Sugestão de Lula é perigosa, e boas-vindas a Putin trairiam a democracia, dizem ativistas russos


Em entrevista exclusiva ao ‘Estadão’, opositores do autocrata falam da busca por crianças deportadas da Ucrânia, criticam proposta de negociação patrocinada por Brasil e China e dizem que ideia de referendo popular, levantada pelo petista, soa ilegal e legitima a tomada de território

Por Felipe Frazão
Atualização:
Foto: WILTON JUNIOR/Estadão
Entrevista comGrigori Vaipan (Memorial), Tamilla Imanova (Memorial) e Daria Guskova (Mediazona)Ativistas opositores do presidente russo Vladimir Putin

Esta entrevista foi dividida em duas partes para facilitar a leitura. Leia aqui a segunda parte.

BRASÍLIA - Os advogados Grigori Vaipan, de 34 anos, e Tamilla Imanova, de 28 anos, e a jornalista Daria Guskova, de 29 anos, têm mais em comum hoje do que no passado. Com trajetórias e origens diversas dentro da vastidão territorial russa, os três foram forçados a abandonar o país e vivem no exílio há dois anos. São opositores declarados de Vladimir Putin, dispostos a expor a própria cara no mundo em campanha contra o autocrata. Atitude que já custou a vida de muitos.

Desde a invasão da Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, o trio abandonou a Rússia por causa do que descrevem como o recrudescimento “brutal” de um regime de repressão, ordenado pelo Kremlin, contra opositores, defensores de direitos humanos e a liberdade de expressão e de imprensa.

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“Putin significa guerra. Ele reconstruiu o país, reconstruiu a economia russa, para que ele possa travar esta guerra pelo tempo que for possível”, diz Vaipan.

Vaipan e Tamilla fazem parte da equipe de advogados do Memorial Human Rights Defence Centre, uma entidade russa que surgiu de um movimento clandestino em 1987, e se dedica a acompanhar crimes na Rússia contemporânea, desde 1993. No ano passado, a organização teria completado 30 anos, se não não tivesse sido fechada à força, em 2022.

Daria, por sua vez, lidera a equipe de notícias do site Mediazona, plataforma jornalística independente criada em 2014 por membros do grupo feminista Pussy Riot. Eles reúnem dados checados como a lista de pessoas “procuradas” pelas forças de segurança de Moscou, a quantidade de baixas nas Forças Armadas russas e estatísticas dos primeiros 1.000 dias da guerra na Ucrânia.

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O moscovita Vaipan exilou-se em Montenegro no fim de 2022. Meses antes, em abril, Tamilla, que nasceu em Nijni Novgorod, uma das maiores cidades russas e sede de jogos da Copa de 2018, havia partido para Varsóvia, na Polônia. A primeira a sair, em março, foi a editora Daria, nascida na cidade de Tula, ao Sul da capital Moscou. Hoje ela vive na Lituânia.

No fim de novembro, eles estiveram em Brasília para expor a situação interna da Rússia em guerra de Putin. Conversaram por duas horas, com exclusividade, com o Estadão. Na primeira parte da entrevista, dividida em dois capítulos, falam sobre as propostas do governo Luiz Inácio Lula da Silva e os desdobramentos geopolíticos mais recentes da guerra, além da dificuldade para rastrear o paradeiro das crianças ucranianas deportadas ilegalmente para a Rússia, um dos motivos para a ordem de prisão contra Putin.

Procurada, a Presidência da República não quis se manifestar sobre as críticas. A Embaixada da Rússia em Brasília rebateu as declarações, afirmou que os comentários à invasão da Ucrânia nem sequer merecem críticas e que o trio age pago por “agências ocidentais”.

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Vladimir Putin se ausentou do G-20 no Rio, no mês passado, mas poderá vir ao País para a Cúpula do Brics em julho de 2025. O governo brasileiro já disse antes que ele é bem-vindo. Que mensagem o governo Lula envia ao mundo? Acham que ele virá?

Grigori: Convidar Putin significa, antes de tudo, traição à Ucrânia, e traição à Ucrânia é traição à liberdade, democracia e direitos humanos. Porque Vladimir Putin é um ditador, um criminoso de guerra, que iniciou a guerra de agressão mais sangrenta desde a 2ª Guerra Mundial no mundo. É simples assim. É improvável que ele venha porque é objeto de um mandado de prisão pelo Tribunal Penal Internacional, baseado em Haia, Países Baixos. E ele é muito cauteloso sobre viajar para países que são Estados integrantes do estatuto do Tribunal Penal Internacional. O Brasil é um desses países e está sob a obrigação de prender Putin se ele aparecer.

Ativistas dizem no Brasil que propostas de Lula são perigosas para o mundo, contrárias ao direito internacional e recompensam a guerra de Putin Foto: WILTON JUNIOR/Estadão
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Já houve uma discussão semelhante sobre se ele deveria ir à África do Sul, e ele não foi. Porque a África do Sul tem tribunais independentes e uma sociedade civil atuante. Houve um incidente alguns anos atrás quando o presidente sudanês, Omar al-Bashir, visitou a África do Sul e quase não escapou. Porque o tribunal nacional emitiu uma ordem de restrição para ele proibindo-o de deixar a Cúpula até que a questão de sua prisão fosse julgada. Então ele teve que ser secretamente escoltado para fora de uma base militar pelo executivo sul-africano, desafiando uma ordem judicial.

Entendemos que a sociedade civil brasileira também é bastante ativa aqui e disposta a pressionar as autoridades para exigir que Putin seja preso. É improvável que isso vá acontecer, mas também é improvável que ele venha aqui.

Putin é acusado de crime de guerra e deportação ilegal de crianças ucranianas. Vocês têm contato com as famílias? O aconteceu com elas, quantas são e onde estão as crianças?

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Tamilla: Esta é a pergunta mais difícil. Primeiro, os territórios ocupados são os mais difíceis de trabalhar. Os ucranianos não podem entrar a menos que sejam residentes do território ocupado. Se você é ucraniano da parte ocidental do país, você não passará pelo posto de bloqueio para os territórios ocupados. Os russos, se forem defensores dos direitos humanos, “agentes estrangeiros”, esse tipo de pessoa, também não serão admitidos. Ainda há chances de se chegar a esses territórios ocupados violando a lei nacional ucraniana - cruzar a fronteira ilegalmente, o que também é problemático. Ainda há pessoas trabalhando nos territórios ocupados, mas elas encontram tantos obstáculos que este é um dos territórios mais difíceis em toda a Europa para trabalhar e lidar com questões de direitos humanos.

É muito difícil rastrear a origem das crianças que estão sendo sequestradas pelo governo russo. Primeiro, elas podem ser de fato órfãs. Em segundo lugar, elas podem ter pais atualmente servindo nas Forças Armadas. E novamente, com eles estando no campo de batalha, você não pode ter certeza se eles ainda estão vivos ou se faleceram. Terceiro, essas crianças são sequestradas, e continuarei a usar a palavra sequestradas. O governo russo imediatamente tenta mudar sua identidade, emitindo um passaporte russo para elas, mudando seus nomes e sobrenomes, colocando-as em famílias desses novos sobrenomes. O novo sobrenome dado é o da família na qual eles são colocadas. Então isso é feito em enorme sigilo, e é claro que as crianças geralmente são de uma idade em que não conseguem se comunicar. Elas não podem procurar defensores dos direitos humanos e gritar que foram sequestradas. Em alguns desses casos, elas não têm idade para realmente lembrar sua identidade natal, seus pais, seus nomes dados, etc. Portanto, é por isso que esse crime é tão atroz. Porque são as crianças mais inocentes sob ataque e é difícil rastrear esses destinos.

Sabemos com certeza que a chamada filha desse político criminoso de guerra, Sergei Mironov, chamada Marina Mironova, não é Marina nem Mironova. Ela é uma criança ucraniana que recebeu um nome e sobrenome diferentes. Então seu destino foi rastreado, mas é a única coisa possível de fazer agora. Nós não podemos sequestrá-la de volta da família de Mironov. Ninguém pode. Ela foi colocada nessa família e eu fico perplexa em pensar o que é possível fazer. Nós poderíamos contestar essa adoção ilegal nos tribunais na Rússia, mas eles vão ficar do lado de Mironov, obviamente.

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Esse caso foi tornado público. Houve outros?

Tamilla: Sim, se você acompanhar o mandado de prisão, não apenas Putin recebeu o mandado de prisão, mas também uma comissária para os direitos das crianças, Maria Lvova Belova. Ela mesma também é mãe, chamada de mãe, de crianças ucranianas adotadas que também foram sequestradas dos territórios ocupados. Então este é outro caso que foi rastreado. Mas, neste momento, estamos em uma situação tão terrível de destruição dos direitos humanos que neste ponto só podemos rastrear, anotar, relatar internacionalmente, fazer advocacia internacionalmente, como deixar cada mídia nacional ou internacional independente saber sobre isso. Mas é isso. Não podemos sequestrar a criança de volta e trazê-la de volta para a Ucrânia.

Grigori: Na verdade, estão em andamento esforços para facilitar o retorno de crianças. O governo ucraniano estima que mais de 19.000 crianças ucranianas foram raptadas, e até agora apenas algumas centenas foram devolvidas. É a situação em que estamos.

Facilitar?

Tamilla: Negociar com a Rússia, com autoridades russas, com os “adotantes” russos, as novas famílias, sim. Eu nem sei o termo correto para este procedimento ilegal.

Já houve acordos para trocar prisioneiros. Vocês acompanharam?

Grigori: Estamos falando sobre duas categorias. Prisioneiros de guerra e civis ucranianos. A Rússia deteve pelo menos 7.000 civis ucranianos, e os manteve detidos sem base legal. Prisioneiros de guerra são uma categoria distinta, mas você também pode não ser um combatente, não ser um soldado, e ainda assim acabar em uma prisão secreta russa. Portanto, houve esforços para trocar tanto prisioneiros de guerra quanto libertar alguns civis ucranianos. Alguns casos foram bem-sucedidos, alguns não foram. Algumas pessoas morreram no cativeiro russo.

O que eles relatam sobre as prisões russas e como foram mantidos?

Tamilla: Tortura, inanição. No caso de mulheres, mas às vezes homens também, abuso sexual. Outras formas de intimidação. Por exemplo, uma mulher teve o cabelo cortado para minar sua dignidade, se posso dizer assim. Os ex-detentos ucranianos parecem muito piores do que ex-prisioneiros russos. Sempre que um prisioneiro político é libertado de uma prisão da Ucrânia, ele ainda parece, de certa forma, saudável. Ex-prisioneiros ucranianos parecem que estiveram no inferno. Eles perdem até 20 quilos por estarem famintos e terem sido torturados. Essas prisões secretas usam os métodos mais ilegais de tortura. Não apenas apanhar regularmente, mas choques elétricos.

É bem conhecido que a Rússia usa alguns dos métodos de investigação e tortura mais antigos, como amarrar uma pessoa e virar sua cabeça para baixo. Amarrando-a em algo e eletrocutando, estuprando. Nenhum acesso a ajuda médica de forma alguma. E, claro, sendo escondidos de qualquer um que possa realmente testemunhar e relatar isso.

Os prisioneiros russos ainda conseguem passar uma reclamação ao seu advogado, para alguma comissão independente que observa prisioneiros, embora essas comissões sejam cada vez menos independentes. Há um método muito famoso, frequentemente usado para chamar atenção: cortar as veias na audiência do tribunal. Soa realmente horrível, mas eu conheço vários prisioneiros políticos que chamaram atenção para eles por tentarem cometer suicídio durante a audiência aberta do tribunal. Com esses homens e mulheres ucranianos civis e alguns dos prisioneiros de guerra as audiências são secretas. Então, às vezes não há ninguém para chamar a atenção.

Como vocês conseguiram colher provas dessa situação?

Tamilla: A maioria das evidências vêm dos ucranianos que foram libertados. Quando foram libertados e enviados de volta para a Ucrânia, eles tiveram liberdade para falar. E assim que você vê a fotografia deles, você vê que eles estiveram em condições horrendas de detenção.

Exilados afirmam que Putin faz chantagem nuclear e jamais pagou por crimes de guerra antes Foto: WILTON JUNIOR/Estadão

Uma das últimas sugestões do presidente Lula foi conduzir uma consulta popular, um referendo, para encerrar a guerra e deixar o povo decidir se quer fazer parte da Rússia ou da Ucrânia. Há alguma chance de essa ideia ser aceita? Um processo de votação nos territórios ocupados pode ser conduzido de forma livre e justa?

Tamilla: Não, absolutamente não. Primeiro de tudo, o chamado referendo, e eu digo isso o mais ironicamente possível, foi conduzido no outono de 2022. Mas o que você precisa saber sobre esses territórios naquela época é que, primeiro de tudo, muitos, muitos ucranianos haviam fugido até aquele momento, seja por medo de serem perseguidos pela expressão de sua identidade ucraniana ou simplesmente pelo fato de que esses territórios estão sob ataque constante e as pessoas temem por suas vidas e saúde. Então, muitas pessoas deixaram esses territórios uma vez que são as zonas de conflito atuais onde mísseis voam todos os dias. A maior parte da população não está presente. Outra coisa, esses chamados referendos foram realizados com pessoas portando armas presentes nessas chamadas estações de votação. Então, eu não acho que você possa expressar sua opinião ou seu desejo de votar livre e justamente quando há um oficial do exército com uma arma atrás de você. De jeito nenhum. Essa é uma proposta ilegal, tanto sob a lei internacional quanto ucraniana. Até certo ponto, talvez até russa, se formos a fundo nisso.

Grigori: É obviamente claro que a proposta do presidente Lula é inconsistente com o direito internacional. O direito internacional proíbe qualquer aquisição territorial pela força. A Rússia atualmente ocupa cinco regiões da Ucrânia como resultado de sua agressão, conforme determinado pela Assembleia Geral das Nações Unidas e pelo Tribunal Internacional de Justiça. A Rússia é um Estado agressor. Capturou território. Não há maneira legal para a Rússia legitimar o controle desses territórios. Esses são territórios ucranianos sob o direito internacional e a única maneira deste conflito terminar legalmente é por esses territórios voltarem ao controle ucraniano. Não importa que forma de legitimação essa anexação possa tomar. Não importa se é um decreto de Putin ou um alegado referendo porque, se esses territórios forem entregues à Rússia, isso cria um precedente explosivo para o mundo. Encorajaria outros países a usar força militar para ocupar territórios de outros países e então usar algumas formas para legitimar esse controle e anexar esses territórios. É tão simples quanto isso. Essa proposta não está alinhada com o direito internacional e é estrategicamente perigosa para o mundo. Se o Brasil se vê como um defensor da paz e da segurança no mundo, então é errado apresentar uma proposta como esta porque propostas como esta, que tendem a legitimar a ocupação militar, tendem a minar a paz e a segurança internacionais globalmente.

Brasil e a China propuseram uma espécie de plano com seis princípios, que não exige a retirada das tropas russas. Vocês veem influência russa nessas propostas do Brasil?

Grigori: A maneira mais simples de resumir é que é a proposta de paz sem justiça. O que o Brasil e a China propuseram é acabar com essa guerra sem apreciar sua causa. E sua causa é a agressão da Rússia e a brutal ditadura da Rússia que iniciou essa guerra, que começou essa guerra, para solidificar seu controle de poder dentro do país e também para expandir sua ambição imperial para seus vizinhos. Como aprendemos pela história, paz sem justiça não é sustentável. Paz sem justiça encoraja o agressor e leva a novos crimes e a novas agressões. Se a Ucrânia não recuperar seu território e seu povo, se a Ucrânia não for compensada, se os responsáveis pelos crimes russos não forem levados à justiça, então, num espaço de poucos anos, veremos a guerra novamente, potencialmente se espalhando além da Ucrânia.

A própria Rússia nunca foi responsabilizada por nenhum de seus crimes que cometeu durante conflitos armados. A Rússia teve um conflito armado interno na Chechênia, uma província separatista nos anos 1990. Foram cometidos inúmeros crimes lá, incluindo, mais notavelmente, milhares de desaparecimentos forçados. Ninguém jamais foi responsabilizado por isso. A Rússia cometeu crimes de guerra na Geórgia em 2008, na Síria nos anos 2010 e na Ucrânia desde 2014. Nós, como advogados de direitos humanos, testemunhamos, ao longo dessas décadas, essa cadeia de impunidade. A impunidade por crimes passados encoraja novos crimes.

E particularmente na Ucrânia, falando de qualquer tipo de acordo de paz, já houve um acordo de paz em 2015, os chamados Acordos de Minsk, quando houve um cessar-fogo, e tropas apoiadas pela Rússia, naquela época, controlavam algumas áreas no leste da Ucrânia. O conflito foi congelado, apenas para ser retomado sete anos depois. Putin foi encorajado por aquele acordo de paz. Ele teve tempo para fortalecer seu exército, investir no esforço de guerra e atacar a Ucrânia em 2022, com a intenção de destruir o país inteiro. Ele claramente, como sabemos agora, tinha a intenção de destruir a Ucrânia como nação. E ele não teve sucesso, apenas porque os ucranianos se levantaram em defesa do seu país, com o apoio de outros países democráticos do mundo.

O Brasil está do lado da liberdade e da democracia ou do lado do agressor? Quer dizer, você tem que fazer essa escolha, em última análise. Apreciamos o esforço do governo brasileiro em facilitar a paz, e é importante que, mesmo durante a guerra, possam haver certos esforços humanitários, como o retorno das crianças sequestradas. Esforços humanitários são importantes, mas quando se trata de paz sustentável, você tem que fazer uma escolha. Você não pode dizer que é neutro. Não há neutralidade aqui. Ou você apoia a vítima e alguém lutando pela liberdade, ou você apoia o agressor e um criminoso.

Tamilla: Analisei minuciosamente este plano de paz conjunto. Nenhuma vez ele menciona a palavra guerra, e claro, em nenhum lugar deste plano de paz condena a guerra que a Rússia travou contra a Ucrânia. Um documento final promovendo a paz não pode fazer isso. Eles não podem simplesmente focar em desescalar o conflito, como se a Ucrânia fosse tão responsável por ter esta guerra quanto a Rússia. Isso não é um conflito de dois lados. Isso é uma invasão, e eles não podem remover as palavras de tom duro com conflito e nunca condená-lo. ‘Vamos acalmar Putin novamente’. Nós temos acalmado Putin por 30 anos, e isso nunca funciona.

Tamilla Imanova: Descobrir o paradeiro e trazer crianças ucranianas deportadas de volta é a parte mais difícil Foto: WILTON JUNIOR/Estadão

Putin agora ameaça atacar centros de tomada de decisão na Ucrânia e até a Europa com o novo míssil hipersônico Oreshnik, capaz de carregar ogivas nucleares. Como enxerga os próximos meses diante dos últimos desdobramentos?

Grigori: Putin faz chantagem nuclear desde fevereiro de 2022. Não é a primeira vez que ele ameaça o mundo com armas nucleares, e isso é um problema em si mesmo, que a Rússia é controlada por um homem sentado ao lado deste botão vermelho, que ele pode pressionar a qualquer momento. Então, ninguém no mundo está seguro enquanto Putin estiver no Kremlin, porque dentro da Rússia não há freios e contrapesos, não há salvaguardas institucionais que possam impedi-lo de fazer o que quiser.

Tamilla: E essa é a parte mais assustadora, porque não estamos mais nos tempos de Hiroshima-Nagasaki. As armas se desenvolveram. Desculpe, pela negatividade.

E há algum sinal de que Putin vá de fato deixar o Kremlin?

Grigori: Se você quer paz, você precisa derrotar Putin. Para derrotar Putin, você precisa apoiar a Ucrânia. É um cálculo muito simples nos dias de hoje. Não podemos contar com nenhuma mudança dentro da Rússia nos dias de hoje. É sobre apoiar a Ucrânia para garantir que a Ucrânia vença esta guerra e derrote Putin. E se isso acontecer, então pode haver uma oportunidade para a Rússia se reformar. E se a Rússia se reformar, então pode haver esperança para uma paz sustentável naquela região e paz sustentável no mundo, porque a Rússia é uma potência nuclear. E é essencial que seja governada democraticamente.

Donald Trump está voltando ao poder nos EUA e promete encerrar a guerra muito rapidamente. Ele foi elogiado pela Rússia. O que pode ocorrer com esse novo elemento no cenário?

Tamilla: Ainda não temos uma ideia do conteúdo exato do chamado plano de paz de Trump. Ele pretende simplesmente cortar a ajuda e deixar isso ser um problema ucraniano ou quer se tornar um negociador? Se Trump se tornar um negociador, eles vão começar a discutir esse tipo de mesmo plano por meses. Se ele simplesmente se afastar da Ucrânia, isso vai ser um desastre para a Ucrânia, porque, sejamos honestos, depende da ajuda dos Estados Unidos. Depende de qual caminho ele seguir, e, desculpe, este homem é bastante imprevisível neste momento.

Autoridades russas dizem que a guerra na Ucrânia foi motivada, entre outras razões, pela expansão da Otan e por que os direitos de povos de origem russa nos territórios ocupados estariam sob ataque do que eles chamam de “regime de Kiev”. Eles têm alguma razão ou é apenas propaganda oficial?

Grigori: É propaganda, eles não estão certos nesses argumentos. A Rússia começou a guerra na Ucrânia em 2014 quando anexou a Crimeia por iniciativa própria. Putin admitiu abertamente isso posteriormente. Ele confirmou que foi sua decisão anexar a Crimeia. Foi depois que a Crimeia foi efetivamente ocupada pelas forças armadas russas que ele decidiu realizar o referendo. Assim, a Crimeia foi anexada por decisão de Putin, não pela vontade do povo da Crimeia ou do povo ucraniano ou de qualquer outra pessoa. Depois veio a ocupação do leste da Ucrânia, regiões de Donetsk e Luhansk da Ucrânia. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, baseado em Estrasburgo, stabeleceu que a Rússia controlou as forças armadas separatistas que tomaram controle do leste da Ucrânia desde 2014. Era efetivamente uma força russa. Então, a Rússia ocupou partes do leste da Ucrânia desde 2014. A Rússia foi a causa desta guerra. Qualquer conflito armado que se seguiu foi uma tentativa do governo ucraniano de recuperar território. E mesmo esse conflito armado efetivamente chegou a uma paralisação em 2022. Sabemos pelos números oficiais da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa que houve quase nenhuma baixa no leste da Ucrânia. O conflito foi efetivamente congelado por volta de 2022.

De acordo com a ONU, em 2021, no leste da Ucrânia, houve 36 baixas entre civis, mas a maioria delas por minas terrestres e uso imprudente de munição que foi deixada no terreno. Não havia hostilidades. Apenas uma pessoa foi morta no Donbass em 2021. Uma mulher foi morta e cinco homens ficaram feridos como resultado do manuseio de um remanescente explosivo de guerra. Havia algumas munições, talvez uma mina, e eles acidentalmente se feriram e foram mortos. E foi em uma parte da região de Donetsk controlada pelo governo. Então, não era nem mesmo no território ocupado, na parte que está sob controle ucraniano. Isso realmente mostra a extensão das mentiras que Putin usou quando invadiu a Ucrânia. Uma pessoa foi morta no leste da Ucrânia em 2021. E ele disse que estava acontecendo um genocídio. Apenas para lançar uma invasão em larga escala que matou milhares de pessoas.

É uma traição completa da verdade afirmar, como a propaganda russa faz, que havia um genocídio acontecendo no leste da Ucrânia, que a Rússia tentou parar. Não havia nada acontecendo no leste da Ucrânia. Em vez disso, a Rússia acumulou, desde o outono de 2021, centenas de milhares de suas tropas em toda a fronteira ucraniana, do norte ao sudeste. E não há explicação para isso além de Putin ter decidido que queria conquistar toda a Ucrânia. E ele começou esses preparativos. E o uso real da força para iniciar a invasão em larga escala em fevereiro de 2022 baseou-se em um pretexto falso.

Tamilla: Você mencionou algumas razões. Na verdade, existem até 10 razões diferentes que a propaganda russa tem difundido. Quando você está fazendo algo estúpido e ilegal e quer o apoio da sua população, você lança quaisquer razões possíveis. Alguns vão se apegar à ideia de nazistas inexistentes que precisam ser derrubados. Alguns vão se apegar à ideia de que não é realmente sobre a Ucrânia, que na verdade são os EUA travando uma guerra global e escolhendo simplesmente a Ucrânia como campo de batalha para a Terceira Guerra Mundial híbrida. “É culpa dos EUA”. Alguns vão cair na ideia do Putin sendo o chamado “campeão dos valores tradicionais em oposição ao Ocidente decadente”. Então você lança essas razões todo mês e espera que seus telespectadores leais engulam pelo menos uma delas. É assim que a propaganda funciona.

Esta entrevista foi dividida em duas partes para facilitar a leitura. Leia aqui a segunda parte

Esta entrevista foi dividida em duas partes para facilitar a leitura. Leia aqui a segunda parte.

BRASÍLIA - Os advogados Grigori Vaipan, de 34 anos, e Tamilla Imanova, de 28 anos, e a jornalista Daria Guskova, de 29 anos, têm mais em comum hoje do que no passado. Com trajetórias e origens diversas dentro da vastidão territorial russa, os três foram forçados a abandonar o país e vivem no exílio há dois anos. São opositores declarados de Vladimir Putin, dispostos a expor a própria cara no mundo em campanha contra o autocrata. Atitude que já custou a vida de muitos.

Desde a invasão da Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, o trio abandonou a Rússia por causa do que descrevem como o recrudescimento “brutal” de um regime de repressão, ordenado pelo Kremlin, contra opositores, defensores de direitos humanos e a liberdade de expressão e de imprensa.

“Putin significa guerra. Ele reconstruiu o país, reconstruiu a economia russa, para que ele possa travar esta guerra pelo tempo que for possível”, diz Vaipan.

Vaipan e Tamilla fazem parte da equipe de advogados do Memorial Human Rights Defence Centre, uma entidade russa que surgiu de um movimento clandestino em 1987, e se dedica a acompanhar crimes na Rússia contemporânea, desde 1993. No ano passado, a organização teria completado 30 anos, se não não tivesse sido fechada à força, em 2022.

Daria, por sua vez, lidera a equipe de notícias do site Mediazona, plataforma jornalística independente criada em 2014 por membros do grupo feminista Pussy Riot. Eles reúnem dados checados como a lista de pessoas “procuradas” pelas forças de segurança de Moscou, a quantidade de baixas nas Forças Armadas russas e estatísticas dos primeiros 1.000 dias da guerra na Ucrânia.

O moscovita Vaipan exilou-se em Montenegro no fim de 2022. Meses antes, em abril, Tamilla, que nasceu em Nijni Novgorod, uma das maiores cidades russas e sede de jogos da Copa de 2018, havia partido para Varsóvia, na Polônia. A primeira a sair, em março, foi a editora Daria, nascida na cidade de Tula, ao Sul da capital Moscou. Hoje ela vive na Lituânia.

No fim de novembro, eles estiveram em Brasília para expor a situação interna da Rússia em guerra de Putin. Conversaram por duas horas, com exclusividade, com o Estadão. Na primeira parte da entrevista, dividida em dois capítulos, falam sobre as propostas do governo Luiz Inácio Lula da Silva e os desdobramentos geopolíticos mais recentes da guerra, além da dificuldade para rastrear o paradeiro das crianças ucranianas deportadas ilegalmente para a Rússia, um dos motivos para a ordem de prisão contra Putin.

Procurada, a Presidência da República não quis se manifestar sobre as críticas. A Embaixada da Rússia em Brasília rebateu as declarações, afirmou que os comentários à invasão da Ucrânia nem sequer merecem críticas e que o trio age pago por “agências ocidentais”.

Vladimir Putin se ausentou do G-20 no Rio, no mês passado, mas poderá vir ao País para a Cúpula do Brics em julho de 2025. O governo brasileiro já disse antes que ele é bem-vindo. Que mensagem o governo Lula envia ao mundo? Acham que ele virá?

Grigori: Convidar Putin significa, antes de tudo, traição à Ucrânia, e traição à Ucrânia é traição à liberdade, democracia e direitos humanos. Porque Vladimir Putin é um ditador, um criminoso de guerra, que iniciou a guerra de agressão mais sangrenta desde a 2ª Guerra Mundial no mundo. É simples assim. É improvável que ele venha porque é objeto de um mandado de prisão pelo Tribunal Penal Internacional, baseado em Haia, Países Baixos. E ele é muito cauteloso sobre viajar para países que são Estados integrantes do estatuto do Tribunal Penal Internacional. O Brasil é um desses países e está sob a obrigação de prender Putin se ele aparecer.

Ativistas dizem no Brasil que propostas de Lula são perigosas para o mundo, contrárias ao direito internacional e recompensam a guerra de Putin Foto: WILTON JUNIOR/Estadão

Já houve uma discussão semelhante sobre se ele deveria ir à África do Sul, e ele não foi. Porque a África do Sul tem tribunais independentes e uma sociedade civil atuante. Houve um incidente alguns anos atrás quando o presidente sudanês, Omar al-Bashir, visitou a África do Sul e quase não escapou. Porque o tribunal nacional emitiu uma ordem de restrição para ele proibindo-o de deixar a Cúpula até que a questão de sua prisão fosse julgada. Então ele teve que ser secretamente escoltado para fora de uma base militar pelo executivo sul-africano, desafiando uma ordem judicial.

Entendemos que a sociedade civil brasileira também é bastante ativa aqui e disposta a pressionar as autoridades para exigir que Putin seja preso. É improvável que isso vá acontecer, mas também é improvável que ele venha aqui.

Putin é acusado de crime de guerra e deportação ilegal de crianças ucranianas. Vocês têm contato com as famílias? O aconteceu com elas, quantas são e onde estão as crianças?

Tamilla: Esta é a pergunta mais difícil. Primeiro, os territórios ocupados são os mais difíceis de trabalhar. Os ucranianos não podem entrar a menos que sejam residentes do território ocupado. Se você é ucraniano da parte ocidental do país, você não passará pelo posto de bloqueio para os territórios ocupados. Os russos, se forem defensores dos direitos humanos, “agentes estrangeiros”, esse tipo de pessoa, também não serão admitidos. Ainda há chances de se chegar a esses territórios ocupados violando a lei nacional ucraniana - cruzar a fronteira ilegalmente, o que também é problemático. Ainda há pessoas trabalhando nos territórios ocupados, mas elas encontram tantos obstáculos que este é um dos territórios mais difíceis em toda a Europa para trabalhar e lidar com questões de direitos humanos.

É muito difícil rastrear a origem das crianças que estão sendo sequestradas pelo governo russo. Primeiro, elas podem ser de fato órfãs. Em segundo lugar, elas podem ter pais atualmente servindo nas Forças Armadas. E novamente, com eles estando no campo de batalha, você não pode ter certeza se eles ainda estão vivos ou se faleceram. Terceiro, essas crianças são sequestradas, e continuarei a usar a palavra sequestradas. O governo russo imediatamente tenta mudar sua identidade, emitindo um passaporte russo para elas, mudando seus nomes e sobrenomes, colocando-as em famílias desses novos sobrenomes. O novo sobrenome dado é o da família na qual eles são colocadas. Então isso é feito em enorme sigilo, e é claro que as crianças geralmente são de uma idade em que não conseguem se comunicar. Elas não podem procurar defensores dos direitos humanos e gritar que foram sequestradas. Em alguns desses casos, elas não têm idade para realmente lembrar sua identidade natal, seus pais, seus nomes dados, etc. Portanto, é por isso que esse crime é tão atroz. Porque são as crianças mais inocentes sob ataque e é difícil rastrear esses destinos.

Sabemos com certeza que a chamada filha desse político criminoso de guerra, Sergei Mironov, chamada Marina Mironova, não é Marina nem Mironova. Ela é uma criança ucraniana que recebeu um nome e sobrenome diferentes. Então seu destino foi rastreado, mas é a única coisa possível de fazer agora. Nós não podemos sequestrá-la de volta da família de Mironov. Ninguém pode. Ela foi colocada nessa família e eu fico perplexa em pensar o que é possível fazer. Nós poderíamos contestar essa adoção ilegal nos tribunais na Rússia, mas eles vão ficar do lado de Mironov, obviamente.

Esse caso foi tornado público. Houve outros?

Tamilla: Sim, se você acompanhar o mandado de prisão, não apenas Putin recebeu o mandado de prisão, mas também uma comissária para os direitos das crianças, Maria Lvova Belova. Ela mesma também é mãe, chamada de mãe, de crianças ucranianas adotadas que também foram sequestradas dos territórios ocupados. Então este é outro caso que foi rastreado. Mas, neste momento, estamos em uma situação tão terrível de destruição dos direitos humanos que neste ponto só podemos rastrear, anotar, relatar internacionalmente, fazer advocacia internacionalmente, como deixar cada mídia nacional ou internacional independente saber sobre isso. Mas é isso. Não podemos sequestrar a criança de volta e trazê-la de volta para a Ucrânia.

Grigori: Na verdade, estão em andamento esforços para facilitar o retorno de crianças. O governo ucraniano estima que mais de 19.000 crianças ucranianas foram raptadas, e até agora apenas algumas centenas foram devolvidas. É a situação em que estamos.

Facilitar?

Tamilla: Negociar com a Rússia, com autoridades russas, com os “adotantes” russos, as novas famílias, sim. Eu nem sei o termo correto para este procedimento ilegal.

Já houve acordos para trocar prisioneiros. Vocês acompanharam?

Grigori: Estamos falando sobre duas categorias. Prisioneiros de guerra e civis ucranianos. A Rússia deteve pelo menos 7.000 civis ucranianos, e os manteve detidos sem base legal. Prisioneiros de guerra são uma categoria distinta, mas você também pode não ser um combatente, não ser um soldado, e ainda assim acabar em uma prisão secreta russa. Portanto, houve esforços para trocar tanto prisioneiros de guerra quanto libertar alguns civis ucranianos. Alguns casos foram bem-sucedidos, alguns não foram. Algumas pessoas morreram no cativeiro russo.

O que eles relatam sobre as prisões russas e como foram mantidos?

Tamilla: Tortura, inanição. No caso de mulheres, mas às vezes homens também, abuso sexual. Outras formas de intimidação. Por exemplo, uma mulher teve o cabelo cortado para minar sua dignidade, se posso dizer assim. Os ex-detentos ucranianos parecem muito piores do que ex-prisioneiros russos. Sempre que um prisioneiro político é libertado de uma prisão da Ucrânia, ele ainda parece, de certa forma, saudável. Ex-prisioneiros ucranianos parecem que estiveram no inferno. Eles perdem até 20 quilos por estarem famintos e terem sido torturados. Essas prisões secretas usam os métodos mais ilegais de tortura. Não apenas apanhar regularmente, mas choques elétricos.

É bem conhecido que a Rússia usa alguns dos métodos de investigação e tortura mais antigos, como amarrar uma pessoa e virar sua cabeça para baixo. Amarrando-a em algo e eletrocutando, estuprando. Nenhum acesso a ajuda médica de forma alguma. E, claro, sendo escondidos de qualquer um que possa realmente testemunhar e relatar isso.

Os prisioneiros russos ainda conseguem passar uma reclamação ao seu advogado, para alguma comissão independente que observa prisioneiros, embora essas comissões sejam cada vez menos independentes. Há um método muito famoso, frequentemente usado para chamar atenção: cortar as veias na audiência do tribunal. Soa realmente horrível, mas eu conheço vários prisioneiros políticos que chamaram atenção para eles por tentarem cometer suicídio durante a audiência aberta do tribunal. Com esses homens e mulheres ucranianos civis e alguns dos prisioneiros de guerra as audiências são secretas. Então, às vezes não há ninguém para chamar a atenção.

Como vocês conseguiram colher provas dessa situação?

Tamilla: A maioria das evidências vêm dos ucranianos que foram libertados. Quando foram libertados e enviados de volta para a Ucrânia, eles tiveram liberdade para falar. E assim que você vê a fotografia deles, você vê que eles estiveram em condições horrendas de detenção.

Exilados afirmam que Putin faz chantagem nuclear e jamais pagou por crimes de guerra antes Foto: WILTON JUNIOR/Estadão

Uma das últimas sugestões do presidente Lula foi conduzir uma consulta popular, um referendo, para encerrar a guerra e deixar o povo decidir se quer fazer parte da Rússia ou da Ucrânia. Há alguma chance de essa ideia ser aceita? Um processo de votação nos territórios ocupados pode ser conduzido de forma livre e justa?

Tamilla: Não, absolutamente não. Primeiro de tudo, o chamado referendo, e eu digo isso o mais ironicamente possível, foi conduzido no outono de 2022. Mas o que você precisa saber sobre esses territórios naquela época é que, primeiro de tudo, muitos, muitos ucranianos haviam fugido até aquele momento, seja por medo de serem perseguidos pela expressão de sua identidade ucraniana ou simplesmente pelo fato de que esses territórios estão sob ataque constante e as pessoas temem por suas vidas e saúde. Então, muitas pessoas deixaram esses territórios uma vez que são as zonas de conflito atuais onde mísseis voam todos os dias. A maior parte da população não está presente. Outra coisa, esses chamados referendos foram realizados com pessoas portando armas presentes nessas chamadas estações de votação. Então, eu não acho que você possa expressar sua opinião ou seu desejo de votar livre e justamente quando há um oficial do exército com uma arma atrás de você. De jeito nenhum. Essa é uma proposta ilegal, tanto sob a lei internacional quanto ucraniana. Até certo ponto, talvez até russa, se formos a fundo nisso.

Grigori: É obviamente claro que a proposta do presidente Lula é inconsistente com o direito internacional. O direito internacional proíbe qualquer aquisição territorial pela força. A Rússia atualmente ocupa cinco regiões da Ucrânia como resultado de sua agressão, conforme determinado pela Assembleia Geral das Nações Unidas e pelo Tribunal Internacional de Justiça. A Rússia é um Estado agressor. Capturou território. Não há maneira legal para a Rússia legitimar o controle desses territórios. Esses são territórios ucranianos sob o direito internacional e a única maneira deste conflito terminar legalmente é por esses territórios voltarem ao controle ucraniano. Não importa que forma de legitimação essa anexação possa tomar. Não importa se é um decreto de Putin ou um alegado referendo porque, se esses territórios forem entregues à Rússia, isso cria um precedente explosivo para o mundo. Encorajaria outros países a usar força militar para ocupar territórios de outros países e então usar algumas formas para legitimar esse controle e anexar esses territórios. É tão simples quanto isso. Essa proposta não está alinhada com o direito internacional e é estrategicamente perigosa para o mundo. Se o Brasil se vê como um defensor da paz e da segurança no mundo, então é errado apresentar uma proposta como esta porque propostas como esta, que tendem a legitimar a ocupação militar, tendem a minar a paz e a segurança internacionais globalmente.

Brasil e a China propuseram uma espécie de plano com seis princípios, que não exige a retirada das tropas russas. Vocês veem influência russa nessas propostas do Brasil?

Grigori: A maneira mais simples de resumir é que é a proposta de paz sem justiça. O que o Brasil e a China propuseram é acabar com essa guerra sem apreciar sua causa. E sua causa é a agressão da Rússia e a brutal ditadura da Rússia que iniciou essa guerra, que começou essa guerra, para solidificar seu controle de poder dentro do país e também para expandir sua ambição imperial para seus vizinhos. Como aprendemos pela história, paz sem justiça não é sustentável. Paz sem justiça encoraja o agressor e leva a novos crimes e a novas agressões. Se a Ucrânia não recuperar seu território e seu povo, se a Ucrânia não for compensada, se os responsáveis pelos crimes russos não forem levados à justiça, então, num espaço de poucos anos, veremos a guerra novamente, potencialmente se espalhando além da Ucrânia.

A própria Rússia nunca foi responsabilizada por nenhum de seus crimes que cometeu durante conflitos armados. A Rússia teve um conflito armado interno na Chechênia, uma província separatista nos anos 1990. Foram cometidos inúmeros crimes lá, incluindo, mais notavelmente, milhares de desaparecimentos forçados. Ninguém jamais foi responsabilizado por isso. A Rússia cometeu crimes de guerra na Geórgia em 2008, na Síria nos anos 2010 e na Ucrânia desde 2014. Nós, como advogados de direitos humanos, testemunhamos, ao longo dessas décadas, essa cadeia de impunidade. A impunidade por crimes passados encoraja novos crimes.

E particularmente na Ucrânia, falando de qualquer tipo de acordo de paz, já houve um acordo de paz em 2015, os chamados Acordos de Minsk, quando houve um cessar-fogo, e tropas apoiadas pela Rússia, naquela época, controlavam algumas áreas no leste da Ucrânia. O conflito foi congelado, apenas para ser retomado sete anos depois. Putin foi encorajado por aquele acordo de paz. Ele teve tempo para fortalecer seu exército, investir no esforço de guerra e atacar a Ucrânia em 2022, com a intenção de destruir o país inteiro. Ele claramente, como sabemos agora, tinha a intenção de destruir a Ucrânia como nação. E ele não teve sucesso, apenas porque os ucranianos se levantaram em defesa do seu país, com o apoio de outros países democráticos do mundo.

O Brasil está do lado da liberdade e da democracia ou do lado do agressor? Quer dizer, você tem que fazer essa escolha, em última análise. Apreciamos o esforço do governo brasileiro em facilitar a paz, e é importante que, mesmo durante a guerra, possam haver certos esforços humanitários, como o retorno das crianças sequestradas. Esforços humanitários são importantes, mas quando se trata de paz sustentável, você tem que fazer uma escolha. Você não pode dizer que é neutro. Não há neutralidade aqui. Ou você apoia a vítima e alguém lutando pela liberdade, ou você apoia o agressor e um criminoso.

Tamilla: Analisei minuciosamente este plano de paz conjunto. Nenhuma vez ele menciona a palavra guerra, e claro, em nenhum lugar deste plano de paz condena a guerra que a Rússia travou contra a Ucrânia. Um documento final promovendo a paz não pode fazer isso. Eles não podem simplesmente focar em desescalar o conflito, como se a Ucrânia fosse tão responsável por ter esta guerra quanto a Rússia. Isso não é um conflito de dois lados. Isso é uma invasão, e eles não podem remover as palavras de tom duro com conflito e nunca condená-lo. ‘Vamos acalmar Putin novamente’. Nós temos acalmado Putin por 30 anos, e isso nunca funciona.

Tamilla Imanova: Descobrir o paradeiro e trazer crianças ucranianas deportadas de volta é a parte mais difícil Foto: WILTON JUNIOR/Estadão

Putin agora ameaça atacar centros de tomada de decisão na Ucrânia e até a Europa com o novo míssil hipersônico Oreshnik, capaz de carregar ogivas nucleares. Como enxerga os próximos meses diante dos últimos desdobramentos?

Grigori: Putin faz chantagem nuclear desde fevereiro de 2022. Não é a primeira vez que ele ameaça o mundo com armas nucleares, e isso é um problema em si mesmo, que a Rússia é controlada por um homem sentado ao lado deste botão vermelho, que ele pode pressionar a qualquer momento. Então, ninguém no mundo está seguro enquanto Putin estiver no Kremlin, porque dentro da Rússia não há freios e contrapesos, não há salvaguardas institucionais que possam impedi-lo de fazer o que quiser.

Tamilla: E essa é a parte mais assustadora, porque não estamos mais nos tempos de Hiroshima-Nagasaki. As armas se desenvolveram. Desculpe, pela negatividade.

E há algum sinal de que Putin vá de fato deixar o Kremlin?

Grigori: Se você quer paz, você precisa derrotar Putin. Para derrotar Putin, você precisa apoiar a Ucrânia. É um cálculo muito simples nos dias de hoje. Não podemos contar com nenhuma mudança dentro da Rússia nos dias de hoje. É sobre apoiar a Ucrânia para garantir que a Ucrânia vença esta guerra e derrote Putin. E se isso acontecer, então pode haver uma oportunidade para a Rússia se reformar. E se a Rússia se reformar, então pode haver esperança para uma paz sustentável naquela região e paz sustentável no mundo, porque a Rússia é uma potência nuclear. E é essencial que seja governada democraticamente.

Donald Trump está voltando ao poder nos EUA e promete encerrar a guerra muito rapidamente. Ele foi elogiado pela Rússia. O que pode ocorrer com esse novo elemento no cenário?

Tamilla: Ainda não temos uma ideia do conteúdo exato do chamado plano de paz de Trump. Ele pretende simplesmente cortar a ajuda e deixar isso ser um problema ucraniano ou quer se tornar um negociador? Se Trump se tornar um negociador, eles vão começar a discutir esse tipo de mesmo plano por meses. Se ele simplesmente se afastar da Ucrânia, isso vai ser um desastre para a Ucrânia, porque, sejamos honestos, depende da ajuda dos Estados Unidos. Depende de qual caminho ele seguir, e, desculpe, este homem é bastante imprevisível neste momento.

Autoridades russas dizem que a guerra na Ucrânia foi motivada, entre outras razões, pela expansão da Otan e por que os direitos de povos de origem russa nos territórios ocupados estariam sob ataque do que eles chamam de “regime de Kiev”. Eles têm alguma razão ou é apenas propaganda oficial?

Grigori: É propaganda, eles não estão certos nesses argumentos. A Rússia começou a guerra na Ucrânia em 2014 quando anexou a Crimeia por iniciativa própria. Putin admitiu abertamente isso posteriormente. Ele confirmou que foi sua decisão anexar a Crimeia. Foi depois que a Crimeia foi efetivamente ocupada pelas forças armadas russas que ele decidiu realizar o referendo. Assim, a Crimeia foi anexada por decisão de Putin, não pela vontade do povo da Crimeia ou do povo ucraniano ou de qualquer outra pessoa. Depois veio a ocupação do leste da Ucrânia, regiões de Donetsk e Luhansk da Ucrânia. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, baseado em Estrasburgo, stabeleceu que a Rússia controlou as forças armadas separatistas que tomaram controle do leste da Ucrânia desde 2014. Era efetivamente uma força russa. Então, a Rússia ocupou partes do leste da Ucrânia desde 2014. A Rússia foi a causa desta guerra. Qualquer conflito armado que se seguiu foi uma tentativa do governo ucraniano de recuperar território. E mesmo esse conflito armado efetivamente chegou a uma paralisação em 2022. Sabemos pelos números oficiais da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa que houve quase nenhuma baixa no leste da Ucrânia. O conflito foi efetivamente congelado por volta de 2022.

De acordo com a ONU, em 2021, no leste da Ucrânia, houve 36 baixas entre civis, mas a maioria delas por minas terrestres e uso imprudente de munição que foi deixada no terreno. Não havia hostilidades. Apenas uma pessoa foi morta no Donbass em 2021. Uma mulher foi morta e cinco homens ficaram feridos como resultado do manuseio de um remanescente explosivo de guerra. Havia algumas munições, talvez uma mina, e eles acidentalmente se feriram e foram mortos. E foi em uma parte da região de Donetsk controlada pelo governo. Então, não era nem mesmo no território ocupado, na parte que está sob controle ucraniano. Isso realmente mostra a extensão das mentiras que Putin usou quando invadiu a Ucrânia. Uma pessoa foi morta no leste da Ucrânia em 2021. E ele disse que estava acontecendo um genocídio. Apenas para lançar uma invasão em larga escala que matou milhares de pessoas.

É uma traição completa da verdade afirmar, como a propaganda russa faz, que havia um genocídio acontecendo no leste da Ucrânia, que a Rússia tentou parar. Não havia nada acontecendo no leste da Ucrânia. Em vez disso, a Rússia acumulou, desde o outono de 2021, centenas de milhares de suas tropas em toda a fronteira ucraniana, do norte ao sudeste. E não há explicação para isso além de Putin ter decidido que queria conquistar toda a Ucrânia. E ele começou esses preparativos. E o uso real da força para iniciar a invasão em larga escala em fevereiro de 2022 baseou-se em um pretexto falso.

Tamilla: Você mencionou algumas razões. Na verdade, existem até 10 razões diferentes que a propaganda russa tem difundido. Quando você está fazendo algo estúpido e ilegal e quer o apoio da sua população, você lança quaisquer razões possíveis. Alguns vão se apegar à ideia de nazistas inexistentes que precisam ser derrubados. Alguns vão se apegar à ideia de que não é realmente sobre a Ucrânia, que na verdade são os EUA travando uma guerra global e escolhendo simplesmente a Ucrânia como campo de batalha para a Terceira Guerra Mundial híbrida. “É culpa dos EUA”. Alguns vão cair na ideia do Putin sendo o chamado “campeão dos valores tradicionais em oposição ao Ocidente decadente”. Então você lança essas razões todo mês e espera que seus telespectadores leais engulam pelo menos uma delas. É assim que a propaganda funciona.

Esta entrevista foi dividida em duas partes para facilitar a leitura. Leia aqui a segunda parte

Esta entrevista foi dividida em duas partes para facilitar a leitura. Leia aqui a segunda parte.

BRASÍLIA - Os advogados Grigori Vaipan, de 34 anos, e Tamilla Imanova, de 28 anos, e a jornalista Daria Guskova, de 29 anos, têm mais em comum hoje do que no passado. Com trajetórias e origens diversas dentro da vastidão territorial russa, os três foram forçados a abandonar o país e vivem no exílio há dois anos. São opositores declarados de Vladimir Putin, dispostos a expor a própria cara no mundo em campanha contra o autocrata. Atitude que já custou a vida de muitos.

Desde a invasão da Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, o trio abandonou a Rússia por causa do que descrevem como o recrudescimento “brutal” de um regime de repressão, ordenado pelo Kremlin, contra opositores, defensores de direitos humanos e a liberdade de expressão e de imprensa.

“Putin significa guerra. Ele reconstruiu o país, reconstruiu a economia russa, para que ele possa travar esta guerra pelo tempo que for possível”, diz Vaipan.

Vaipan e Tamilla fazem parte da equipe de advogados do Memorial Human Rights Defence Centre, uma entidade russa que surgiu de um movimento clandestino em 1987, e se dedica a acompanhar crimes na Rússia contemporânea, desde 1993. No ano passado, a organização teria completado 30 anos, se não não tivesse sido fechada à força, em 2022.

Daria, por sua vez, lidera a equipe de notícias do site Mediazona, plataforma jornalística independente criada em 2014 por membros do grupo feminista Pussy Riot. Eles reúnem dados checados como a lista de pessoas “procuradas” pelas forças de segurança de Moscou, a quantidade de baixas nas Forças Armadas russas e estatísticas dos primeiros 1.000 dias da guerra na Ucrânia.

O moscovita Vaipan exilou-se em Montenegro no fim de 2022. Meses antes, em abril, Tamilla, que nasceu em Nijni Novgorod, uma das maiores cidades russas e sede de jogos da Copa de 2018, havia partido para Varsóvia, na Polônia. A primeira a sair, em março, foi a editora Daria, nascida na cidade de Tula, ao Sul da capital Moscou. Hoje ela vive na Lituânia.

No fim de novembro, eles estiveram em Brasília para expor a situação interna da Rússia em guerra de Putin. Conversaram por duas horas, com exclusividade, com o Estadão. Na primeira parte da entrevista, dividida em dois capítulos, falam sobre as propostas do governo Luiz Inácio Lula da Silva e os desdobramentos geopolíticos mais recentes da guerra, além da dificuldade para rastrear o paradeiro das crianças ucranianas deportadas ilegalmente para a Rússia, um dos motivos para a ordem de prisão contra Putin.

Procurada, a Presidência da República não quis se manifestar sobre as críticas. A Embaixada da Rússia em Brasília rebateu as declarações, afirmou que os comentários à invasão da Ucrânia nem sequer merecem críticas e que o trio age pago por “agências ocidentais”.

Vladimir Putin se ausentou do G-20 no Rio, no mês passado, mas poderá vir ao País para a Cúpula do Brics em julho de 2025. O governo brasileiro já disse antes que ele é bem-vindo. Que mensagem o governo Lula envia ao mundo? Acham que ele virá?

Grigori: Convidar Putin significa, antes de tudo, traição à Ucrânia, e traição à Ucrânia é traição à liberdade, democracia e direitos humanos. Porque Vladimir Putin é um ditador, um criminoso de guerra, que iniciou a guerra de agressão mais sangrenta desde a 2ª Guerra Mundial no mundo. É simples assim. É improvável que ele venha porque é objeto de um mandado de prisão pelo Tribunal Penal Internacional, baseado em Haia, Países Baixos. E ele é muito cauteloso sobre viajar para países que são Estados integrantes do estatuto do Tribunal Penal Internacional. O Brasil é um desses países e está sob a obrigação de prender Putin se ele aparecer.

Ativistas dizem no Brasil que propostas de Lula são perigosas para o mundo, contrárias ao direito internacional e recompensam a guerra de Putin Foto: WILTON JUNIOR/Estadão

Já houve uma discussão semelhante sobre se ele deveria ir à África do Sul, e ele não foi. Porque a África do Sul tem tribunais independentes e uma sociedade civil atuante. Houve um incidente alguns anos atrás quando o presidente sudanês, Omar al-Bashir, visitou a África do Sul e quase não escapou. Porque o tribunal nacional emitiu uma ordem de restrição para ele proibindo-o de deixar a Cúpula até que a questão de sua prisão fosse julgada. Então ele teve que ser secretamente escoltado para fora de uma base militar pelo executivo sul-africano, desafiando uma ordem judicial.

Entendemos que a sociedade civil brasileira também é bastante ativa aqui e disposta a pressionar as autoridades para exigir que Putin seja preso. É improvável que isso vá acontecer, mas também é improvável que ele venha aqui.

Putin é acusado de crime de guerra e deportação ilegal de crianças ucranianas. Vocês têm contato com as famílias? O aconteceu com elas, quantas são e onde estão as crianças?

Tamilla: Esta é a pergunta mais difícil. Primeiro, os territórios ocupados são os mais difíceis de trabalhar. Os ucranianos não podem entrar a menos que sejam residentes do território ocupado. Se você é ucraniano da parte ocidental do país, você não passará pelo posto de bloqueio para os territórios ocupados. Os russos, se forem defensores dos direitos humanos, “agentes estrangeiros”, esse tipo de pessoa, também não serão admitidos. Ainda há chances de se chegar a esses territórios ocupados violando a lei nacional ucraniana - cruzar a fronteira ilegalmente, o que também é problemático. Ainda há pessoas trabalhando nos territórios ocupados, mas elas encontram tantos obstáculos que este é um dos territórios mais difíceis em toda a Europa para trabalhar e lidar com questões de direitos humanos.

É muito difícil rastrear a origem das crianças que estão sendo sequestradas pelo governo russo. Primeiro, elas podem ser de fato órfãs. Em segundo lugar, elas podem ter pais atualmente servindo nas Forças Armadas. E novamente, com eles estando no campo de batalha, você não pode ter certeza se eles ainda estão vivos ou se faleceram. Terceiro, essas crianças são sequestradas, e continuarei a usar a palavra sequestradas. O governo russo imediatamente tenta mudar sua identidade, emitindo um passaporte russo para elas, mudando seus nomes e sobrenomes, colocando-as em famílias desses novos sobrenomes. O novo sobrenome dado é o da família na qual eles são colocadas. Então isso é feito em enorme sigilo, e é claro que as crianças geralmente são de uma idade em que não conseguem se comunicar. Elas não podem procurar defensores dos direitos humanos e gritar que foram sequestradas. Em alguns desses casos, elas não têm idade para realmente lembrar sua identidade natal, seus pais, seus nomes dados, etc. Portanto, é por isso que esse crime é tão atroz. Porque são as crianças mais inocentes sob ataque e é difícil rastrear esses destinos.

Sabemos com certeza que a chamada filha desse político criminoso de guerra, Sergei Mironov, chamada Marina Mironova, não é Marina nem Mironova. Ela é uma criança ucraniana que recebeu um nome e sobrenome diferentes. Então seu destino foi rastreado, mas é a única coisa possível de fazer agora. Nós não podemos sequestrá-la de volta da família de Mironov. Ninguém pode. Ela foi colocada nessa família e eu fico perplexa em pensar o que é possível fazer. Nós poderíamos contestar essa adoção ilegal nos tribunais na Rússia, mas eles vão ficar do lado de Mironov, obviamente.

Esse caso foi tornado público. Houve outros?

Tamilla: Sim, se você acompanhar o mandado de prisão, não apenas Putin recebeu o mandado de prisão, mas também uma comissária para os direitos das crianças, Maria Lvova Belova. Ela mesma também é mãe, chamada de mãe, de crianças ucranianas adotadas que também foram sequestradas dos territórios ocupados. Então este é outro caso que foi rastreado. Mas, neste momento, estamos em uma situação tão terrível de destruição dos direitos humanos que neste ponto só podemos rastrear, anotar, relatar internacionalmente, fazer advocacia internacionalmente, como deixar cada mídia nacional ou internacional independente saber sobre isso. Mas é isso. Não podemos sequestrar a criança de volta e trazê-la de volta para a Ucrânia.

Grigori: Na verdade, estão em andamento esforços para facilitar o retorno de crianças. O governo ucraniano estima que mais de 19.000 crianças ucranianas foram raptadas, e até agora apenas algumas centenas foram devolvidas. É a situação em que estamos.

Facilitar?

Tamilla: Negociar com a Rússia, com autoridades russas, com os “adotantes” russos, as novas famílias, sim. Eu nem sei o termo correto para este procedimento ilegal.

Já houve acordos para trocar prisioneiros. Vocês acompanharam?

Grigori: Estamos falando sobre duas categorias. Prisioneiros de guerra e civis ucranianos. A Rússia deteve pelo menos 7.000 civis ucranianos, e os manteve detidos sem base legal. Prisioneiros de guerra são uma categoria distinta, mas você também pode não ser um combatente, não ser um soldado, e ainda assim acabar em uma prisão secreta russa. Portanto, houve esforços para trocar tanto prisioneiros de guerra quanto libertar alguns civis ucranianos. Alguns casos foram bem-sucedidos, alguns não foram. Algumas pessoas morreram no cativeiro russo.

O que eles relatam sobre as prisões russas e como foram mantidos?

Tamilla: Tortura, inanição. No caso de mulheres, mas às vezes homens também, abuso sexual. Outras formas de intimidação. Por exemplo, uma mulher teve o cabelo cortado para minar sua dignidade, se posso dizer assim. Os ex-detentos ucranianos parecem muito piores do que ex-prisioneiros russos. Sempre que um prisioneiro político é libertado de uma prisão da Ucrânia, ele ainda parece, de certa forma, saudável. Ex-prisioneiros ucranianos parecem que estiveram no inferno. Eles perdem até 20 quilos por estarem famintos e terem sido torturados. Essas prisões secretas usam os métodos mais ilegais de tortura. Não apenas apanhar regularmente, mas choques elétricos.

É bem conhecido que a Rússia usa alguns dos métodos de investigação e tortura mais antigos, como amarrar uma pessoa e virar sua cabeça para baixo. Amarrando-a em algo e eletrocutando, estuprando. Nenhum acesso a ajuda médica de forma alguma. E, claro, sendo escondidos de qualquer um que possa realmente testemunhar e relatar isso.

Os prisioneiros russos ainda conseguem passar uma reclamação ao seu advogado, para alguma comissão independente que observa prisioneiros, embora essas comissões sejam cada vez menos independentes. Há um método muito famoso, frequentemente usado para chamar atenção: cortar as veias na audiência do tribunal. Soa realmente horrível, mas eu conheço vários prisioneiros políticos que chamaram atenção para eles por tentarem cometer suicídio durante a audiência aberta do tribunal. Com esses homens e mulheres ucranianos civis e alguns dos prisioneiros de guerra as audiências são secretas. Então, às vezes não há ninguém para chamar a atenção.

Como vocês conseguiram colher provas dessa situação?

Tamilla: A maioria das evidências vêm dos ucranianos que foram libertados. Quando foram libertados e enviados de volta para a Ucrânia, eles tiveram liberdade para falar. E assim que você vê a fotografia deles, você vê que eles estiveram em condições horrendas de detenção.

Exilados afirmam que Putin faz chantagem nuclear e jamais pagou por crimes de guerra antes Foto: WILTON JUNIOR/Estadão

Uma das últimas sugestões do presidente Lula foi conduzir uma consulta popular, um referendo, para encerrar a guerra e deixar o povo decidir se quer fazer parte da Rússia ou da Ucrânia. Há alguma chance de essa ideia ser aceita? Um processo de votação nos territórios ocupados pode ser conduzido de forma livre e justa?

Tamilla: Não, absolutamente não. Primeiro de tudo, o chamado referendo, e eu digo isso o mais ironicamente possível, foi conduzido no outono de 2022. Mas o que você precisa saber sobre esses territórios naquela época é que, primeiro de tudo, muitos, muitos ucranianos haviam fugido até aquele momento, seja por medo de serem perseguidos pela expressão de sua identidade ucraniana ou simplesmente pelo fato de que esses territórios estão sob ataque constante e as pessoas temem por suas vidas e saúde. Então, muitas pessoas deixaram esses territórios uma vez que são as zonas de conflito atuais onde mísseis voam todos os dias. A maior parte da população não está presente. Outra coisa, esses chamados referendos foram realizados com pessoas portando armas presentes nessas chamadas estações de votação. Então, eu não acho que você possa expressar sua opinião ou seu desejo de votar livre e justamente quando há um oficial do exército com uma arma atrás de você. De jeito nenhum. Essa é uma proposta ilegal, tanto sob a lei internacional quanto ucraniana. Até certo ponto, talvez até russa, se formos a fundo nisso.

Grigori: É obviamente claro que a proposta do presidente Lula é inconsistente com o direito internacional. O direito internacional proíbe qualquer aquisição territorial pela força. A Rússia atualmente ocupa cinco regiões da Ucrânia como resultado de sua agressão, conforme determinado pela Assembleia Geral das Nações Unidas e pelo Tribunal Internacional de Justiça. A Rússia é um Estado agressor. Capturou território. Não há maneira legal para a Rússia legitimar o controle desses territórios. Esses são territórios ucranianos sob o direito internacional e a única maneira deste conflito terminar legalmente é por esses territórios voltarem ao controle ucraniano. Não importa que forma de legitimação essa anexação possa tomar. Não importa se é um decreto de Putin ou um alegado referendo porque, se esses territórios forem entregues à Rússia, isso cria um precedente explosivo para o mundo. Encorajaria outros países a usar força militar para ocupar territórios de outros países e então usar algumas formas para legitimar esse controle e anexar esses territórios. É tão simples quanto isso. Essa proposta não está alinhada com o direito internacional e é estrategicamente perigosa para o mundo. Se o Brasil se vê como um defensor da paz e da segurança no mundo, então é errado apresentar uma proposta como esta porque propostas como esta, que tendem a legitimar a ocupação militar, tendem a minar a paz e a segurança internacionais globalmente.

Brasil e a China propuseram uma espécie de plano com seis princípios, que não exige a retirada das tropas russas. Vocês veem influência russa nessas propostas do Brasil?

Grigori: A maneira mais simples de resumir é que é a proposta de paz sem justiça. O que o Brasil e a China propuseram é acabar com essa guerra sem apreciar sua causa. E sua causa é a agressão da Rússia e a brutal ditadura da Rússia que iniciou essa guerra, que começou essa guerra, para solidificar seu controle de poder dentro do país e também para expandir sua ambição imperial para seus vizinhos. Como aprendemos pela história, paz sem justiça não é sustentável. Paz sem justiça encoraja o agressor e leva a novos crimes e a novas agressões. Se a Ucrânia não recuperar seu território e seu povo, se a Ucrânia não for compensada, se os responsáveis pelos crimes russos não forem levados à justiça, então, num espaço de poucos anos, veremos a guerra novamente, potencialmente se espalhando além da Ucrânia.

A própria Rússia nunca foi responsabilizada por nenhum de seus crimes que cometeu durante conflitos armados. A Rússia teve um conflito armado interno na Chechênia, uma província separatista nos anos 1990. Foram cometidos inúmeros crimes lá, incluindo, mais notavelmente, milhares de desaparecimentos forçados. Ninguém jamais foi responsabilizado por isso. A Rússia cometeu crimes de guerra na Geórgia em 2008, na Síria nos anos 2010 e na Ucrânia desde 2014. Nós, como advogados de direitos humanos, testemunhamos, ao longo dessas décadas, essa cadeia de impunidade. A impunidade por crimes passados encoraja novos crimes.

E particularmente na Ucrânia, falando de qualquer tipo de acordo de paz, já houve um acordo de paz em 2015, os chamados Acordos de Minsk, quando houve um cessar-fogo, e tropas apoiadas pela Rússia, naquela época, controlavam algumas áreas no leste da Ucrânia. O conflito foi congelado, apenas para ser retomado sete anos depois. Putin foi encorajado por aquele acordo de paz. Ele teve tempo para fortalecer seu exército, investir no esforço de guerra e atacar a Ucrânia em 2022, com a intenção de destruir o país inteiro. Ele claramente, como sabemos agora, tinha a intenção de destruir a Ucrânia como nação. E ele não teve sucesso, apenas porque os ucranianos se levantaram em defesa do seu país, com o apoio de outros países democráticos do mundo.

O Brasil está do lado da liberdade e da democracia ou do lado do agressor? Quer dizer, você tem que fazer essa escolha, em última análise. Apreciamos o esforço do governo brasileiro em facilitar a paz, e é importante que, mesmo durante a guerra, possam haver certos esforços humanitários, como o retorno das crianças sequestradas. Esforços humanitários são importantes, mas quando se trata de paz sustentável, você tem que fazer uma escolha. Você não pode dizer que é neutro. Não há neutralidade aqui. Ou você apoia a vítima e alguém lutando pela liberdade, ou você apoia o agressor e um criminoso.

Tamilla: Analisei minuciosamente este plano de paz conjunto. Nenhuma vez ele menciona a palavra guerra, e claro, em nenhum lugar deste plano de paz condena a guerra que a Rússia travou contra a Ucrânia. Um documento final promovendo a paz não pode fazer isso. Eles não podem simplesmente focar em desescalar o conflito, como se a Ucrânia fosse tão responsável por ter esta guerra quanto a Rússia. Isso não é um conflito de dois lados. Isso é uma invasão, e eles não podem remover as palavras de tom duro com conflito e nunca condená-lo. ‘Vamos acalmar Putin novamente’. Nós temos acalmado Putin por 30 anos, e isso nunca funciona.

Tamilla Imanova: Descobrir o paradeiro e trazer crianças ucranianas deportadas de volta é a parte mais difícil Foto: WILTON JUNIOR/Estadão

Putin agora ameaça atacar centros de tomada de decisão na Ucrânia e até a Europa com o novo míssil hipersônico Oreshnik, capaz de carregar ogivas nucleares. Como enxerga os próximos meses diante dos últimos desdobramentos?

Grigori: Putin faz chantagem nuclear desde fevereiro de 2022. Não é a primeira vez que ele ameaça o mundo com armas nucleares, e isso é um problema em si mesmo, que a Rússia é controlada por um homem sentado ao lado deste botão vermelho, que ele pode pressionar a qualquer momento. Então, ninguém no mundo está seguro enquanto Putin estiver no Kremlin, porque dentro da Rússia não há freios e contrapesos, não há salvaguardas institucionais que possam impedi-lo de fazer o que quiser.

Tamilla: E essa é a parte mais assustadora, porque não estamos mais nos tempos de Hiroshima-Nagasaki. As armas se desenvolveram. Desculpe, pela negatividade.

E há algum sinal de que Putin vá de fato deixar o Kremlin?

Grigori: Se você quer paz, você precisa derrotar Putin. Para derrotar Putin, você precisa apoiar a Ucrânia. É um cálculo muito simples nos dias de hoje. Não podemos contar com nenhuma mudança dentro da Rússia nos dias de hoje. É sobre apoiar a Ucrânia para garantir que a Ucrânia vença esta guerra e derrote Putin. E se isso acontecer, então pode haver uma oportunidade para a Rússia se reformar. E se a Rússia se reformar, então pode haver esperança para uma paz sustentável naquela região e paz sustentável no mundo, porque a Rússia é uma potência nuclear. E é essencial que seja governada democraticamente.

Donald Trump está voltando ao poder nos EUA e promete encerrar a guerra muito rapidamente. Ele foi elogiado pela Rússia. O que pode ocorrer com esse novo elemento no cenário?

Tamilla: Ainda não temos uma ideia do conteúdo exato do chamado plano de paz de Trump. Ele pretende simplesmente cortar a ajuda e deixar isso ser um problema ucraniano ou quer se tornar um negociador? Se Trump se tornar um negociador, eles vão começar a discutir esse tipo de mesmo plano por meses. Se ele simplesmente se afastar da Ucrânia, isso vai ser um desastre para a Ucrânia, porque, sejamos honestos, depende da ajuda dos Estados Unidos. Depende de qual caminho ele seguir, e, desculpe, este homem é bastante imprevisível neste momento.

Autoridades russas dizem que a guerra na Ucrânia foi motivada, entre outras razões, pela expansão da Otan e por que os direitos de povos de origem russa nos territórios ocupados estariam sob ataque do que eles chamam de “regime de Kiev”. Eles têm alguma razão ou é apenas propaganda oficial?

Grigori: É propaganda, eles não estão certos nesses argumentos. A Rússia começou a guerra na Ucrânia em 2014 quando anexou a Crimeia por iniciativa própria. Putin admitiu abertamente isso posteriormente. Ele confirmou que foi sua decisão anexar a Crimeia. Foi depois que a Crimeia foi efetivamente ocupada pelas forças armadas russas que ele decidiu realizar o referendo. Assim, a Crimeia foi anexada por decisão de Putin, não pela vontade do povo da Crimeia ou do povo ucraniano ou de qualquer outra pessoa. Depois veio a ocupação do leste da Ucrânia, regiões de Donetsk e Luhansk da Ucrânia. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, baseado em Estrasburgo, stabeleceu que a Rússia controlou as forças armadas separatistas que tomaram controle do leste da Ucrânia desde 2014. Era efetivamente uma força russa. Então, a Rússia ocupou partes do leste da Ucrânia desde 2014. A Rússia foi a causa desta guerra. Qualquer conflito armado que se seguiu foi uma tentativa do governo ucraniano de recuperar território. E mesmo esse conflito armado efetivamente chegou a uma paralisação em 2022. Sabemos pelos números oficiais da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa que houve quase nenhuma baixa no leste da Ucrânia. O conflito foi efetivamente congelado por volta de 2022.

De acordo com a ONU, em 2021, no leste da Ucrânia, houve 36 baixas entre civis, mas a maioria delas por minas terrestres e uso imprudente de munição que foi deixada no terreno. Não havia hostilidades. Apenas uma pessoa foi morta no Donbass em 2021. Uma mulher foi morta e cinco homens ficaram feridos como resultado do manuseio de um remanescente explosivo de guerra. Havia algumas munições, talvez uma mina, e eles acidentalmente se feriram e foram mortos. E foi em uma parte da região de Donetsk controlada pelo governo. Então, não era nem mesmo no território ocupado, na parte que está sob controle ucraniano. Isso realmente mostra a extensão das mentiras que Putin usou quando invadiu a Ucrânia. Uma pessoa foi morta no leste da Ucrânia em 2021. E ele disse que estava acontecendo um genocídio. Apenas para lançar uma invasão em larga escala que matou milhares de pessoas.

É uma traição completa da verdade afirmar, como a propaganda russa faz, que havia um genocídio acontecendo no leste da Ucrânia, que a Rússia tentou parar. Não havia nada acontecendo no leste da Ucrânia. Em vez disso, a Rússia acumulou, desde o outono de 2021, centenas de milhares de suas tropas em toda a fronteira ucraniana, do norte ao sudeste. E não há explicação para isso além de Putin ter decidido que queria conquistar toda a Ucrânia. E ele começou esses preparativos. E o uso real da força para iniciar a invasão em larga escala em fevereiro de 2022 baseou-se em um pretexto falso.

Tamilla: Você mencionou algumas razões. Na verdade, existem até 10 razões diferentes que a propaganda russa tem difundido. Quando você está fazendo algo estúpido e ilegal e quer o apoio da sua população, você lança quaisquer razões possíveis. Alguns vão se apegar à ideia de nazistas inexistentes que precisam ser derrubados. Alguns vão se apegar à ideia de que não é realmente sobre a Ucrânia, que na verdade são os EUA travando uma guerra global e escolhendo simplesmente a Ucrânia como campo de batalha para a Terceira Guerra Mundial híbrida. “É culpa dos EUA”. Alguns vão cair na ideia do Putin sendo o chamado “campeão dos valores tradicionais em oposição ao Ocidente decadente”. Então você lança essas razões todo mês e espera que seus telespectadores leais engulam pelo menos uma delas. É assim que a propaganda funciona.

Esta entrevista foi dividida em duas partes para facilitar a leitura. Leia aqui a segunda parte

Entrevista por Felipe Frazão

Jornalista especializado em Política e Relações Exteriores. Realizou coberturas e reportagens especiais na Ásia, África, Oriente Médio, Europa e América Latina. Apresenta a coluna Sua Política na rádio Eldorado FM.

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