Solomon Perel, um judeu alemão que enganou os nazistas disfarçando-se de jovem hitlerista na 2.ª Guerra, uma história extraordinária de sobrevivência dramatizada pelo filme “Filhos da guerra”, de 1990, morreu em 2 de fevereiro, em sua casa, em Givatayim, próximo a Tel-Aviv. Ele tinha 97 anos.
Sua morte foi anunciada pelo museu Yad Vashem, o memorial do Holocausto em Jerusalém. Complicações decorrentes de uma pneumonia foram apontadas como a causa, afirmou o sobrinho-neto Amit Brakin.
Por décadas, Perel viveu uma vida pacata em Israel, que adotou como residência, fabricando zíperes para viver e criando sua família. Somente em sua aposentadoria, depois de uma cirurgia de ponte de safena forçá-lo a passar horas sentado no parque refletindo sobre a vida, ele começou a contar sua história publicamente — que chama a atenção e se sobressai mesmo entra as profundezas infinitas das sagas a respeito do Holocausto.
Perel relatou os acontecimentos de sua vida primeiro em um livro de memórias publicado inicialmente em francês, em 1990, que foi traduzido para o inglês sete anos depois. A obra serviu de base para o aclamado filme de drama “Filhos da guerra”, da diretora Agnieszka Holland.
O filme diverge ocasionalmente da experiência de Perel, mas mesmo assim representou de maneira acurada, afirmava ele, sua jornada e seus dilemas ao vestir o uniforme da Juventude Hitlerista.
Usando uma suástica no peito, o jovem anteriormente conhecido como Shlomo, ou Solly, adotou o nome germânico Josef, assumido a identidade de um jovem nazista em uma tentativa desesperada de sobreviver.
“Até hoje tenho um entrecruzamento de duas almas em um só corpo”, disse Perel ao The Washington Post, em 1992. “Com isso quero dizer que o caminho até Josef, o jovem hitlerista que eu fingi ser por quatro anos, foi curto e muito fácil. Mas o retorno para o judeu em mim, Shlomo, ou Solly, foi muito mais difícil. E ainda não acabou.”
Mais sobre o Holocausto
“Eu o amo”, afirmou Perel sobre o jovem nazista que ele foi por fora, “porque ele salvou minha vida”.
Shlomo Perel nasceu em Peine, uma cidade alemã próxima a Hanover, em 21 de abril de 1925. O pai dele tinha uma loja de sapatos, e a mãe era dona de casa. Eles criaram Perel, seus dois irmãos mais velhos e sua irmã mais velha em um ambiente de estrita observação aos princípios judaicos, falando ídiche dentro de casa mesmo enquanto os filhos falavam alemão para se integrar.
Perel recordava-se de uma infância feliz até Hitler, após se tornar chanceler da Alemanha, em 1933, começar a introduzir leis antissemitas e fomentar violências que colocariam fim à vida judaica. Perel, o único judeu em sua classe, acabou expulso da escola — foi a experiência mais dolorosa de sua vida infantil, recordava-se ele. Os alemães foram impedidos de comprar na loja de sapatos de seu pai, e a sinagoga que a família frequentava foi atacada.
Os pais de Perel vinham do Leste Europeu e em 1936 decidiram se mudar com a família para a cidade polonesa de Lodz. Hitler invadiu a Polônia três anos depois, marcando o início da 2.ª Guerra.
Perel e sua família foram obrigados a se instalar no gueto de Lodz, onde milhares de judeus foram confinados em condições deploráveis. Seus pais mandaram ele e um irmão mais velho para o leste da Polônia, então sob controle soviético, na esperança de que por lá eles pudessem ter uma chance melhor de sobreviver.
“Recordo-me das últimas palavras dos meus pais”, afirmou Perel anos depois em entrevista à revista indiana The Week. “Meu pai me disse para eu nunca esquecer que sou judeu. Deus me protegeria, ele acreditava sinceramente. Minha mãe disse simplesmente ‘Vá, você tem que sobreviver’.”
Perel foi separado de seu irmão e levado para um orfanato administrado pelos soviéticos na cidade de Grodno, hoje em Belarus, onde lhe foi inculcada a filosofia socialista. Ele tinha 16 anos quando Hitler invadiu a União Soviética, sua ex-aliada. Na manhã da invasão, recordava-se ele, todas as crianças do orfanato foram despertadas às pressas, e lhes disseram que corressem para se salvar. Ele chegou à cidade de Minsk, onde foi preso.
“Os alemães nos cercaram em um campo aberto e ordenaram que entrássemos em linha. E logo chegou minha vez”, relatou Perel ao jornal israelense Yedioth Ahronoth. “O soldado alemão parou na minha frente, ordenou que eu levantasse as mãos e perguntou: ‘Você é judeu?’.”
“Eu sabia que se dissesse a verdade eu estaria diante da possibilidade de morrer imediatamente”, continuou ele. “Eu tive de escolher entre o meu pai, que me disse para ‘sempre permanecer judeu’ e minha mãe, que me disse ‘você tem que sobreviver’. Afortunadamente, a voz da Mamãe prevaleceu, e eu disse: ‘Não, eu sou alemão’.”
Em um episódio que Perel descrevia como um “milagre”, o oficial alemão acreditou nele e o incorporou à sua unidade. Perel tornou-se intérprete — e em certo momento chegou a traduzir para um dos filhos de Stálin, Yakov Dzhugashvili, que havia sido aprisionado pelos alemães.
Impressionados com suas habilidades, os superiores de Perel o mandaram de volta para a Alemanha para que ele se juntasse à Juventude Hitlerista. Entre outros jovens do grupo, que Perel descrevia como seus amigos, ele era conhecido como Josef, ou Jupp.
“Filhos da guerra” retratou uma de suas dificuldades constantes: cada chuveirada ou exame médico, situações capazes de revelar que Perel era circuncidado, representavam ameaças à sua sobrevivência. Ele foi descoberto quando um médico do Exército tentou estuprá-lo no chuveiro.
No fim, o médico não caguetou Perel, dizendo-lhe: “Saiba que também existe um tipo diferente de alemães”. “Ele não me dedurou para não se revelar como homossexual”, disse Perel ao Yedioth Ahronoth. “Eu sabia o segredo dele, e ele sabia o meu. E depois daquele incidente ele cuidou de mim até ser assassinado.”
Perel permaneceu na Juventude Hitlerista até 1945, estabelecendo uma relação profunda com uma garota alemã que namorou — ele a descrevia como uma nazista “fanática”.
“Eu era esquizofrênico”, afirmou Perel. “Durante o dia, eu era um jovem hitlerista que queria vencer a guerra, cantava canções contra judeus e berrava ‘Heil Hitler’ — e de noite, na cama, eu chorava de saudades da minha família.”
Para Lembrar
Perel acabou mandado para o front, mas os alemães se renderam pouco depois. Ele foi feito prisioneiro pelos americanos e ficou preso por um breve período.
“Foi outra ironia”, afirmou ele. “Um garoto judeu vestido em um uniforme nazista prisioneiro dos americanos. Eu poderia ter-lhes dito a verdade, mas estava de dia, e eu estava pensando como meu eu nazista. Os americanos libertaram todos nós dois dias depois, por considerarem que éramos menores de idade. Mas eu tive que assinar um documento declarando que não pegaria em armas contra os americanos. Como se eu fosse…”
Os pais e a irmã de Perel morreram na guerra, juntamente com 6 milhões de judeus. Em 1948, depois de servir como tradutor no Exército soviético, Perel migrou para o território que na época conformava o Mandato Britânico da Palestina e lutou na Guerra da Independência de Israel, antes de se casar e iniciar sua própria família.
O filme “Filhos da guerra”, no qual Perel é retratado por Marco Hofschneider, foi objeto de bastante controvérsia quando foi lançado, apesar das boas críticas. A crítica Janet Maslin observou no The New York Times que a obra “alcança o que todo filme sobre o Holocausto busca alcançar: traz uma nova proximidade com o ultraje localizando detalhes específicos e dolorosos que transcendem o clichê”.
Perel, de sua parte, abarcou a complexidade de sua história. “Jupp salvou Shlomo atuando tão bem que se tornou parte orgânica do mundo nazista”, disse ele ao Post. “Ele berrava ‘Heil Hitler’ com obstinação, não era fingimento. Hoje os personagens se inverteram. Hoje Shlomo é o dominante. E Jupp está colocado de lado, mas ainda existe.”
Perel e sua mulher, cujo nome de solteira era Dvora Morezky, se casaram em 1959. Ela morreu em 2021. Um filho do casal, Ronen “Noni” Perel, morreu em 2019. Seus descendentes incluem outro filho, Uziel Perel de Givatayim, e três netos.
Perel disse ao Jerusalem Post que ficou “virtualmente paralisado” pela pergunta sobre “eu ter ou não direito a me comparar com os sobreviventes do Holocausto e colocar minhas memórias no mesmo nível das deles”.
“A resposta à qual cheguei”, afirmou Perel, “foi que eu sobrevivi por uma razão, que é contar a minha história”.
Perel voltou para a Alemanha para conversar com seus envelhecidos ex-colegas de Juventude Hitlerista — que ele afirmou ainda considerar amigos — e com neonazistas.
“Eles me aceitaram como camarada”, afirmou Perel. “Quando eu lhes digo a verdade sobre o racismo, a ideologia nazista e os campos de concentração, eles ouvem com mais atenção”, disse ele. “Tenho recebido algumas cartas de indivíduos afirmando que, depois de me ouvir falar, passaram a questionar a linha nazista de pensamento. Quero alcançar as profundezas de suas jovens almas para ajudá-los a pensar de forma independente e perceber com claridade o que é bom e o que é ruim.”/ TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO