governo russo, que prendeu e até matou seus críticos. Alguns dos entrevistados para este artigo receberam advertências abertas, incluindo congelamento de suas contas bancárias e de seus bens, e dois foram presos.

“Eles estão tentando criar uma nova forma de ideologia para as massas”, disse Mikhail Zygar, um jornalista e escritor russo que vive atualmente em Nova York. “Não é uma guerra com a Ucrânia. É uma guerra com os EUA, uma guerra com o Ocidente ou com Satanás, com todas essas forças de decadência moral.” O putinismo traz marcas do fascismo, disse Zygar. “Ele está usando a guerra e o ódio como instrumento para fazer lavagem cerebral no povo russo”, disse ele. “É como tudo que sabemos a respeito do fascismo.”

Acusações e um mandado de prisão por divulgação de “notícias falsas” foram apresentados contra Zygar depois que a reportagem o entrevistou.

Soldado russo tira uma foto ao lado de uma foto do ex-líder soviético Josef Stalin Foto: Nanna Heitmann/The Washington Post

Origens do putinismo

A busca de Putin não é nova, mas o confronto da Rússia com o Ocidente envolvendo a Ucrânia permitiu a ele acelerar seu plano. O líder russo, que herdou o cargo em 31 de dezembro de 1999, começou imediatamente a atrofiar as instituições democráticas e aprovou uma batida na NTV, a principal estação de televisão independente, poucas semanas depois de vencer sua primeira eleição em março de 2000.

Durante suas primeiras duas décadas de governo, Putin surfou na crista dos preços do petróleo e do gás, mas nunca teve uma ideologia mobilizadora para convencer os cidadãos de que seu caminho era melhor do que as liberdades democráticas e a maior prosperidade econômica do Ocidente. Sua reengenharia da Rússia foi concebida para fornecer essa filosofia unificadora. Seu símbolo - a letra Z pintada de improviso nos tanques invasores em 2022 — agora adorna prédios públicos e cartazes.

Invadir a Ucrânia foi o passo mais destrutivo no plano de Putin, mais longo e grandioso, para restaurar a grandeza da Rússia como a superpotência que foi durante o período soviético, e como império durante 200 anos antes disso. Mas a sua transformação da Rússia começou muito antes da invasão da Ucrânia, usando a homofobia e os chamados valores tradicionais para perturbar as sociedades ocidentais e cortejar apoio no Sul Global. Ele também projetou seu poder militar ao invadir a Geórgia em 2008 e ao enviar tropas russas para a Síria e África.

O então líder da oposição Alexei Navalni participa de um debate em Moscou, Rússia  Foto: Alexander Zemlianichenko/AP

Na Rússia, a morte do rival mais forte de Putin, Alexei Navalny, em fevereiro, foi um sinal claro neste novo caminho. Putin ignorou a morte de Navalny, não demonstrando compaixão, muito menos remorso. “Acontece”, disse ele, endossando a conclusão oficial de que Navalny morreu de causas naturais. A viúva de Navalny, Yulia Navalnaya, acusou Putin de tê-lo matado.

Putin “decide tudo”, disse a fonte da elite russa, e embora o seu novo mandato vá até 2030, espera-se que ele permaneça no poder pelo tempo que desejar.

Em um discurso sobre o estado do país, em fevereiro, Putin descreveu seu esforço para que as mulheres tenham mais filhos e criem uma nova elite de trabalhadores e soldados.

“Podemos ver o que está acontecendo em alguns países onde os padrões morais e a família estão sendo deliberadamente destruídos e países inteiros são empurrados para a extinção e a decadência”, disse ele. “Nós escolhemos a vida. A Rússia foi e continua a ser um reduto dos valores tradicionais sobre os quais se baseia a civilização humana.”

Proclamando uma nova “época de heróis”, Putin disse que a velha elite oligárquica estava “desacreditada”.

“Aqueles que nada fizeram pela sociedade e se consideram uma casta dotada de direitos e privilégios especiais – especialmente aqueles que aproveitaram todos os tipos de processos econômicos na década de 1990 para encher os bolsos – definitivamente não são a elite”, disse ele. “Aqueles que servem a Rússia, trabalhadores esforçados e militares, pessoas confiáveis e dignas de confiança que provaram a sua lealdade”, acrescentou, “são a verdadeira elite”.

Uma mulher se ajoelha ao lado do túmulo do opositor russo Alexei Navalni, que morreu em uma prisão no Ártico  Foto: Nanna Heitmann/The Washington Post

Peskov, o porta-voz do Kremlin, em respostas escritas às perguntas da reportagem, disse que o objetivo era “encorajar nosso povo a dar à luz o máximo possível de crianças”, para aumentar a população da Rússia.

“E neste contexto, a difusão dos valores tradicionais é extremamente importante para nós, e neste contexto não temos nada em comum com este progressismo extremista, em termos do abandono dos valores humanos e religiosos tradicionais, que estamos testemunhando neste momento nos países europeus. Isso não corresponde ao nosso entendimento do que é certo”, acrescentou.

Peskov disse que o Kremlin “continuaria a fazer propaganda disso, no bom sentido da palavra”, acrescentando: “Especialmente agora, quando temos uma consolidação extrema da nossa sociedade em torno desta ideia de valores tradicionais e em torno do presidente, facilitando este processo.”

Rússia remasterizada

Em uma reunião em janeiro, Putin fez pose com um grupo de famílias vestidas com trajes nacionais vistosos. Foi a mais recente iteração de sua imagem, há muito moldada por atividades encenadas, como andar a cavalo sem camisa. Agora, exaltando os valores tradicionais, ele é o patriarca avô, relembrando retratos de Stalin com pessoas de toda a União Soviética.

“Nas famílias russas, muitas de nossas avós e bisavós tiveram sete ou oito filhos e até mais. Vamos preservar e reviver estas tradições maravilhosas”, disse Putin em um discurso em novembro dedicado a “uma Rússia eterna e milenar”.

A ênfase está em um Estado especial e poderoso dominado por Putin, na centenária autossuficiência e estoicismo russos e no sacrifício dos direitos individuais em nome do regime. Os homens dão a vida na guerra ou no trabalho. As mulheres deveriam doar seus corpos dando à luz filhos.

A visão de mundo de Putin se baseia nos vikings do século IX, nos antigos príncipes e nos tsares expansionistas, mas o seu centro de gravidade é a Segunda Guerra Mundial, ou a Grande Guerra Patriótica, na qual a Rússia ajudou a derrotar a Alemanha nazista. O orgulho russo por essa vitória, fundamental para a sua identidade nacional, está entrelaçado na mitologia de Putin a respeito da União Soviética.

Crianças russas brincam com armas em uma exposição militar em Moscou, Rússia Foto: Nanna Heitmann/The Washington Post

Stalin, que supervisionou a morte de milhões de pessoas nas fomes, nos expurgos e no gulag, foi promovido como um líder forte em tempo de guerra, com 63% dos russos expressando uma visão positiva dele em uma pesquisa de 2023 realizado pela agência Levada Center, e 47% expressando respeito por ele.

A admiração de Putin por Stalin remonta a décadas. Em 2002, quando o presidente polonês, Aleksander Kwasniewski, se encontrou com o líder russo durante quase cinco horas, pessoalmente, Putin professou uma forte admiração por três líderes - Pedro, o Grande; Catarina, a Grande; e Stalin - e um desejo de reconstruir a “Grande Rússia”.

“A impressão que tive foi a de estar diante de um homem formado pela KGB: a educação da KGB, os livros escolares da KGB e os livros de história, absolutamente falsificados”, disse Kwasniewski a Zygar, o jornalista russo, em 2022, “mas muito favorável a esse entendimento da Grande Rússia e do orgulho russo”.

Há muito que Putin está obcecado com a ideia de uma batalha entre civilizações contra o Ocidente, distorcendo a história para afirmar que a Rússia está apenas retomando as suas “terras históricas” na Ucrânia.

O primeiro-ministro Mikhail Kasyanov, o primeiro de Putin, disse que ele e outros reformadores da década de 1990 presumiam que, tal como eles, Putin tinha abraçado a democracia e as reformas de mercado. “Mas ele não o fez”, disse Kasyanov. “Apenas fingiu.” Kasyanov disse que ficou horrorizado com a abordagem de Putin para duas crises de reféns, em 2002 e 2004, ordenando o uso de forças de invasão e causando centenas de mortes.

O presidente russo, Vladimir Putin, à esquerda, gesticula enquanto conversa com o primeiro-ministro Mikhail Kasyanov durante uma reunião no Kremlin, em Moscou, em novembro de 2002 Foto: AFP/AFP

“Isso já foi uma demonstração da sua verdadeira natureza, da sua natureza da KGB: sem negociações, sem concessões, porque eles não podem chegar a um acordo por acreditarem que serão vistos como pessoas fracas”, disse ele. Em 2004, Kasyanov estava na oposição. “Eu entendi que ele é a pessoa mais errada de todas”, disse ele.

A primeira tentativa de Putin de dominar a Ucrânia, em 2004, visitando Kiev para apoiar o candidato presidencial pró-Kremlin, Viktor Yanukovych, saiu pela culatra e preparou o cenário para a Revolução Laranja e uma revanche eleitoral, que o candidato de Putin perdeu. Putin viu isso como um “golpe”, e o apoio ocidental ao vencedor, Viktor Yushchenko, como uma interferência. Foi o início da fixação de Putin no “problema ucraniano” e da sua crença de que um vizinho independente e democrático seria uma ameaça inaceitável ao seu próprio regime.

Abbas Gallyamov, redator de discursos de Putin de 2008 a 2010 e consultor político do Kremlin até 2018, disse que Putin invadiu a Crimeia em 2014 e conduziu um ataque militar em grande escala à Ucrânia em 2022, em parte para reverter o declínio em seu índice de aprovação. Depois de expressar críticas francas às decisões de Putin, disse Gallyamov, os administradores do Kremlin ameaçaram demiti-lo. “Depois disso recebi ameaças”, disse ele. “Você vai morrer de fome. Não receberá trabalho.”

Ele se mudou para Israel com sua família. No ano passado, foi colocado na lista de procurados da Rússia, de acordo com um banco de dados do ministério do interior, e o ministério da justiça russo o declarou um “agente estrangeiro”. Um mandado de prisão foi emitido em 4 de março.

Na Rússia, os professores são habituados a doutrinar as crianças e até a policiar as opiniões dos pais.

Os gastos com educação patriótica e organizações militarizadas estatais para crianças e adolescentes aumentaram para mais de US$ 500 milhões em 2024, em comparação a cerca de US$ 34 milhões em 2021, de acordo com estatísticas do orçamento federal divulgadas pelo RBC, um diário empresarial russo.

A partir de setembro, todas as crianças em idade escolar receberão treinamento militar com soldados que lutaram na Ucrânia; desde o ano passado, os estudantes universitários frequentam um curso obrigatório de patriotismo que transmite uma história distorcida e a ideia de que a Rússia não tem fronteiras quando se trata de “compatriotas” de língua russa.

Maria Lvova-Belova, comissária russa para os direitos da criança, fala à mídia na frente de crianças ucranianas antes de sua repatriação da Rússia para a Ucrânia por conta de um acordo intermediado pelo Catar, na Embaixada do Catar em Moscou Foto: Alexander Nemenov/AFP

Estudantes de todas as idades são inundados com atividades pró-guerra, incluindo palestras de veteranos de guerra vestidos com farda camuflada e toucas ninja pretas. Em Novosibirsk, as crianças fabricaram drones para a frente e em Mamadysh, na Tartária, produziram peças para a cauda de drones. Outros fizeram muletas para soldados feridos ou meias de tricô para cotos de militares que sofreram amputação.

Teorias da conspiração supersticiosas estão se consolidando, com a ciência recuando. Mais de uma dezena de cientistas russos foram acusados de traição, milhares fugiram do país e a publicação de artigos científicos russos despencou mais de 14% em 2022, em meio ao isolamento da Rússia após a invasão da Ucrânia, de acordo com o Scopus, um importante banco de dados independente de artigos de pesquisa revisados por pares.

Putin unge heróis cujos feitos mais chocam o Ocidente. Ele homenageou as tropas que a Ucrânia acusou de cometer atrocidades em Bucha em 2022; promoveu um funcionário do alto escalão das prisões russas dias após a morte de Navalny; e prestou homenagem à sua comissária para os direitos da criança, Maria Lvova-Belova, que, juntamente com Putin, foi acusada pelo Tribunal Penal Internacional de crimes de guerra pela “transferência ilegal” e “deportação ilegal” de crianças ucranianas. O Kremlin rejeita as acusações.

A elite russa, entretanto, endureceu contra o Ocidente, de acordo com um bilionário que vive fora da Rússia.

“Todo mundo é muito antiocidental; é o que ouvimos o tempo todo”, disse o bilionário. “Anti-Ocidente, anti-Ocidente, anti-Ocidente. E isso vai aumentar à medida que esta guerra durar – e poderá durar 10 anos ou mais.”

O presidente da Rùssia, Vladimir Putin, conversa com o presidente da China, Xi Jinping, em Pequim, China  Foto: Sergey Savostyanov/AP

Enquanto Putin critica a decadência liberal e a permissividade com o objetivo de reunir o país a seu favor, os patriotas russos ficam exultantes com a sua promessa de formar uma nova elite. Yekaterina Kolotovkina, esposa do tenente-general Andrei Kolotovkin, comandante do 2º exército de armas combinadas de guardas, de Samara, desenvolveu um projeto chamado “Esposas de Heróis”, que agora percorre o país com retratos patrióticos de esposas de soldados envoltas nos uniformes dos maridos.

Na Casa dos Oficiais de Samara, ela dirige um grupo de mulheres aposentadas que cortam e dobram bandagens para a guerra. O depósito está abarrotado de mercadorias a serem enviadas para a frente: desenhos infantis, velas e pacotes reconfortantes de biscoitos secos, doces e amuletos caseiros de boa sorte.

“As pessoas que regressam da operação militar especial devem ser criadas como esta nova elite”, disse Yekaterina em uma entrevista. “São pessoas que provaram o seu amor pela Rússia. São verdadeiros patriotas. Eles precisam receber empregos decentes nas instituições estatais.”

Ela culpa o Ocidente por enviar a sua “sujeira” para a Rússia e por promover a comunidade LGBTQ+.

“A nova Rússia tem tudo a ver com valores familiares, mamãe e papai”, disse ela. “Nossos filhos devem ser saudáveis e patrióticos. Será uma sociedade forte e patriótica. Nos livraremos de todos aqueles que começaram a destruir nosso país. Acredito que a nova Rússia não terá lugar para essas pessoas.”

‘Escória e traidores’

Juntamente com a promoção de novos heróis, o esforço de Putin para refazer a Rússia é marcado pela perseguição a milhares daqueles que ele chama de “escória e traidores” – inimigos do Estado. Mais de 116 mil russos foram julgados por artigos criminais ou administrativos repressivos durante o mandato mais recente de Putin, o maior número desde os tempos stalinistas, de acordo com um estudo realizado pela Proekt, um meio de comunicação investigativo russo.

Entre eles está Boris Kagarlitsky, um sociólogo de esquerda que foi preso em 1982 como dissidente soviético, com pouco mais de 20 anos.

Agora com 65 anos, Kagarlitsky foi novamente preso em julho pelo serviço federal de segurança por promover “terrorismo”. Foi algemado e forçado a entrar num SUV por guardas armados usando toucas ninja pretas, e depois conduzido durante 17 horas até Syktyvkar, no norte da Rússia, onde foi julgado.

“Kafka”, ele disse simplesmente. “Todos entenderam o absurdo.” Ele foi multado e libertado em dezembro, e novamente preso em fevereiro, depois que o promotor entrou com um recurso. Seus dias de administrador de um canal no YouTube em um estúdio em um porão escuro de Moscou terminaram. Em uma entrevista durante o almoço, antes de ser mandado de volta para a prisão, a reportagem perguntou por que ele não deixou a Rússia. Ele encolheu os ombros e sorriu. A prisão, disse ele, era “um risco profissional”.

Uma audiência sobre o processo judicial do sociólogo Boris Kagarlitsky, acusado de promover “terrorismo”, em Moscou, em Novembro. Foto: Evgeniy Razumniy/AP

Kagarlitsky disse que o esforço de Putin para reestruturar a Rússia é um desesperado jogar dos dados, desligado da realidade e fadado ao fracasso. “Não está apenas em descompasso com os russos comuns. Está em descompasso com a própria elite”, disse ele, antes de ir alimentar seu gato.

O regime também está se esforçando para desacreditar os críticos de Putin fora da Rússia, incluindo um adorado romancista policial, Grigory Chkhartishvili, residente em Londres, mais conhecido pelo seu pseudônimo, Boris Akunin, que foi acusado de “divulgar informações falsas a respeito dos militares russos” e de “justificar o terrorismo” por se opor à guerra na Ucrânia.

As lojas russas proibiram seus livros, seus royalties foram confiscados e ele recebeu um mandado de prisão in absentia. De acordo com Chkhartishvili, Putin está implementando uma “sharia ortodoxa” usando clichês xenófobos, preconceituosos, paranóicos, misóginos “e inevitavelmente antissemitas” para mobilizar os russos. “Moscou deve se tornar uma meca de idiotas”, disse ele. “Esse é o plano.”

Muitos dos entrevistados para este artigo fugiram da Rússia ou foram posteriormente presos, incluindo um excêntrico YouTuber, Askhabali Alibekov, que se autodenomina o “Pára-quedista Selvagem”. Alibekov, de Novorossiysk, no sul da Rússia, foi preso três vezes por criticar Putin e a guerra. Ele estava fugindo quando falou à reportagem em dezembro.

Ele cresceu em um orfanato, ganhando o apelido de “Lobinho”, lutando contra valentões, sempre ansioso para dar o último soco. Mas, lutando contra Putin, ele disse que sentia “total impotência e desamparo”.

“O país está se transformando em um estado absolutamente totalitário. Há total ilegalidade”, disse Alibekov. “Não há democracia. Existem pessoas ricas e escravos, só isso.” Em 20 de fevereiro, a polícia o arrastou para fora de um trem e ele foi detido, aguardando julgamento por suposta agressão aos policiais.

O ministério do interior da Rússia não respondeu a perguntas a respeito das acusações contra Gallyamov ou os casos contra Zygar, Akunin e Alibekov.

O choque causado pela caça aos inimigos da Rússia é suficiente para reprimir a maior parte da dissidência. Em janeiro, Yevgenia Maiboroda, 72 anos, uma aposentada solitária e profundamente religiosa, foi acusada de extremismo e condenada a 5 anos e meio de prisão por duas publicações contra a guerra nas redes sociais. E, em fevereiro, uma mulher de Nizhny Novgorod, Anastasia Yershova, foi presa durante cinco dias por exibir “símbolos extremistas” – brincos com um sapo e um arco-íris – que um tribunal considerou serem pró-LGBTQ+.

Algo de distópico

Em um vagão partilhado em um trem noturno de longa distância, uma mãe de uma cidade do sul da Rússia confidenciou suas preocupações a respeito dos seus filhos e do seu futuro.

A família dela adora passar férias na Itália, Espanha, Egito e Turquia. Ela exibiu fotos e vídeos de férias na praia e de uma festa de Ano Novo em Sharm el-Sheikh, no Egito, lotada de russos, todos os quais, segundo ela, desejavam que a guerra acabasse.

Sua filha, de 15 anos, sente-se atraída pela Europa e quer ser jornalista. Seu filho, de 10 anos, adora jogar. Ambos são viciados em seus iPhones e iPads. Assim como seus amigos, eles usam redes privadas virtuais (VPNs) para visualizar sites proibidos, como o Instagram.

As autoridades russas estão desenvolvendo tecnologia para reduzir a dissidência. As autoridades sinalizaram a proibição de VPNs, e os analistas consideram a proibição do YouTube inevitável.

Um tanque russo desfila em uma parada militar em Moscou, Rússia, para a celebração do Dia da Vitória  Foto: Nanna Heitmann/NYT

Há algo de distópico na nova Rússia. Ativistas pela paz, tanto jovens quanto velhos, estão atrás das grades, enquanto assassinos, estupradores e outros criminosos violentos condenados foram libertados – perdoados por Putin para lutar na Ucrânia. Alguns estão voltando da guerra e cometendo crimes horríveis.

Muitos progressistas, incluindo Kagarlitsky e Gallyamov, duvidam que Putin e os seus linhas-duras possam ter sucesso. “As sociedades nunca são desmodernizadas”, disse Kagarlitsky.

Gallyamov disse que muitos russos estão “realmente com medo” e acabarão por repudiar o governo de Putin, tal como a Alemanha rejeitou os nazistas.

“A população russa em geral está cansada do seu militarismo, da guerra, dessa histeria patriótica e antiocidental”, disse Gallyamov. “Eles querem drasticamente apenas a normalização.”

Talvez o cansaço seja murmurado baixo demais para que o Kremlin possa ouvir. No trem noturno, a mulher teve o cuidado de evitar falar de política, assunto que ela teme. E ainda assim seu desespero era visível.

“Eu só queria que esses tempos difíceis acabassem”, disse ela, em voz baixa e com amargura./TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

MOSCOU - Enquanto Vladimir Putin persiste na sua sangrenta campanha para conquistar a Ucrânia, o líder russo está comandando uma transformação igualmente importante no nível interno, reestruturando seu país na forma de uma sociedade regressiva e militarizada que enxerga o Ocidente como seu inimigo mortal.

A posse de Putin, na terça feira, iniciando um quinto mandato, não só marcará seu domínio de 25 anos no poder, mas também mostrará a mudança da Rússia para o que os comentadores pró-Kremlin chamam de “potência revolucionária”, decidida a virar de ponta cabeça a ordem global, estabelecendo suas próprias regras e exigindo que a autocracia totalitária seja respeitada como uma alternativa legítima à democracia em um mundo novamente dividido em esferas de influência pelas grandes potências.

“Os russos vivem em uma realidade totalmente nova”, escreveu Dmitri Trenin, analista pró-Kremlin, em resposta a perguntas sobre um ensaio no qual argumentava que a mudança da Rússia no sentido de se opor ao Ocidente era “mais radical e de longo alcance” do que qualquer coisa imaginada quando Putin invadiu a Ucrânia, mas também “um elemento relativamente menor da transformação mais ampla que está em curso na economia, na política, na sociedade, na cultura, nos valores e na vida espiritual e intelectual da Rússia”.

Uma grande estrela com um Z, que passou a representar os militares russos, é exibida em um memorial em homenagem aos heróis da Grande Guerra Patriótica, como é conhecida a Segunda Guerra Mundial na Rússia, em Moscou Foto: Nanna Heitmann/The Washington Post

Em reportagem, o Washington Post documenta a escala histórica das mudanças que Putin está levando a cabo e que aceleraram com uma velocidade vertiginosa ao longo de dois anos de guerra brutal, mesmo com dezenas de milhares de russos fugindo para o estrangeiro. É uma cruzada que dá a Putin uma causa comum com Xi Jinping, da China, bem como com alguns defensores do ex-presidente americano Donald Trump. E isso traz a perspectiva de um conflito civilizacional duradouro para subverter a democracia ocidental e - advertiu Putin - até mesmo a ameaça de uma nova guerra mundial.

Para realizar esta transformação, o Kremlin está:

- Forjando uma sociedade ultraconservadora e puritana, mobilizada contra as liberdades progressistas e especialmente hostil aos gays e transexuais, na qual a política familiar e os gastos com o bem-estar social impulsionam os valores ortodoxos tradicionais.

- Remodelando a educação em todos os níveis para doutrinar uma nova geração de jovens ultra-patriotas, com livros didáticos reescritos para refletir a propaganda do Kremlin, currículos patrióticos definidos pelo Estado e, a partir de setembro, aulas militares obrigatórias ministradas por soldados denominadas “Fundamentos de Segurança e Proteção da Pátria”, que incluirá treinamento no manuseio de rifles de assalto Kalashnikov, granadas e drones.

- Esterilizando a vida cultural com listas de proibição a cantores, diretores, escritores e artistas progressistas ou contrários à guerra, e com novas diretrizes nacionalistas para museus e cineastas.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, discursa em Moscou, Rússia  Foto: Sergei Guneyev/AP

- Mobilizando um zeloso ativismo pró-guerra sob o brutal símbolo Z, que foi inicialmente pintado nas laterais dos tanques russos que invadiam a Ucrânia, mas que desde então se espalhou por edifícios governamentais, cartazes, escolas e manifestações orquestradas.

- Revertendo os direitos das mulheres com uma torrente de propaganda a respeito da necessidade de engravidar (durante a juventude e com frequência), restringindo o acesso ao aborto, e acusando ativistas feministas e jornalistas progressistas de terrorismo, extremismo, difamação dos militares e outros crimes.

- Reescrevendo a história para celebrar Iossif Stalin, o ditador soviético que enviou milhões para o gulag, por meio de pelo menos 95 dos 110 monumentos erguidos na Rússia durante o período de Putin como líder. Enquanto isso, o Memorial, um grupo de defensores dos direitos humanos que expôs os crimes de Estaline e foi um dos ganhadores do Prêmio Nobel da Paz de 2022, foi fechado, e seu co-presidente, o pacifista Oleg Orlov, 71 anos, foi preso.

- Acusando cientistas de traição; equiparando as críticas à guerra ou a Putin com terrorismo ou extremismo; e construindo uma nova elite militarizada de “guerreiros e trabalhadores” dispostos a pegar em armas, redesenhar as fronteiras internacionais e violar as normas globais por ordem do homem forte que governa a Rússia.

“Eles estão tentando desenvolver um putinismo científico como base da propaganda, como base da ideologia, como base do ensino da história”, disse Andrei Kolesnikov, membro sênior do Carnegie Russia Eurasia Center. “Eles precisam de uma nova geração obediente – robôs doutrinados, no sentido ideológico – apoiando Putin, apoiando as suas ideias, apoiando esta militarização da consciência.”

Kolesnikov, falando em uma entrevista em Moscou, acrescentou: “Eles precisam de bucha de canhão para o futuro”.

O patriarca da Igreja Ortodoxa Russa Kirill conversa com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, em Moscou, Rússia  Foto: Igor Palkin/AP

Pouco antes de ordenar o que acreditava ser uma guerra curta e de choque contra a Ucrânia, Putin publicou um decreto pouco notado e considerado vital para a segurança nacional da Rússia. Apelou a medidas urgentes para proteger “os tradicionais valores espirituais e morais russos” e apontou os Estados Unidos como uma ameaça direta.

“As ameaças aos valores tradicionais vêm de organizações extremistas e terroristas, de alguns meios de comunicação e plataformas de comunicação, das ações dos Estados Unidos e de outros países estrangeiros hostis”, afirmava a ordem. Um objetivo fundamental, dizia, era “posicionar o Estado russo na cena internacional como guardião e defensor dos tradicionais valores espirituais e morais universais”.

As descrições de Putin do Ocidente como “satânico” e da guerra como “sagrada” são cada vez mais repetidas pelas autoridades e pela Igreja Ortodoxa Russa.

Enquanto ele rompe os laços globais e prepara seu país para uma guerra eterna com o Ocidente, a polícia de choque na Rússia está invadindo discotecas e festas privadas, espancando convidados e processando proprietários de bares voltados ao público gay. Russos foram presos ou multados por usarem brincos de arco-íris ou exibirem bandeiras de arco-íris. Os dissidentes que foram presos na época soviética estão novamente atrás das grades - desta vez por denunciarem a guerra.

O Kremlin defendeu a repressão como uma resposta à exigência popular.

Para este artigo, a reportagem enviou perguntas ao porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, que respondeu a algumas delas, mas não todas. A reportagem também solicitou uma entrevista com Putin, pedido que foi negado.

“Se isso não for aceito pela sociedade, então a polícia terá de tomar medidas para equilibrar a situação com as exigências da sociedade”, escreveu Peskov na sua resposta. “A sociedade é agora menos tolerante com essas festas e discotecas.”

O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, participa de uma recepção para chefes de Estado, em Moscou, Rússia  Foto: Alexey Maishev/AP

Há muito obcecado com o declínio populacional da Rússia, Putin está exortando as mulheres russas a terem oito ou mais bebês, ao mesmo tempo que captura à força parte da população da Ucrânia. A Rússia emitiu mais de 3 milhões de passaportes no leste da Ucrânia desde 2019, segundo o ministério do interior russo.

Na Ucrânia ocupada, é virtualmente impossível trabalhar, conduzir ou obter cuidados de saúde, ajuda humanitária, benefícios ou outros serviços sem ter um passaporte russo – uma potencial violação das Convenções de Genebra, que afirmam que “é proibido obrigar os habitantes de um território ocupado a jurar lealdade à potência hostil”.

Na Crimeia, a Rússia emitiu mais de 1,5 milhão de passaportes depois de invadir e anexar ilegalmente a península em 2014.

Em termos de ambição e escala, o esforço de Putin para moldar uma nova identidade nacional é “tão profundo como a Revolução Russa de Outubro”, disse um membro da elite de Moscou com contatos no Kremlin, referindo-se a 1917, quando os bolcheviques de Vladimir Lenin tomaram o poder. “Ele atropela todos os valores”, disse essa fonte. “Ele corta todos os laços habituais.”

Tal como muitas pessoas neste artigo, esta fonte falou sob condição de anonimato por medo de represálias por parte do governo russo, que prendeu e até matou seus críticos. Alguns dos entrevistados para este artigo receberam advertências abertas, incluindo congelamento de suas contas bancárias e de seus bens, e dois foram presos.

“Eles estão tentando criar uma nova forma de ideologia para as massas”, disse Mikhail Zygar, um jornalista e escritor russo que vive atualmente em Nova York. “Não é uma guerra com a Ucrânia. É uma guerra com os EUA, uma guerra com o Ocidente ou com Satanás, com todas essas forças de decadência moral.” O putinismo traz marcas do fascismo, disse Zygar. “Ele está usando a guerra e o ódio como instrumento para fazer lavagem cerebral no povo russo”, disse ele. “É como tudo que sabemos a respeito do fascismo.”

Acusações e um mandado de prisão por divulgação de “notícias falsas” foram apresentados contra Zygar depois que a reportagem o entrevistou.

Soldado russo tira uma foto ao lado de uma foto do ex-líder soviético Josef Stalin Foto: Nanna Heitmann/The Washington Post

Origens do putinismo

A busca de Putin não é nova, mas o confronto da Rússia com o Ocidente envolvendo a Ucrânia permitiu a ele acelerar seu plano. O líder russo, que herdou o cargo em 31 de dezembro de 1999, começou imediatamente a atrofiar as instituições democráticas e aprovou uma batida na NTV, a principal estação de televisão independente, poucas semanas depois de vencer sua primeira eleição em março de 2000.

Durante suas primeiras duas décadas de governo, Putin surfou na crista dos preços do petróleo e do gás, mas nunca teve uma ideologia mobilizadora para convencer os cidadãos de que seu caminho era melhor do que as liberdades democráticas e a maior prosperidade econômica do Ocidente. Sua reengenharia da Rússia foi concebida para fornecer essa filosofia unificadora. Seu símbolo - a letra Z pintada de improviso nos tanques invasores em 2022 — agora adorna prédios públicos e cartazes.

Invadir a Ucrânia foi o passo mais destrutivo no plano de Putin, mais longo e grandioso, para restaurar a grandeza da Rússia como a superpotência que foi durante o período soviético, e como império durante 200 anos antes disso. Mas a sua transformação da Rússia começou muito antes da invasão da Ucrânia, usando a homofobia e os chamados valores tradicionais para perturbar as sociedades ocidentais e cortejar apoio no Sul Global. Ele também projetou seu poder militar ao invadir a Geórgia em 2008 e ao enviar tropas russas para a Síria e África.

O então líder da oposição Alexei Navalni participa de um debate em Moscou, Rússia  Foto: Alexander Zemlianichenko/AP

Na Rússia, a morte do rival mais forte de Putin, Alexei Navalny, em fevereiro, foi um sinal claro neste novo caminho. Putin ignorou a morte de Navalny, não demonstrando compaixão, muito menos remorso. “Acontece”, disse ele, endossando a conclusão oficial de que Navalny morreu de causas naturais. A viúva de Navalny, Yulia Navalnaya, acusou Putin de tê-lo matado.

Putin “decide tudo”, disse a fonte da elite russa, e embora o seu novo mandato vá até 2030, espera-se que ele permaneça no poder pelo tempo que desejar.

Em um discurso sobre o estado do país, em fevereiro, Putin descreveu seu esforço para que as mulheres tenham mais filhos e criem uma nova elite de trabalhadores e soldados.

“Podemos ver o que está acontecendo em alguns países onde os padrões morais e a família estão sendo deliberadamente destruídos e países inteiros são empurrados para a extinção e a decadência”, disse ele. “Nós escolhemos a vida. A Rússia foi e continua a ser um reduto dos valores tradicionais sobre os quais se baseia a civilização humana.”

Proclamando uma nova “época de heróis”, Putin disse que a velha elite oligárquica estava “desacreditada”.

“Aqueles que nada fizeram pela sociedade e se consideram uma casta dotada de direitos e privilégios especiais – especialmente aqueles que aproveitaram todos os tipos de processos econômicos na década de 1990 para encher os bolsos – definitivamente não são a elite”, disse ele. “Aqueles que servem a Rússia, trabalhadores esforçados e militares, pessoas confiáveis e dignas de confiança que provaram a sua lealdade”, acrescentou, “são a verdadeira elite”.

Uma mulher se ajoelha ao lado do túmulo do opositor russo Alexei Navalni, que morreu em uma prisão no Ártico  Foto: Nanna Heitmann/The Washington Post

Peskov, o porta-voz do Kremlin, em respostas escritas às perguntas da reportagem, disse que o objetivo era “encorajar nosso povo a dar à luz o máximo possível de crianças”, para aumentar a população da Rússia.

“E neste contexto, a difusão dos valores tradicionais é extremamente importante para nós, e neste contexto não temos nada em comum com este progressismo extremista, em termos do abandono dos valores humanos e religiosos tradicionais, que estamos testemunhando neste momento nos países europeus. Isso não corresponde ao nosso entendimento do que é certo”, acrescentou.

Peskov disse que o Kremlin “continuaria a fazer propaganda disso, no bom sentido da palavra”, acrescentando: “Especialmente agora, quando temos uma consolidação extrema da nossa sociedade em torno desta ideia de valores tradicionais e em torno do presidente, facilitando este processo.”

Rússia remasterizada

Em uma reunião em janeiro, Putin fez pose com um grupo de famílias vestidas com trajes nacionais vistosos. Foi a mais recente iteração de sua imagem, há muito moldada por atividades encenadas, como andar a cavalo sem camisa. Agora, exaltando os valores tradicionais, ele é o patriarca avô, relembrando retratos de Stalin com pessoas de toda a União Soviética.

“Nas famílias russas, muitas de nossas avós e bisavós tiveram sete ou oito filhos e até mais. Vamos preservar e reviver estas tradições maravilhosas”, disse Putin em um discurso em novembro dedicado a “uma Rússia eterna e milenar”.

A ênfase está em um Estado especial e poderoso dominado por Putin, na centenária autossuficiência e estoicismo russos e no sacrifício dos direitos individuais em nome do regime. Os homens dão a vida na guerra ou no trabalho. As mulheres deveriam doar seus corpos dando à luz filhos.

A visão de mundo de Putin se baseia nos vikings do século IX, nos antigos príncipes e nos tsares expansionistas, mas o seu centro de gravidade é a Segunda Guerra Mundial, ou a Grande Guerra Patriótica, na qual a Rússia ajudou a derrotar a Alemanha nazista. O orgulho russo por essa vitória, fundamental para a sua identidade nacional, está entrelaçado na mitologia de Putin a respeito da União Soviética.

Crianças russas brincam com armas em uma exposição militar em Moscou, Rússia Foto: Nanna Heitmann/The Washington Post

Stalin, que supervisionou a morte de milhões de pessoas nas fomes, nos expurgos e no gulag, foi promovido como um líder forte em tempo de guerra, com 63% dos russos expressando uma visão positiva dele em uma pesquisa de 2023 realizado pela agência Levada Center, e 47% expressando respeito por ele.

A admiração de Putin por Stalin remonta a décadas. Em 2002, quando o presidente polonês, Aleksander Kwasniewski, se encontrou com o líder russo durante quase cinco horas, pessoalmente, Putin professou uma forte admiração por três líderes - Pedro, o Grande; Catarina, a Grande; e Stalin - e um desejo de reconstruir a “Grande Rússia”.

“A impressão que tive foi a de estar diante de um homem formado pela KGB: a educação da KGB, os livros escolares da KGB e os livros de história, absolutamente falsificados”, disse Kwasniewski a Zygar, o jornalista russo, em 2022, “mas muito favorável a esse entendimento da Grande Rússia e do orgulho russo”.

Há muito que Putin está obcecado com a ideia de uma batalha entre civilizações contra o Ocidente, distorcendo a história para afirmar que a Rússia está apenas retomando as suas “terras históricas” na Ucrânia.

O primeiro-ministro Mikhail Kasyanov, o primeiro de Putin, disse que ele e outros reformadores da década de 1990 presumiam que, tal como eles, Putin tinha abraçado a democracia e as reformas de mercado. “Mas ele não o fez”, disse Kasyanov. “Apenas fingiu.” Kasyanov disse que ficou horrorizado com a abordagem de Putin para duas crises de reféns, em 2002 e 2004, ordenando o uso de forças de invasão e causando centenas de mortes.

O presidente russo, Vladimir Putin, à esquerda, gesticula enquanto conversa com o primeiro-ministro Mikhail Kasyanov durante uma reunião no Kremlin, em Moscou, em novembro de 2002 Foto: AFP/AFP

“Isso já foi uma demonstração da sua verdadeira natureza, da sua natureza da KGB: sem negociações, sem concessões, porque eles não podem chegar a um acordo por acreditarem que serão vistos como pessoas fracas”, disse ele. Em 2004, Kasyanov estava na oposição. “Eu entendi que ele é a pessoa mais errada de todas”, disse ele.

A primeira tentativa de Putin de dominar a Ucrânia, em 2004, visitando Kiev para apoiar o candidato presidencial pró-Kremlin, Viktor Yanukovych, saiu pela culatra e preparou o cenário para a Revolução Laranja e uma revanche eleitoral, que o candidato de Putin perdeu. Putin viu isso como um “golpe”, e o apoio ocidental ao vencedor, Viktor Yushchenko, como uma interferência. Foi o início da fixação de Putin no “problema ucraniano” e da sua crença de que um vizinho independente e democrático seria uma ameaça inaceitável ao seu próprio regime.

Abbas Gallyamov, redator de discursos de Putin de 2008 a 2010 e consultor político do Kremlin até 2018, disse que Putin invadiu a Crimeia em 2014 e conduziu um ataque militar em grande escala à Ucrânia em 2022, em parte para reverter o declínio em seu índice de aprovação. Depois de expressar críticas francas às decisões de Putin, disse Gallyamov, os administradores do Kremlin ameaçaram demiti-lo. “Depois disso recebi ameaças”, disse ele. “Você vai morrer de fome. Não receberá trabalho.”

Ele se mudou para Israel com sua família. No ano passado, foi colocado na lista de procurados da Rússia, de acordo com um banco de dados do ministério do interior, e o ministério da justiça russo o declarou um “agente estrangeiro”. Um mandado de prisão foi emitido em 4 de março.

Na Rússia, os professores são habituados a doutrinar as crianças e até a policiar as opiniões dos pais.

Os gastos com educação patriótica e organizações militarizadas estatais para crianças e adolescentes aumentaram para mais de US$ 500 milhões em 2024, em comparação a cerca de US$ 34 milhões em 2021, de acordo com estatísticas do orçamento federal divulgadas pelo RBC, um diário empresarial russo.

A partir de setembro, todas as crianças em idade escolar receberão treinamento militar com soldados que lutaram na Ucrânia; desde o ano passado, os estudantes universitários frequentam um curso obrigatório de patriotismo que transmite uma história distorcida e a ideia de que a Rússia não tem fronteiras quando se trata de “compatriotas” de língua russa.

Maria Lvova-Belova, comissária russa para os direitos da criança, fala à mídia na frente de crianças ucranianas antes de sua repatriação da Rússia para a Ucrânia por conta de um acordo intermediado pelo Catar, na Embaixada do Catar em Moscou Foto: Alexander Nemenov/AFP

Estudantes de todas as idades são inundados com atividades pró-guerra, incluindo palestras de veteranos de guerra vestidos com farda camuflada e toucas ninja pretas. Em Novosibirsk, as crianças fabricaram drones para a frente e em Mamadysh, na Tartária, produziram peças para a cauda de drones. Outros fizeram muletas para soldados feridos ou meias de tricô para cotos de militares que sofreram amputação.

Teorias da conspiração supersticiosas estão se consolidando, com a ciência recuando. Mais de uma dezena de cientistas russos foram acusados de traição, milhares fugiram do país e a publicação de artigos científicos russos despencou mais de 14% em 2022, em meio ao isolamento da Rússia após a invasão da Ucrânia, de acordo com o Scopus, um importante banco de dados independente de artigos de pesquisa revisados por pares.

Putin unge heróis cujos feitos mais chocam o Ocidente. Ele homenageou as tropas que a Ucrânia acusou de cometer atrocidades em Bucha em 2022; promoveu um funcionário do alto escalão das prisões russas dias após a morte de Navalny; e prestou homenagem à sua comissária para os direitos da criança, Maria Lvova-Belova, que, juntamente com Putin, foi acusada pelo Tribunal Penal Internacional de crimes de guerra pela “transferência ilegal” e “deportação ilegal” de crianças ucranianas. O Kremlin rejeita as acusações.

A elite russa, entretanto, endureceu contra o Ocidente, de acordo com um bilionário que vive fora da Rússia.

“Todo mundo é muito antiocidental; é o que ouvimos o tempo todo”, disse o bilionário. “Anti-Ocidente, anti-Ocidente, anti-Ocidente. E isso vai aumentar à medida que esta guerra durar – e poderá durar 10 anos ou mais.”

O presidente da Rùssia, Vladimir Putin, conversa com o presidente da China, Xi Jinping, em Pequim, China  Foto: Sergey Savostyanov/AP

Enquanto Putin critica a decadência liberal e a permissividade com o objetivo de reunir o país a seu favor, os patriotas russos ficam exultantes com a sua promessa de formar uma nova elite. Yekaterina Kolotovkina, esposa do tenente-general Andrei Kolotovkin, comandante do 2º exército de armas combinadas de guardas, de Samara, desenvolveu um projeto chamado “Esposas de Heróis”, que agora percorre o país com retratos patrióticos de esposas de soldados envoltas nos uniformes dos maridos.

Na Casa dos Oficiais de Samara, ela dirige um grupo de mulheres aposentadas que cortam e dobram bandagens para a guerra. O depósito está abarrotado de mercadorias a serem enviadas para a frente: desenhos infantis, velas e pacotes reconfortantes de biscoitos secos, doces e amuletos caseiros de boa sorte.

“As pessoas que regressam da operação militar especial devem ser criadas como esta nova elite”, disse Yekaterina em uma entrevista. “São pessoas que provaram o seu amor pela Rússia. São verdadeiros patriotas. Eles precisam receber empregos decentes nas instituições estatais.”

Ela culpa o Ocidente por enviar a sua “sujeira” para a Rússia e por promover a comunidade LGBTQ+.

“A nova Rússia tem tudo a ver com valores familiares, mamãe e papai”, disse ela. “Nossos filhos devem ser saudáveis e patrióticos. Será uma sociedade forte e patriótica. Nos livraremos de todos aqueles que começaram a destruir nosso país. Acredito que a nova Rússia não terá lugar para essas pessoas.”

‘Escória e traidores’

Juntamente com a promoção de novos heróis, o esforço de Putin para refazer a Rússia é marcado pela perseguição a milhares daqueles que ele chama de “escória e traidores” – inimigos do Estado. Mais de 116 mil russos foram julgados por artigos criminais ou administrativos repressivos durante o mandato mais recente de Putin, o maior número desde os tempos stalinistas, de acordo com um estudo realizado pela Proekt, um meio de comunicação investigativo russo.

Entre eles está Boris Kagarlitsky, um sociólogo de esquerda que foi preso em 1982 como dissidente soviético, com pouco mais de 20 anos.

Agora com 65 anos, Kagarlitsky foi novamente preso em julho pelo serviço federal de segurança por promover “terrorismo”. Foi algemado e forçado a entrar num SUV por guardas armados usando toucas ninja pretas, e depois conduzido durante 17 horas até Syktyvkar, no norte da Rússia, onde foi julgado.

“Kafka”, ele disse simplesmente. “Todos entenderam o absurdo.” Ele foi multado e libertado em dezembro, e novamente preso em fevereiro, depois que o promotor entrou com um recurso. Seus dias de administrador de um canal no YouTube em um estúdio em um porão escuro de Moscou terminaram. Em uma entrevista durante o almoço, antes de ser mandado de volta para a prisão, a reportagem perguntou por que ele não deixou a Rússia. Ele encolheu os ombros e sorriu. A prisão, disse ele, era “um risco profissional”.

Uma audiência sobre o processo judicial do sociólogo Boris Kagarlitsky, acusado de promover “terrorismo”, em Moscou, em Novembro. Foto: Evgeniy Razumniy/AP

Kagarlitsky disse que o esforço de Putin para reestruturar a Rússia é um desesperado jogar dos dados, desligado da realidade e fadado ao fracasso. “Não está apenas em descompasso com os russos comuns. Está em descompasso com a própria elite”, disse ele, antes de ir alimentar seu gato.

O regime também está se esforçando para desacreditar os críticos de Putin fora da Rússia, incluindo um adorado romancista policial, Grigory Chkhartishvili, residente em Londres, mais conhecido pelo seu pseudônimo, Boris Akunin, que foi acusado de “divulgar informações falsas a respeito dos militares russos” e de “justificar o terrorismo” por se opor à guerra na Ucrânia.

As lojas russas proibiram seus livros, seus royalties foram confiscados e ele recebeu um mandado de prisão in absentia. De acordo com Chkhartishvili, Putin está implementando uma “sharia ortodoxa” usando clichês xenófobos, preconceituosos, paranóicos, misóginos “e inevitavelmente antissemitas” para mobilizar os russos. “Moscou deve se tornar uma meca de idiotas”, disse ele. “Esse é o plano.”

Muitos dos entrevistados para este artigo fugiram da Rússia ou foram posteriormente presos, incluindo um excêntrico YouTuber, Askhabali Alibekov, que se autodenomina o “Pára-quedista Selvagem”. Alibekov, de Novorossiysk, no sul da Rússia, foi preso três vezes por criticar Putin e a guerra. Ele estava fugindo quando falou à reportagem em dezembro.

Ele cresceu em um orfanato, ganhando o apelido de “Lobinho”, lutando contra valentões, sempre ansioso para dar o último soco. Mas, lutando contra Putin, ele disse que sentia “total impotência e desamparo”.

“O país está se transformando em um estado absolutamente totalitário. Há total ilegalidade”, disse Alibekov. “Não há democracia. Existem pessoas ricas e escravos, só isso.” Em 20 de fevereiro, a polícia o arrastou para fora de um trem e ele foi detido, aguardando julgamento por suposta agressão aos policiais.

O ministério do interior da Rússia não respondeu a perguntas a respeito das acusações contra Gallyamov ou os casos contra Zygar, Akunin e Alibekov.

O choque causado pela caça aos inimigos da Rússia é suficiente para reprimir a maior parte da dissidência. Em janeiro, Yevgenia Maiboroda, 72 anos, uma aposentada solitária e profundamente religiosa, foi acusada de extremismo e condenada a 5 anos e meio de prisão por duas publicações contra a guerra nas redes sociais. E, em fevereiro, uma mulher de Nizhny Novgorod, Anastasia Yershova, foi presa durante cinco dias por exibir “símbolos extremistas” – brincos com um sapo e um arco-íris – que um tribunal considerou serem pró-LGBTQ+.

Algo de distópico

Em um vagão partilhado em um trem noturno de longa distância, uma mãe de uma cidade do sul da Rússia confidenciou suas preocupações a respeito dos seus filhos e do seu futuro.

A família dela adora passar férias na Itália, Espanha, Egito e Turquia. Ela exibiu fotos e vídeos de férias na praia e de uma festa de Ano Novo em Sharm el-Sheikh, no Egito, lotada de russos, todos os quais, segundo ela, desejavam que a guerra acabasse.

Sua filha, de 15 anos, sente-se atraída pela Europa e quer ser jornalista. Seu filho, de 10 anos, adora jogar. Ambos são viciados em seus iPhones e iPads. Assim como seus amigos, eles usam redes privadas virtuais (VPNs) para visualizar sites proibidos, como o Instagram.

As autoridades russas estão desenvolvendo tecnologia para reduzir a dissidência. As autoridades sinalizaram a proibição de VPNs, e os analistas consideram a proibição do YouTube inevitável.

Um tanque russo desfila em uma parada militar em Moscou, Rússia, para a celebração do Dia da Vitória  Foto: Nanna Heitmann/NYT

Há algo de distópico na nova Rússia. Ativistas pela paz, tanto jovens quanto velhos, estão atrás das grades, enquanto assassinos, estupradores e outros criminosos violentos condenados foram libertados – perdoados por Putin para lutar na Ucrânia. Alguns estão voltando da guerra e cometendo crimes horríveis.

Muitos progressistas, incluindo Kagarlitsky e Gallyamov, duvidam que Putin e os seus linhas-duras possam ter sucesso. “As sociedades nunca são desmodernizadas”, disse Kagarlitsky.

Gallyamov disse que muitos russos estão “realmente com medo” e acabarão por repudiar o governo de Putin, tal como a Alemanha rejeitou os nazistas.

“A população russa em geral está cansada do seu militarismo, da guerra, dessa histeria patriótica e antiocidental”, disse Gallyamov. “Eles querem drasticamente apenas a normalização.”

Talvez o cansaço seja murmurado baixo demais para que o Kremlin possa ouvir. No trem noturno, a mulher teve o cuidado de evitar falar de política, assunto que ela teme. E ainda assim seu desespero era visível.

“Eu só queria que esses tempos difíceis acabassem”, disse ela, em voz baixa e com amargura./TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

MOSCOU - Enquanto Vladimir Putin persiste na sua sangrenta campanha para conquistar a Ucrânia, o líder russo está comandando uma transformação igualmente importante no nível interno, reestruturando seu país na forma de uma sociedade regressiva e militarizada que enxerga o Ocidente como seu inimigo mortal.

A posse de Putin, na terça feira, iniciando um quinto mandato, não só marcará seu domínio de 25 anos no poder, mas também mostrará a mudança da Rússia para o que os comentadores pró-Kremlin chamam de “potência revolucionária”, decidida a virar de ponta cabeça a ordem global, estabelecendo suas próprias regras e exigindo que a autocracia totalitária seja respeitada como uma alternativa legítima à democracia em um mundo novamente dividido em esferas de influência pelas grandes potências.

“Os russos vivem em uma realidade totalmente nova”, escreveu Dmitri Trenin, analista pró-Kremlin, em resposta a perguntas sobre um ensaio no qual argumentava que a mudança da Rússia no sentido de se opor ao Ocidente era “mais radical e de longo alcance” do que qualquer coisa imaginada quando Putin invadiu a Ucrânia, mas também “um elemento relativamente menor da transformação mais ampla que está em curso na economia, na política, na sociedade, na cultura, nos valores e na vida espiritual e intelectual da Rússia”.

Uma grande estrela com um Z, que passou a representar os militares russos, é exibida em um memorial em homenagem aos heróis da Grande Guerra Patriótica, como é conhecida a Segunda Guerra Mundial na Rússia, em Moscou Foto: Nanna Heitmann/The Washington Post

Em reportagem, o Washington Post documenta a escala histórica das mudanças que Putin está levando a cabo e que aceleraram com uma velocidade vertiginosa ao longo de dois anos de guerra brutal, mesmo com dezenas de milhares de russos fugindo para o estrangeiro. É uma cruzada que dá a Putin uma causa comum com Xi Jinping, da China, bem como com alguns defensores do ex-presidente americano Donald Trump. E isso traz a perspectiva de um conflito civilizacional duradouro para subverter a democracia ocidental e - advertiu Putin - até mesmo a ameaça de uma nova guerra mundial.

Para realizar esta transformação, o Kremlin está:

- Forjando uma sociedade ultraconservadora e puritana, mobilizada contra as liberdades progressistas e especialmente hostil aos gays e transexuais, na qual a política familiar e os gastos com o bem-estar social impulsionam os valores ortodoxos tradicionais.

- Remodelando a educação em todos os níveis para doutrinar uma nova geração de jovens ultra-patriotas, com livros didáticos reescritos para refletir a propaganda do Kremlin, currículos patrióticos definidos pelo Estado e, a partir de setembro, aulas militares obrigatórias ministradas por soldados denominadas “Fundamentos de Segurança e Proteção da Pátria”, que incluirá treinamento no manuseio de rifles de assalto Kalashnikov, granadas e drones.

- Esterilizando a vida cultural com listas de proibição a cantores, diretores, escritores e artistas progressistas ou contrários à guerra, e com novas diretrizes nacionalistas para museus e cineastas.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, discursa em Moscou, Rússia  Foto: Sergei Guneyev/AP

- Mobilizando um zeloso ativismo pró-guerra sob o brutal símbolo Z, que foi inicialmente pintado nas laterais dos tanques russos que invadiam a Ucrânia, mas que desde então se espalhou por edifícios governamentais, cartazes, escolas e manifestações orquestradas.

- Revertendo os direitos das mulheres com uma torrente de propaganda a respeito da necessidade de engravidar (durante a juventude e com frequência), restringindo o acesso ao aborto, e acusando ativistas feministas e jornalistas progressistas de terrorismo, extremismo, difamação dos militares e outros crimes.

- Reescrevendo a história para celebrar Iossif Stalin, o ditador soviético que enviou milhões para o gulag, por meio de pelo menos 95 dos 110 monumentos erguidos na Rússia durante o período de Putin como líder. Enquanto isso, o Memorial, um grupo de defensores dos direitos humanos que expôs os crimes de Estaline e foi um dos ganhadores do Prêmio Nobel da Paz de 2022, foi fechado, e seu co-presidente, o pacifista Oleg Orlov, 71 anos, foi preso.

- Acusando cientistas de traição; equiparando as críticas à guerra ou a Putin com terrorismo ou extremismo; e construindo uma nova elite militarizada de “guerreiros e trabalhadores” dispostos a pegar em armas, redesenhar as fronteiras internacionais e violar as normas globais por ordem do homem forte que governa a Rússia.

“Eles estão tentando desenvolver um putinismo científico como base da propaganda, como base da ideologia, como base do ensino da história”, disse Andrei Kolesnikov, membro sênior do Carnegie Russia Eurasia Center. “Eles precisam de uma nova geração obediente – robôs doutrinados, no sentido ideológico – apoiando Putin, apoiando as suas ideias, apoiando esta militarização da consciência.”

Kolesnikov, falando em uma entrevista em Moscou, acrescentou: “Eles precisam de bucha de canhão para o futuro”.

O patriarca da Igreja Ortodoxa Russa Kirill conversa com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, em Moscou, Rússia  Foto: Igor Palkin/AP

Pouco antes de ordenar o que acreditava ser uma guerra curta e de choque contra a Ucrânia, Putin publicou um decreto pouco notado e considerado vital para a segurança nacional da Rússia. Apelou a medidas urgentes para proteger “os tradicionais valores espirituais e morais russos” e apontou os Estados Unidos como uma ameaça direta.

“As ameaças aos valores tradicionais vêm de organizações extremistas e terroristas, de alguns meios de comunicação e plataformas de comunicação, das ações dos Estados Unidos e de outros países estrangeiros hostis”, afirmava a ordem. Um objetivo fundamental, dizia, era “posicionar o Estado russo na cena internacional como guardião e defensor dos tradicionais valores espirituais e morais universais”.

As descrições de Putin do Ocidente como “satânico” e da guerra como “sagrada” são cada vez mais repetidas pelas autoridades e pela Igreja Ortodoxa Russa.

Enquanto ele rompe os laços globais e prepara seu país para uma guerra eterna com o Ocidente, a polícia de choque na Rússia está invadindo discotecas e festas privadas, espancando convidados e processando proprietários de bares voltados ao público gay. Russos foram presos ou multados por usarem brincos de arco-íris ou exibirem bandeiras de arco-íris. Os dissidentes que foram presos na época soviética estão novamente atrás das grades - desta vez por denunciarem a guerra.

O Kremlin defendeu a repressão como uma resposta à exigência popular.

Para este artigo, a reportagem enviou perguntas ao porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, que respondeu a algumas delas, mas não todas. A reportagem também solicitou uma entrevista com Putin, pedido que foi negado.

“Se isso não for aceito pela sociedade, então a polícia terá de tomar medidas para equilibrar a situação com as exigências da sociedade”, escreveu Peskov na sua resposta. “A sociedade é agora menos tolerante com essas festas e discotecas.”

O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, participa de uma recepção para chefes de Estado, em Moscou, Rússia  Foto: Alexey Maishev/AP

Há muito obcecado com o declínio populacional da Rússia, Putin está exortando as mulheres russas a terem oito ou mais bebês, ao mesmo tempo que captura à força parte da população da Ucrânia. A Rússia emitiu mais de 3 milhões de passaportes no leste da Ucrânia desde 2019, segundo o ministério do interior russo.

Na Ucrânia ocupada, é virtualmente impossível trabalhar, conduzir ou obter cuidados de saúde, ajuda humanitária, benefícios ou outros serviços sem ter um passaporte russo – uma potencial violação das Convenções de Genebra, que afirmam que “é proibido obrigar os habitantes de um território ocupado a jurar lealdade à potência hostil”.

Na Crimeia, a Rússia emitiu mais de 1,5 milhão de passaportes depois de invadir e anexar ilegalmente a península em 2014.

Em termos de ambição e escala, o esforço de Putin para moldar uma nova identidade nacional é “tão profundo como a Revolução Russa de Outubro”, disse um membro da elite de Moscou com contatos no Kremlin, referindo-se a 1917, quando os bolcheviques de Vladimir Lenin tomaram o poder. “Ele atropela todos os valores”, disse essa fonte. “Ele corta todos os laços habituais.”

Tal como muitas pessoas neste artigo, esta fonte falou sob condição de anonimato por medo de represálias por parte do governo russo, que prendeu e até matou seus críticos. Alguns dos entrevistados para este artigo receberam advertências abertas, incluindo congelamento de suas contas bancárias e de seus bens, e dois foram presos.

“Eles estão tentando criar uma nova forma de ideologia para as massas”, disse Mikhail Zygar, um jornalista e escritor russo que vive atualmente em Nova York. “Não é uma guerra com a Ucrânia. É uma guerra com os EUA, uma guerra com o Ocidente ou com Satanás, com todas essas forças de decadência moral.” O putinismo traz marcas do fascismo, disse Zygar. “Ele está usando a guerra e o ódio como instrumento para fazer lavagem cerebral no povo russo”, disse ele. “É como tudo que sabemos a respeito do fascismo.”

Acusações e um mandado de prisão por divulgação de “notícias falsas” foram apresentados contra Zygar depois que a reportagem o entrevistou.

Soldado russo tira uma foto ao lado de uma foto do ex-líder soviético Josef Stalin Foto: Nanna Heitmann/The Washington Post

Origens do putinismo

A busca de Putin não é nova, mas o confronto da Rússia com o Ocidente envolvendo a Ucrânia permitiu a ele acelerar seu plano. O líder russo, que herdou o cargo em 31 de dezembro de 1999, começou imediatamente a atrofiar as instituições democráticas e aprovou uma batida na NTV, a principal estação de televisão independente, poucas semanas depois de vencer sua primeira eleição em março de 2000.

Durante suas primeiras duas décadas de governo, Putin surfou na crista dos preços do petróleo e do gás, mas nunca teve uma ideologia mobilizadora para convencer os cidadãos de que seu caminho era melhor do que as liberdades democráticas e a maior prosperidade econômica do Ocidente. Sua reengenharia da Rússia foi concebida para fornecer essa filosofia unificadora. Seu símbolo - a letra Z pintada de improviso nos tanques invasores em 2022 — agora adorna prédios públicos e cartazes.

Invadir a Ucrânia foi o passo mais destrutivo no plano de Putin, mais longo e grandioso, para restaurar a grandeza da Rússia como a superpotência que foi durante o período soviético, e como império durante 200 anos antes disso. Mas a sua transformação da Rússia começou muito antes da invasão da Ucrânia, usando a homofobia e os chamados valores tradicionais para perturbar as sociedades ocidentais e cortejar apoio no Sul Global. Ele também projetou seu poder militar ao invadir a Geórgia em 2008 e ao enviar tropas russas para a Síria e África.

O então líder da oposição Alexei Navalni participa de um debate em Moscou, Rússia  Foto: Alexander Zemlianichenko/AP

Na Rússia, a morte do rival mais forte de Putin, Alexei Navalny, em fevereiro, foi um sinal claro neste novo caminho. Putin ignorou a morte de Navalny, não demonstrando compaixão, muito menos remorso. “Acontece”, disse ele, endossando a conclusão oficial de que Navalny morreu de causas naturais. A viúva de Navalny, Yulia Navalnaya, acusou Putin de tê-lo matado.

Putin “decide tudo”, disse a fonte da elite russa, e embora o seu novo mandato vá até 2030, espera-se que ele permaneça no poder pelo tempo que desejar.

Em um discurso sobre o estado do país, em fevereiro, Putin descreveu seu esforço para que as mulheres tenham mais filhos e criem uma nova elite de trabalhadores e soldados.

“Podemos ver o que está acontecendo em alguns países onde os padrões morais e a família estão sendo deliberadamente destruídos e países inteiros são empurrados para a extinção e a decadência”, disse ele. “Nós escolhemos a vida. A Rússia foi e continua a ser um reduto dos valores tradicionais sobre os quais se baseia a civilização humana.”

Proclamando uma nova “época de heróis”, Putin disse que a velha elite oligárquica estava “desacreditada”.

“Aqueles que nada fizeram pela sociedade e se consideram uma casta dotada de direitos e privilégios especiais – especialmente aqueles que aproveitaram todos os tipos de processos econômicos na década de 1990 para encher os bolsos – definitivamente não são a elite”, disse ele. “Aqueles que servem a Rússia, trabalhadores esforçados e militares, pessoas confiáveis e dignas de confiança que provaram a sua lealdade”, acrescentou, “são a verdadeira elite”.

Uma mulher se ajoelha ao lado do túmulo do opositor russo Alexei Navalni, que morreu em uma prisão no Ártico  Foto: Nanna Heitmann/The Washington Post

Peskov, o porta-voz do Kremlin, em respostas escritas às perguntas da reportagem, disse que o objetivo era “encorajar nosso povo a dar à luz o máximo possível de crianças”, para aumentar a população da Rússia.

“E neste contexto, a difusão dos valores tradicionais é extremamente importante para nós, e neste contexto não temos nada em comum com este progressismo extremista, em termos do abandono dos valores humanos e religiosos tradicionais, que estamos testemunhando neste momento nos países europeus. Isso não corresponde ao nosso entendimento do que é certo”, acrescentou.

Peskov disse que o Kremlin “continuaria a fazer propaganda disso, no bom sentido da palavra”, acrescentando: “Especialmente agora, quando temos uma consolidação extrema da nossa sociedade em torno desta ideia de valores tradicionais e em torno do presidente, facilitando este processo.”

Rússia remasterizada

Em uma reunião em janeiro, Putin fez pose com um grupo de famílias vestidas com trajes nacionais vistosos. Foi a mais recente iteração de sua imagem, há muito moldada por atividades encenadas, como andar a cavalo sem camisa. Agora, exaltando os valores tradicionais, ele é o patriarca avô, relembrando retratos de Stalin com pessoas de toda a União Soviética.

“Nas famílias russas, muitas de nossas avós e bisavós tiveram sete ou oito filhos e até mais. Vamos preservar e reviver estas tradições maravilhosas”, disse Putin em um discurso em novembro dedicado a “uma Rússia eterna e milenar”.

A ênfase está em um Estado especial e poderoso dominado por Putin, na centenária autossuficiência e estoicismo russos e no sacrifício dos direitos individuais em nome do regime. Os homens dão a vida na guerra ou no trabalho. As mulheres deveriam doar seus corpos dando à luz filhos.

A visão de mundo de Putin se baseia nos vikings do século IX, nos antigos príncipes e nos tsares expansionistas, mas o seu centro de gravidade é a Segunda Guerra Mundial, ou a Grande Guerra Patriótica, na qual a Rússia ajudou a derrotar a Alemanha nazista. O orgulho russo por essa vitória, fundamental para a sua identidade nacional, está entrelaçado na mitologia de Putin a respeito da União Soviética.

Crianças russas brincam com armas em uma exposição militar em Moscou, Rússia Foto: Nanna Heitmann/The Washington Post

Stalin, que supervisionou a morte de milhões de pessoas nas fomes, nos expurgos e no gulag, foi promovido como um líder forte em tempo de guerra, com 63% dos russos expressando uma visão positiva dele em uma pesquisa de 2023 realizado pela agência Levada Center, e 47% expressando respeito por ele.

A admiração de Putin por Stalin remonta a décadas. Em 2002, quando o presidente polonês, Aleksander Kwasniewski, se encontrou com o líder russo durante quase cinco horas, pessoalmente, Putin professou uma forte admiração por três líderes - Pedro, o Grande; Catarina, a Grande; e Stalin - e um desejo de reconstruir a “Grande Rússia”.

“A impressão que tive foi a de estar diante de um homem formado pela KGB: a educação da KGB, os livros escolares da KGB e os livros de história, absolutamente falsificados”, disse Kwasniewski a Zygar, o jornalista russo, em 2022, “mas muito favorável a esse entendimento da Grande Rússia e do orgulho russo”.

Há muito que Putin está obcecado com a ideia de uma batalha entre civilizações contra o Ocidente, distorcendo a história para afirmar que a Rússia está apenas retomando as suas “terras históricas” na Ucrânia.

O primeiro-ministro Mikhail Kasyanov, o primeiro de Putin, disse que ele e outros reformadores da década de 1990 presumiam que, tal como eles, Putin tinha abraçado a democracia e as reformas de mercado. “Mas ele não o fez”, disse Kasyanov. “Apenas fingiu.” Kasyanov disse que ficou horrorizado com a abordagem de Putin para duas crises de reféns, em 2002 e 2004, ordenando o uso de forças de invasão e causando centenas de mortes.

O presidente russo, Vladimir Putin, à esquerda, gesticula enquanto conversa com o primeiro-ministro Mikhail Kasyanov durante uma reunião no Kremlin, em Moscou, em novembro de 2002 Foto: AFP/AFP

“Isso já foi uma demonstração da sua verdadeira natureza, da sua natureza da KGB: sem negociações, sem concessões, porque eles não podem chegar a um acordo por acreditarem que serão vistos como pessoas fracas”, disse ele. Em 2004, Kasyanov estava na oposição. “Eu entendi que ele é a pessoa mais errada de todas”, disse ele.

A primeira tentativa de Putin de dominar a Ucrânia, em 2004, visitando Kiev para apoiar o candidato presidencial pró-Kremlin, Viktor Yanukovych, saiu pela culatra e preparou o cenário para a Revolução Laranja e uma revanche eleitoral, que o candidato de Putin perdeu. Putin viu isso como um “golpe”, e o apoio ocidental ao vencedor, Viktor Yushchenko, como uma interferência. Foi o início da fixação de Putin no “problema ucraniano” e da sua crença de que um vizinho independente e democrático seria uma ameaça inaceitável ao seu próprio regime.

Abbas Gallyamov, redator de discursos de Putin de 2008 a 2010 e consultor político do Kremlin até 2018, disse que Putin invadiu a Crimeia em 2014 e conduziu um ataque militar em grande escala à Ucrânia em 2022, em parte para reverter o declínio em seu índice de aprovação. Depois de expressar críticas francas às decisões de Putin, disse Gallyamov, os administradores do Kremlin ameaçaram demiti-lo. “Depois disso recebi ameaças”, disse ele. “Você vai morrer de fome. Não receberá trabalho.”

Ele se mudou para Israel com sua família. No ano passado, foi colocado na lista de procurados da Rússia, de acordo com um banco de dados do ministério do interior, e o ministério da justiça russo o declarou um “agente estrangeiro”. Um mandado de prisão foi emitido em 4 de março.

Na Rússia, os professores são habituados a doutrinar as crianças e até a policiar as opiniões dos pais.

Os gastos com educação patriótica e organizações militarizadas estatais para crianças e adolescentes aumentaram para mais de US$ 500 milhões em 2024, em comparação a cerca de US$ 34 milhões em 2021, de acordo com estatísticas do orçamento federal divulgadas pelo RBC, um diário empresarial russo.

A partir de setembro, todas as crianças em idade escolar receberão treinamento militar com soldados que lutaram na Ucrânia; desde o ano passado, os estudantes universitários frequentam um curso obrigatório de patriotismo que transmite uma história distorcida e a ideia de que a Rússia não tem fronteiras quando se trata de “compatriotas” de língua russa.

Maria Lvova-Belova, comissária russa para os direitos da criança, fala à mídia na frente de crianças ucranianas antes de sua repatriação da Rússia para a Ucrânia por conta de um acordo intermediado pelo Catar, na Embaixada do Catar em Moscou Foto: Alexander Nemenov/AFP

Estudantes de todas as idades são inundados com atividades pró-guerra, incluindo palestras de veteranos de guerra vestidos com farda camuflada e toucas ninja pretas. Em Novosibirsk, as crianças fabricaram drones para a frente e em Mamadysh, na Tartária, produziram peças para a cauda de drones. Outros fizeram muletas para soldados feridos ou meias de tricô para cotos de militares que sofreram amputação.

Teorias da conspiração supersticiosas estão se consolidando, com a ciência recuando. Mais de uma dezena de cientistas russos foram acusados de traição, milhares fugiram do país e a publicação de artigos científicos russos despencou mais de 14% em 2022, em meio ao isolamento da Rússia após a invasão da Ucrânia, de acordo com o Scopus, um importante banco de dados independente de artigos de pesquisa revisados por pares.

Putin unge heróis cujos feitos mais chocam o Ocidente. Ele homenageou as tropas que a Ucrânia acusou de cometer atrocidades em Bucha em 2022; promoveu um funcionário do alto escalão das prisões russas dias após a morte de Navalny; e prestou homenagem à sua comissária para os direitos da criança, Maria Lvova-Belova, que, juntamente com Putin, foi acusada pelo Tribunal Penal Internacional de crimes de guerra pela “transferência ilegal” e “deportação ilegal” de crianças ucranianas. O Kremlin rejeita as acusações.

A elite russa, entretanto, endureceu contra o Ocidente, de acordo com um bilionário que vive fora da Rússia.

“Todo mundo é muito antiocidental; é o que ouvimos o tempo todo”, disse o bilionário. “Anti-Ocidente, anti-Ocidente, anti-Ocidente. E isso vai aumentar à medida que esta guerra durar – e poderá durar 10 anos ou mais.”

O presidente da Rùssia, Vladimir Putin, conversa com o presidente da China, Xi Jinping, em Pequim, China  Foto: Sergey Savostyanov/AP

Enquanto Putin critica a decadência liberal e a permissividade com o objetivo de reunir o país a seu favor, os patriotas russos ficam exultantes com a sua promessa de formar uma nova elite. Yekaterina Kolotovkina, esposa do tenente-general Andrei Kolotovkin, comandante do 2º exército de armas combinadas de guardas, de Samara, desenvolveu um projeto chamado “Esposas de Heróis”, que agora percorre o país com retratos patrióticos de esposas de soldados envoltas nos uniformes dos maridos.

Na Casa dos Oficiais de Samara, ela dirige um grupo de mulheres aposentadas que cortam e dobram bandagens para a guerra. O depósito está abarrotado de mercadorias a serem enviadas para a frente: desenhos infantis, velas e pacotes reconfortantes de biscoitos secos, doces e amuletos caseiros de boa sorte.

“As pessoas que regressam da operação militar especial devem ser criadas como esta nova elite”, disse Yekaterina em uma entrevista. “São pessoas que provaram o seu amor pela Rússia. São verdadeiros patriotas. Eles precisam receber empregos decentes nas instituições estatais.”

Ela culpa o Ocidente por enviar a sua “sujeira” para a Rússia e por promover a comunidade LGBTQ+.

“A nova Rússia tem tudo a ver com valores familiares, mamãe e papai”, disse ela. “Nossos filhos devem ser saudáveis e patrióticos. Será uma sociedade forte e patriótica. Nos livraremos de todos aqueles que começaram a destruir nosso país. Acredito que a nova Rússia não terá lugar para essas pessoas.”

‘Escória e traidores’

Juntamente com a promoção de novos heróis, o esforço de Putin para refazer a Rússia é marcado pela perseguição a milhares daqueles que ele chama de “escória e traidores” – inimigos do Estado. Mais de 116 mil russos foram julgados por artigos criminais ou administrativos repressivos durante o mandato mais recente de Putin, o maior número desde os tempos stalinistas, de acordo com um estudo realizado pela Proekt, um meio de comunicação investigativo russo.

Entre eles está Boris Kagarlitsky, um sociólogo de esquerda que foi preso em 1982 como dissidente soviético, com pouco mais de 20 anos.

Agora com 65 anos, Kagarlitsky foi novamente preso em julho pelo serviço federal de segurança por promover “terrorismo”. Foi algemado e forçado a entrar num SUV por guardas armados usando toucas ninja pretas, e depois conduzido durante 17 horas até Syktyvkar, no norte da Rússia, onde foi julgado.

“Kafka”, ele disse simplesmente. “Todos entenderam o absurdo.” Ele foi multado e libertado em dezembro, e novamente preso em fevereiro, depois que o promotor entrou com um recurso. Seus dias de administrador de um canal no YouTube em um estúdio em um porão escuro de Moscou terminaram. Em uma entrevista durante o almoço, antes de ser mandado de volta para a prisão, a reportagem perguntou por que ele não deixou a Rússia. Ele encolheu os ombros e sorriu. A prisão, disse ele, era “um risco profissional”.

Uma audiência sobre o processo judicial do sociólogo Boris Kagarlitsky, acusado de promover “terrorismo”, em Moscou, em Novembro. Foto: Evgeniy Razumniy/AP

Kagarlitsky disse que o esforço de Putin para reestruturar a Rússia é um desesperado jogar dos dados, desligado da realidade e fadado ao fracasso. “Não está apenas em descompasso com os russos comuns. Está em descompasso com a própria elite”, disse ele, antes de ir alimentar seu gato.

O regime também está se esforçando para desacreditar os críticos de Putin fora da Rússia, incluindo um adorado romancista policial, Grigory Chkhartishvili, residente em Londres, mais conhecido pelo seu pseudônimo, Boris Akunin, que foi acusado de “divulgar informações falsas a respeito dos militares russos” e de “justificar o terrorismo” por se opor à guerra na Ucrânia.

As lojas russas proibiram seus livros, seus royalties foram confiscados e ele recebeu um mandado de prisão in absentia. De acordo com Chkhartishvili, Putin está implementando uma “sharia ortodoxa” usando clichês xenófobos, preconceituosos, paranóicos, misóginos “e inevitavelmente antissemitas” para mobilizar os russos. “Moscou deve se tornar uma meca de idiotas”, disse ele. “Esse é o plano.”

Muitos dos entrevistados para este artigo fugiram da Rússia ou foram posteriormente presos, incluindo um excêntrico YouTuber, Askhabali Alibekov, que se autodenomina o “Pára-quedista Selvagem”. Alibekov, de Novorossiysk, no sul da Rússia, foi preso três vezes por criticar Putin e a guerra. Ele estava fugindo quando falou à reportagem em dezembro.

Ele cresceu em um orfanato, ganhando o apelido de “Lobinho”, lutando contra valentões, sempre ansioso para dar o último soco. Mas, lutando contra Putin, ele disse que sentia “total impotência e desamparo”.

“O país está se transformando em um estado absolutamente totalitário. Há total ilegalidade”, disse Alibekov. “Não há democracia. Existem pessoas ricas e escravos, só isso.” Em 20 de fevereiro, a polícia o arrastou para fora de um trem e ele foi detido, aguardando julgamento por suposta agressão aos policiais.

O ministério do interior da Rússia não respondeu a perguntas a respeito das acusações contra Gallyamov ou os casos contra Zygar, Akunin e Alibekov.

O choque causado pela caça aos inimigos da Rússia é suficiente para reprimir a maior parte da dissidência. Em janeiro, Yevgenia Maiboroda, 72 anos, uma aposentada solitária e profundamente religiosa, foi acusada de extremismo e condenada a 5 anos e meio de prisão por duas publicações contra a guerra nas redes sociais. E, em fevereiro, uma mulher de Nizhny Novgorod, Anastasia Yershova, foi presa durante cinco dias por exibir “símbolos extremistas” – brincos com um sapo e um arco-íris – que um tribunal considerou serem pró-LGBTQ+.

Algo de distópico

Em um vagão partilhado em um trem noturno de longa distância, uma mãe de uma cidade do sul da Rússia confidenciou suas preocupações a respeito dos seus filhos e do seu futuro.

A família dela adora passar férias na Itália, Espanha, Egito e Turquia. Ela exibiu fotos e vídeos de férias na praia e de uma festa de Ano Novo em Sharm el-Sheikh, no Egito, lotada de russos, todos os quais, segundo ela, desejavam que a guerra acabasse.

Sua filha, de 15 anos, sente-se atraída pela Europa e quer ser jornalista. Seu filho, de 10 anos, adora jogar. Ambos são viciados em seus iPhones e iPads. Assim como seus amigos, eles usam redes privadas virtuais (VPNs) para visualizar sites proibidos, como o Instagram.

As autoridades russas estão desenvolvendo tecnologia para reduzir a dissidência. As autoridades sinalizaram a proibição de VPNs, e os analistas consideram a proibição do YouTube inevitável.

Um tanque russo desfila em uma parada militar em Moscou, Rússia, para a celebração do Dia da Vitória  Foto: Nanna Heitmann/NYT

Há algo de distópico na nova Rússia. Ativistas pela paz, tanto jovens quanto velhos, estão atrás das grades, enquanto assassinos, estupradores e outros criminosos violentos condenados foram libertados – perdoados por Putin para lutar na Ucrânia. Alguns estão voltando da guerra e cometendo crimes horríveis.

Muitos progressistas, incluindo Kagarlitsky e Gallyamov, duvidam que Putin e os seus linhas-duras possam ter sucesso. “As sociedades nunca são desmodernizadas”, disse Kagarlitsky.

Gallyamov disse que muitos russos estão “realmente com medo” e acabarão por repudiar o governo de Putin, tal como a Alemanha rejeitou os nazistas.

“A população russa em geral está cansada do seu militarismo, da guerra, dessa histeria patriótica e antiocidental”, disse Gallyamov. “Eles querem drasticamente apenas a normalização.”

Talvez o cansaço seja murmurado baixo demais para que o Kremlin possa ouvir. No trem noturno, a mulher teve o cuidado de evitar falar de política, assunto que ela teme. E ainda assim seu desespero era visível.

“Eu só queria que esses tempos difíceis acabassem”, disse ela, em voz baixa e com amargura./TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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