Sul Global: O que é esse ‘eixo’ de países que Lula se propõe a liderar? Entenda


Bloco de países pobres e emergentes tem divisões políticas, econômicas e culturais que tornam unidade improvável enquanto disputas por influência ampliam crise no sistema democrático

Por Jéssica Petrovna

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva defende com frequência o protagonismo do “Sul Global”. Essa tentativa de dividir o mundo tem ganhado tração no contexto de uma nova Guerra Fria, mas é considerada por analistas imprecisa e até mesmo contraditória em alguns aspectos. Isso porque o eixo que Lula se propõe a liderar contempla países com diferentes posições políticas, econômicas e culturais.

Essas diferenças incluem a promoção do sistema democrático que, segundo analistas, não é necessariamente um valor associado ao Sul Global. A exemplo da China, a superpotência do eixo, que pode ser enquadrada como uma ditadura, assim como Nicarágua e Venezuela, que fogem à regra nas Américas. Enquanto na África, o avanço da Rússia, no meio da disputa do Norte por influência, tem contribuído para a amplificar, no Sul, a crise no sistema democrático.

Dentro desse eixo, podem haver ambições similares, mas são países tão diversos que é difícil estabelecer uma identidade do chamado Sul Global, afirmam especialistas. “É difícil caracterizar com precisão, mas se pode dizer que é um conceito mais político que econômico”, afirma o diplomata Rubens Ricupero, que considera um “equívoco” o governo insistir na ideia de ser um porta-voz do Sul Global.

continua após a publicidade

“O Brasil tem um peso próprio, pode falar por si. Deveria decidir que princípios quer defender e tomar uma posição. É inexato querer falar em nome de uma entidade que não existe propriamente no mundo”, afirma Ricupero, lembrando que o Sul Global é um conceito, não um grupo estabelecido de países.

Embora a noção de Sul Global seja vaga, Lula disse este mês que o eixo está se constituindo em “parte incontornável da solução para as principais crises que afligem o planeta”. E não é só ele que tem evocado a expressão.

Às margens da Cúpula do Brics, o diplomata Anil Sooklal, da África do Sul, país sede do encontro, negou a intenção de rivalizar com o G-7 ou com o Norte. “O que nós queremos é avançar com a agenda do Sul Global”. Na mesma linha, o primeiro-ministro Narendra Modi apresentou a Índia como “voz do Sul Global”, antes de receber o G-20, no ano passado.

continua após a publicidade

Até mesmo no Ocidente - ou no Norte - o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, já declarou que o “Sul Global está realmente com problemas” ao criticar a Rússia pela guerra na Ucrânia, destacando o impacto na cadeia global de alimentos.

Mas, afinal, o que é o Sul Global?

continua após a publicidade

A ideia Sul Global surge a partir da década de 1980, quando o ex-chanceler alemão Willy Brandt, à frente de uma comissão internacional para o desenvolvimento, publicou o “Norte-Sul: um programa pela sobrevivência”, que ficou conhecido como “Relatório Brandt” e traçava uma linha de mesmo nome. A ideia era mostrar as divisões do mundo na correlação PIB-população.

Os países mais pobres, frequentemente ex-colônias, estavam concentrados no Hemisfério Sul, salvo algumas exceções, como a Austrália e a Nova Zelândia que, mesmo estando abaixo da Linha do Equador, não fazem parte do Sul Global. Esse eixo compreende as Américas Central e do Sul, a África, parte da Ásia e Oceania, mas contorna os países que não se encaixam na divisão.

Do terceiro mundo ao Sul Global

continua após a publicidade

Foi só mais recentemente que o termo se popularizou, como sugere o interesse acadêmico. O artigo The ‘Global South’ in the study of world politics: examining a meta category (ou “Sul Global no estudo da política mundial: examinando a meta categoria”), publicado em 2021, mostrou que, em 15 anos, houve um aumento exponencial da expressão em pesquisas científicas que tentam explicá-la.

Aos poucos, o Sul Global foi virando sinônimo de termos como “países em desenvolvimento” ou “terceiro mundo”. Esse último, caiu em desuso por dois motivos: a divisão primeiro mundo (EUA e aliados do Ocidente), segundo mundo (bloco Soviético) e terceiro mundo (países que estavam atrás no desenvolvimento econômico e muitas vezes estavam entre os não-alinhados) deixou de fazer sentido com o colapso da União Soviética e fim da Guerra Fria. Além disso, era considerada uma expressão pejorativa.

“É um conceito que têm sido usado hoje em dia para englobar não só os países que estão em desenvolvimento, mas também aqueles de chamados de low income (renda baixa). É uma forma de tentar trazer todos esses países e se referir a eles de uma maneira mais coordenada”, afirma Valentina Sader, vice-diretora do Centro para América Latina do Atlantic Council, think tank com sede em Washington.

continua após a publicidade

Ela reconhece que são países muito diferentes entre si, mas pondera que podem ter ambições parecidas. Exemplo disso é o pleito por maior representatividade no âmbito das Nações Unidas e até questões mais objetivas, como o financiamento de medidas contra as mudanças climáticas.

A presença da China

continua após a publicidade

Ao contrário do G77+China - a coalizão dos países em desenvolvimento -, o Sul Global não é um grupo constituído e organizado, observa Ricupero. “É uma expressão retórica, não tem ninguém que possa dizer quem pertence ou não”, afirma o diplomata.

A China, por exemplo, faz parte do mapa desenhado por Willy Brandt, mas já ascendeu ao status de superpotência e passou a rivalizar com os Estados Unidos, colocando o mundo à beira de uma nova Guerra Fria.

Para Ricupero, a ideia de ter a China como parte desse Sul Global é duvidosa e até arriscada considerando que uma das grandes questões na geopolítica hoje é justamente a divisão entre Pequim e Washington. “O Sul Global, para de certa formar se firmar, teria que ser independente tanto dos Estados Unidos como da China”, afirma.

Em um eixo tão heterogêneo é difícil encontrar uma unidade, argumenta. E com a China por perto, esses países correm o risco de passar a ideia de alinhamento na disputa entre as potências, avalia Ricupero. Risco esse que fica ainda mais evidente do caso específico do Brics - bloco de emergentes que também contempla a Rússia e foi ampliado por pressão de Pequim.

“O Brasil terá que tomar muito cuidado para não ser visto como parcial, já começou a ser visto, mas mostra isenção em alguns aspectos, não aderiu à rota da seda, por exemplo. Agora, o risco de ser visto como caudatário da China é grande e vai ser preciso ver caso a caso”, pondera o diplomata.

Crise das democracias

Em todo mundo, a população que vive em democracias plenas caiu para o menor nível em quatro décadas. Mas nesse eixo Sul, a crise fica mais evidente, como mostra o mapa baseado no relatório anual sobre democracia feito pelo instituto sueco V-Dem, ligado à Universidade de Gotemburgo.

A China, a superpotência do Sul Global, por exemplo, aparece no campo das ditaduras, diz o levantamento. Enquanto países como Brasil e África do Sul estão entre as democracias falhas.

Na África, a Rússia avança, por meio do grupo Wagner para substituir outros países do Norte Global, como a França, especialmente na região do Sahel. Nessa campanha por influência, Moscou usa mercenários e campanhas de desinformação, que podem ser diretamente relacionados à crise das democracias africanas. Quanto mais intensa a ação desestabilizadora russa, menor a pontuação na escalada de países livres, mostrou Centro de Estudos Estratégicos da África, no ano passado.

“A ideia de promoção da democracia é mais associada ao ideário dos EUA e da Europa, não é uma plataforma do Sul porque muitos desses países claramente não se enquadram como países democráticos. Esse não é um tema que serve como ponto de união. O que sempre caracterizou as tentativas de pronunciamento dos países do Sul foi a visão comum sobre economia, ajuda externa, combate à fome”, aponta Rubens Ricupero.

O diplomata pondera que, o caso da América do Sul é diferente - o que é possível perceber também no mapa. “O Mercosul, por exemplo, tem uma cláusula democrática. Mesmo que alguns países não sigam, pode se dizer que a democracia faz parte dos princípios do nosso continente”, conclui.

Essas diferenças foram observadas por Stewart Patrick, pesquisador do Programa de Ordem Global e Instituições em artigo publicado no Carnegie Endowment for International Peace, think-tank com sede em Washington.

“O rótulo abrangente também ignora a diversidade dos regimes políticos e a qualidade dos governos entre os seus supostos membros”, afirma ao citar outro índice de referência para medir o status das democracias, o relatório anual produzido pela ONG Freedom House.

‘No critério do “acesso das pessoas aos direitos políticos e às liberdades civis”, as pontuações dos países do Sul Global variam, desde o menor valor 1 (“não livre”) no caso do Sudão do Sul e da Síria até 96 (“livre”) no caso do Uruguai’, exemplifica no artigo intitulado ‘O termo “Sul Global” está surgindo. Deveria ser aposentado’.

A conclusão do pesquisador, que fala do ponto de vista do Ocidente, é que a ideia de Sul Global deveria ser usada com moderação por pesquisadores, analistas e políticos para evitar cair nas generalizações da Guerra Fria.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva defende com frequência o protagonismo do “Sul Global”. Essa tentativa de dividir o mundo tem ganhado tração no contexto de uma nova Guerra Fria, mas é considerada por analistas imprecisa e até mesmo contraditória em alguns aspectos. Isso porque o eixo que Lula se propõe a liderar contempla países com diferentes posições políticas, econômicas e culturais.

Essas diferenças incluem a promoção do sistema democrático que, segundo analistas, não é necessariamente um valor associado ao Sul Global. A exemplo da China, a superpotência do eixo, que pode ser enquadrada como uma ditadura, assim como Nicarágua e Venezuela, que fogem à regra nas Américas. Enquanto na África, o avanço da Rússia, no meio da disputa do Norte por influência, tem contribuído para a amplificar, no Sul, a crise no sistema democrático.

Dentro desse eixo, podem haver ambições similares, mas são países tão diversos que é difícil estabelecer uma identidade do chamado Sul Global, afirmam especialistas. “É difícil caracterizar com precisão, mas se pode dizer que é um conceito mais político que econômico”, afirma o diplomata Rubens Ricupero, que considera um “equívoco” o governo insistir na ideia de ser um porta-voz do Sul Global.

“O Brasil tem um peso próprio, pode falar por si. Deveria decidir que princípios quer defender e tomar uma posição. É inexato querer falar em nome de uma entidade que não existe propriamente no mundo”, afirma Ricupero, lembrando que o Sul Global é um conceito, não um grupo estabelecido de países.

Embora a noção de Sul Global seja vaga, Lula disse este mês que o eixo está se constituindo em “parte incontornável da solução para as principais crises que afligem o planeta”. E não é só ele que tem evocado a expressão.

Às margens da Cúpula do Brics, o diplomata Anil Sooklal, da África do Sul, país sede do encontro, negou a intenção de rivalizar com o G-7 ou com o Norte. “O que nós queremos é avançar com a agenda do Sul Global”. Na mesma linha, o primeiro-ministro Narendra Modi apresentou a Índia como “voz do Sul Global”, antes de receber o G-20, no ano passado.

Até mesmo no Ocidente - ou no Norte - o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, já declarou que o “Sul Global está realmente com problemas” ao criticar a Rússia pela guerra na Ucrânia, destacando o impacto na cadeia global de alimentos.

Mas, afinal, o que é o Sul Global?

A ideia Sul Global surge a partir da década de 1980, quando o ex-chanceler alemão Willy Brandt, à frente de uma comissão internacional para o desenvolvimento, publicou o “Norte-Sul: um programa pela sobrevivência”, que ficou conhecido como “Relatório Brandt” e traçava uma linha de mesmo nome. A ideia era mostrar as divisões do mundo na correlação PIB-população.

Os países mais pobres, frequentemente ex-colônias, estavam concentrados no Hemisfério Sul, salvo algumas exceções, como a Austrália e a Nova Zelândia que, mesmo estando abaixo da Linha do Equador, não fazem parte do Sul Global. Esse eixo compreende as Américas Central e do Sul, a África, parte da Ásia e Oceania, mas contorna os países que não se encaixam na divisão.

Do terceiro mundo ao Sul Global

Foi só mais recentemente que o termo se popularizou, como sugere o interesse acadêmico. O artigo The ‘Global South’ in the study of world politics: examining a meta category (ou “Sul Global no estudo da política mundial: examinando a meta categoria”), publicado em 2021, mostrou que, em 15 anos, houve um aumento exponencial da expressão em pesquisas científicas que tentam explicá-la.

Aos poucos, o Sul Global foi virando sinônimo de termos como “países em desenvolvimento” ou “terceiro mundo”. Esse último, caiu em desuso por dois motivos: a divisão primeiro mundo (EUA e aliados do Ocidente), segundo mundo (bloco Soviético) e terceiro mundo (países que estavam atrás no desenvolvimento econômico e muitas vezes estavam entre os não-alinhados) deixou de fazer sentido com o colapso da União Soviética e fim da Guerra Fria. Além disso, era considerada uma expressão pejorativa.

“É um conceito que têm sido usado hoje em dia para englobar não só os países que estão em desenvolvimento, mas também aqueles de chamados de low income (renda baixa). É uma forma de tentar trazer todos esses países e se referir a eles de uma maneira mais coordenada”, afirma Valentina Sader, vice-diretora do Centro para América Latina do Atlantic Council, think tank com sede em Washington.

Ela reconhece que são países muito diferentes entre si, mas pondera que podem ter ambições parecidas. Exemplo disso é o pleito por maior representatividade no âmbito das Nações Unidas e até questões mais objetivas, como o financiamento de medidas contra as mudanças climáticas.

A presença da China

Ao contrário do G77+China - a coalizão dos países em desenvolvimento -, o Sul Global não é um grupo constituído e organizado, observa Ricupero. “É uma expressão retórica, não tem ninguém que possa dizer quem pertence ou não”, afirma o diplomata.

A China, por exemplo, faz parte do mapa desenhado por Willy Brandt, mas já ascendeu ao status de superpotência e passou a rivalizar com os Estados Unidos, colocando o mundo à beira de uma nova Guerra Fria.

Para Ricupero, a ideia de ter a China como parte desse Sul Global é duvidosa e até arriscada considerando que uma das grandes questões na geopolítica hoje é justamente a divisão entre Pequim e Washington. “O Sul Global, para de certa formar se firmar, teria que ser independente tanto dos Estados Unidos como da China”, afirma.

Em um eixo tão heterogêneo é difícil encontrar uma unidade, argumenta. E com a China por perto, esses países correm o risco de passar a ideia de alinhamento na disputa entre as potências, avalia Ricupero. Risco esse que fica ainda mais evidente do caso específico do Brics - bloco de emergentes que também contempla a Rússia e foi ampliado por pressão de Pequim.

“O Brasil terá que tomar muito cuidado para não ser visto como parcial, já começou a ser visto, mas mostra isenção em alguns aspectos, não aderiu à rota da seda, por exemplo. Agora, o risco de ser visto como caudatário da China é grande e vai ser preciso ver caso a caso”, pondera o diplomata.

Crise das democracias

Em todo mundo, a população que vive em democracias plenas caiu para o menor nível em quatro décadas. Mas nesse eixo Sul, a crise fica mais evidente, como mostra o mapa baseado no relatório anual sobre democracia feito pelo instituto sueco V-Dem, ligado à Universidade de Gotemburgo.

A China, a superpotência do Sul Global, por exemplo, aparece no campo das ditaduras, diz o levantamento. Enquanto países como Brasil e África do Sul estão entre as democracias falhas.

Na África, a Rússia avança, por meio do grupo Wagner para substituir outros países do Norte Global, como a França, especialmente na região do Sahel. Nessa campanha por influência, Moscou usa mercenários e campanhas de desinformação, que podem ser diretamente relacionados à crise das democracias africanas. Quanto mais intensa a ação desestabilizadora russa, menor a pontuação na escalada de países livres, mostrou Centro de Estudos Estratégicos da África, no ano passado.

“A ideia de promoção da democracia é mais associada ao ideário dos EUA e da Europa, não é uma plataforma do Sul porque muitos desses países claramente não se enquadram como países democráticos. Esse não é um tema que serve como ponto de união. O que sempre caracterizou as tentativas de pronunciamento dos países do Sul foi a visão comum sobre economia, ajuda externa, combate à fome”, aponta Rubens Ricupero.

O diplomata pondera que, o caso da América do Sul é diferente - o que é possível perceber também no mapa. “O Mercosul, por exemplo, tem uma cláusula democrática. Mesmo que alguns países não sigam, pode se dizer que a democracia faz parte dos princípios do nosso continente”, conclui.

Essas diferenças foram observadas por Stewart Patrick, pesquisador do Programa de Ordem Global e Instituições em artigo publicado no Carnegie Endowment for International Peace, think-tank com sede em Washington.

“O rótulo abrangente também ignora a diversidade dos regimes políticos e a qualidade dos governos entre os seus supostos membros”, afirma ao citar outro índice de referência para medir o status das democracias, o relatório anual produzido pela ONG Freedom House.

‘No critério do “acesso das pessoas aos direitos políticos e às liberdades civis”, as pontuações dos países do Sul Global variam, desde o menor valor 1 (“não livre”) no caso do Sudão do Sul e da Síria até 96 (“livre”) no caso do Uruguai’, exemplifica no artigo intitulado ‘O termo “Sul Global” está surgindo. Deveria ser aposentado’.

A conclusão do pesquisador, que fala do ponto de vista do Ocidente, é que a ideia de Sul Global deveria ser usada com moderação por pesquisadores, analistas e políticos para evitar cair nas generalizações da Guerra Fria.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva defende com frequência o protagonismo do “Sul Global”. Essa tentativa de dividir o mundo tem ganhado tração no contexto de uma nova Guerra Fria, mas é considerada por analistas imprecisa e até mesmo contraditória em alguns aspectos. Isso porque o eixo que Lula se propõe a liderar contempla países com diferentes posições políticas, econômicas e culturais.

Essas diferenças incluem a promoção do sistema democrático que, segundo analistas, não é necessariamente um valor associado ao Sul Global. A exemplo da China, a superpotência do eixo, que pode ser enquadrada como uma ditadura, assim como Nicarágua e Venezuela, que fogem à regra nas Américas. Enquanto na África, o avanço da Rússia, no meio da disputa do Norte por influência, tem contribuído para a amplificar, no Sul, a crise no sistema democrático.

Dentro desse eixo, podem haver ambições similares, mas são países tão diversos que é difícil estabelecer uma identidade do chamado Sul Global, afirmam especialistas. “É difícil caracterizar com precisão, mas se pode dizer que é um conceito mais político que econômico”, afirma o diplomata Rubens Ricupero, que considera um “equívoco” o governo insistir na ideia de ser um porta-voz do Sul Global.

“O Brasil tem um peso próprio, pode falar por si. Deveria decidir que princípios quer defender e tomar uma posição. É inexato querer falar em nome de uma entidade que não existe propriamente no mundo”, afirma Ricupero, lembrando que o Sul Global é um conceito, não um grupo estabelecido de países.

Embora a noção de Sul Global seja vaga, Lula disse este mês que o eixo está se constituindo em “parte incontornável da solução para as principais crises que afligem o planeta”. E não é só ele que tem evocado a expressão.

Às margens da Cúpula do Brics, o diplomata Anil Sooklal, da África do Sul, país sede do encontro, negou a intenção de rivalizar com o G-7 ou com o Norte. “O que nós queremos é avançar com a agenda do Sul Global”. Na mesma linha, o primeiro-ministro Narendra Modi apresentou a Índia como “voz do Sul Global”, antes de receber o G-20, no ano passado.

Até mesmo no Ocidente - ou no Norte - o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, já declarou que o “Sul Global está realmente com problemas” ao criticar a Rússia pela guerra na Ucrânia, destacando o impacto na cadeia global de alimentos.

Mas, afinal, o que é o Sul Global?

A ideia Sul Global surge a partir da década de 1980, quando o ex-chanceler alemão Willy Brandt, à frente de uma comissão internacional para o desenvolvimento, publicou o “Norte-Sul: um programa pela sobrevivência”, que ficou conhecido como “Relatório Brandt” e traçava uma linha de mesmo nome. A ideia era mostrar as divisões do mundo na correlação PIB-população.

Os países mais pobres, frequentemente ex-colônias, estavam concentrados no Hemisfério Sul, salvo algumas exceções, como a Austrália e a Nova Zelândia que, mesmo estando abaixo da Linha do Equador, não fazem parte do Sul Global. Esse eixo compreende as Américas Central e do Sul, a África, parte da Ásia e Oceania, mas contorna os países que não se encaixam na divisão.

Do terceiro mundo ao Sul Global

Foi só mais recentemente que o termo se popularizou, como sugere o interesse acadêmico. O artigo The ‘Global South’ in the study of world politics: examining a meta category (ou “Sul Global no estudo da política mundial: examinando a meta categoria”), publicado em 2021, mostrou que, em 15 anos, houve um aumento exponencial da expressão em pesquisas científicas que tentam explicá-la.

Aos poucos, o Sul Global foi virando sinônimo de termos como “países em desenvolvimento” ou “terceiro mundo”. Esse último, caiu em desuso por dois motivos: a divisão primeiro mundo (EUA e aliados do Ocidente), segundo mundo (bloco Soviético) e terceiro mundo (países que estavam atrás no desenvolvimento econômico e muitas vezes estavam entre os não-alinhados) deixou de fazer sentido com o colapso da União Soviética e fim da Guerra Fria. Além disso, era considerada uma expressão pejorativa.

“É um conceito que têm sido usado hoje em dia para englobar não só os países que estão em desenvolvimento, mas também aqueles de chamados de low income (renda baixa). É uma forma de tentar trazer todos esses países e se referir a eles de uma maneira mais coordenada”, afirma Valentina Sader, vice-diretora do Centro para América Latina do Atlantic Council, think tank com sede em Washington.

Ela reconhece que são países muito diferentes entre si, mas pondera que podem ter ambições parecidas. Exemplo disso é o pleito por maior representatividade no âmbito das Nações Unidas e até questões mais objetivas, como o financiamento de medidas contra as mudanças climáticas.

A presença da China

Ao contrário do G77+China - a coalizão dos países em desenvolvimento -, o Sul Global não é um grupo constituído e organizado, observa Ricupero. “É uma expressão retórica, não tem ninguém que possa dizer quem pertence ou não”, afirma o diplomata.

A China, por exemplo, faz parte do mapa desenhado por Willy Brandt, mas já ascendeu ao status de superpotência e passou a rivalizar com os Estados Unidos, colocando o mundo à beira de uma nova Guerra Fria.

Para Ricupero, a ideia de ter a China como parte desse Sul Global é duvidosa e até arriscada considerando que uma das grandes questões na geopolítica hoje é justamente a divisão entre Pequim e Washington. “O Sul Global, para de certa formar se firmar, teria que ser independente tanto dos Estados Unidos como da China”, afirma.

Em um eixo tão heterogêneo é difícil encontrar uma unidade, argumenta. E com a China por perto, esses países correm o risco de passar a ideia de alinhamento na disputa entre as potências, avalia Ricupero. Risco esse que fica ainda mais evidente do caso específico do Brics - bloco de emergentes que também contempla a Rússia e foi ampliado por pressão de Pequim.

“O Brasil terá que tomar muito cuidado para não ser visto como parcial, já começou a ser visto, mas mostra isenção em alguns aspectos, não aderiu à rota da seda, por exemplo. Agora, o risco de ser visto como caudatário da China é grande e vai ser preciso ver caso a caso”, pondera o diplomata.

Crise das democracias

Em todo mundo, a população que vive em democracias plenas caiu para o menor nível em quatro décadas. Mas nesse eixo Sul, a crise fica mais evidente, como mostra o mapa baseado no relatório anual sobre democracia feito pelo instituto sueco V-Dem, ligado à Universidade de Gotemburgo.

A China, a superpotência do Sul Global, por exemplo, aparece no campo das ditaduras, diz o levantamento. Enquanto países como Brasil e África do Sul estão entre as democracias falhas.

Na África, a Rússia avança, por meio do grupo Wagner para substituir outros países do Norte Global, como a França, especialmente na região do Sahel. Nessa campanha por influência, Moscou usa mercenários e campanhas de desinformação, que podem ser diretamente relacionados à crise das democracias africanas. Quanto mais intensa a ação desestabilizadora russa, menor a pontuação na escalada de países livres, mostrou Centro de Estudos Estratégicos da África, no ano passado.

“A ideia de promoção da democracia é mais associada ao ideário dos EUA e da Europa, não é uma plataforma do Sul porque muitos desses países claramente não se enquadram como países democráticos. Esse não é um tema que serve como ponto de união. O que sempre caracterizou as tentativas de pronunciamento dos países do Sul foi a visão comum sobre economia, ajuda externa, combate à fome”, aponta Rubens Ricupero.

O diplomata pondera que, o caso da América do Sul é diferente - o que é possível perceber também no mapa. “O Mercosul, por exemplo, tem uma cláusula democrática. Mesmo que alguns países não sigam, pode se dizer que a democracia faz parte dos princípios do nosso continente”, conclui.

Essas diferenças foram observadas por Stewart Patrick, pesquisador do Programa de Ordem Global e Instituições em artigo publicado no Carnegie Endowment for International Peace, think-tank com sede em Washington.

“O rótulo abrangente também ignora a diversidade dos regimes políticos e a qualidade dos governos entre os seus supostos membros”, afirma ao citar outro índice de referência para medir o status das democracias, o relatório anual produzido pela ONG Freedom House.

‘No critério do “acesso das pessoas aos direitos políticos e às liberdades civis”, as pontuações dos países do Sul Global variam, desde o menor valor 1 (“não livre”) no caso do Sudão do Sul e da Síria até 96 (“livre”) no caso do Uruguai’, exemplifica no artigo intitulado ‘O termo “Sul Global” está surgindo. Deveria ser aposentado’.

A conclusão do pesquisador, que fala do ponto de vista do Ocidente, é que a ideia de Sul Global deveria ser usada com moderação por pesquisadores, analistas e políticos para evitar cair nas generalizações da Guerra Fria.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva defende com frequência o protagonismo do “Sul Global”. Essa tentativa de dividir o mundo tem ganhado tração no contexto de uma nova Guerra Fria, mas é considerada por analistas imprecisa e até mesmo contraditória em alguns aspectos. Isso porque o eixo que Lula se propõe a liderar contempla países com diferentes posições políticas, econômicas e culturais.

Essas diferenças incluem a promoção do sistema democrático que, segundo analistas, não é necessariamente um valor associado ao Sul Global. A exemplo da China, a superpotência do eixo, que pode ser enquadrada como uma ditadura, assim como Nicarágua e Venezuela, que fogem à regra nas Américas. Enquanto na África, o avanço da Rússia, no meio da disputa do Norte por influência, tem contribuído para a amplificar, no Sul, a crise no sistema democrático.

Dentro desse eixo, podem haver ambições similares, mas são países tão diversos que é difícil estabelecer uma identidade do chamado Sul Global, afirmam especialistas. “É difícil caracterizar com precisão, mas se pode dizer que é um conceito mais político que econômico”, afirma o diplomata Rubens Ricupero, que considera um “equívoco” o governo insistir na ideia de ser um porta-voz do Sul Global.

“O Brasil tem um peso próprio, pode falar por si. Deveria decidir que princípios quer defender e tomar uma posição. É inexato querer falar em nome de uma entidade que não existe propriamente no mundo”, afirma Ricupero, lembrando que o Sul Global é um conceito, não um grupo estabelecido de países.

Embora a noção de Sul Global seja vaga, Lula disse este mês que o eixo está se constituindo em “parte incontornável da solução para as principais crises que afligem o planeta”. E não é só ele que tem evocado a expressão.

Às margens da Cúpula do Brics, o diplomata Anil Sooklal, da África do Sul, país sede do encontro, negou a intenção de rivalizar com o G-7 ou com o Norte. “O que nós queremos é avançar com a agenda do Sul Global”. Na mesma linha, o primeiro-ministro Narendra Modi apresentou a Índia como “voz do Sul Global”, antes de receber o G-20, no ano passado.

Até mesmo no Ocidente - ou no Norte - o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, já declarou que o “Sul Global está realmente com problemas” ao criticar a Rússia pela guerra na Ucrânia, destacando o impacto na cadeia global de alimentos.

Mas, afinal, o que é o Sul Global?

A ideia Sul Global surge a partir da década de 1980, quando o ex-chanceler alemão Willy Brandt, à frente de uma comissão internacional para o desenvolvimento, publicou o “Norte-Sul: um programa pela sobrevivência”, que ficou conhecido como “Relatório Brandt” e traçava uma linha de mesmo nome. A ideia era mostrar as divisões do mundo na correlação PIB-população.

Os países mais pobres, frequentemente ex-colônias, estavam concentrados no Hemisfério Sul, salvo algumas exceções, como a Austrália e a Nova Zelândia que, mesmo estando abaixo da Linha do Equador, não fazem parte do Sul Global. Esse eixo compreende as Américas Central e do Sul, a África, parte da Ásia e Oceania, mas contorna os países que não se encaixam na divisão.

Do terceiro mundo ao Sul Global

Foi só mais recentemente que o termo se popularizou, como sugere o interesse acadêmico. O artigo The ‘Global South’ in the study of world politics: examining a meta category (ou “Sul Global no estudo da política mundial: examinando a meta categoria”), publicado em 2021, mostrou que, em 15 anos, houve um aumento exponencial da expressão em pesquisas científicas que tentam explicá-la.

Aos poucos, o Sul Global foi virando sinônimo de termos como “países em desenvolvimento” ou “terceiro mundo”. Esse último, caiu em desuso por dois motivos: a divisão primeiro mundo (EUA e aliados do Ocidente), segundo mundo (bloco Soviético) e terceiro mundo (países que estavam atrás no desenvolvimento econômico e muitas vezes estavam entre os não-alinhados) deixou de fazer sentido com o colapso da União Soviética e fim da Guerra Fria. Além disso, era considerada uma expressão pejorativa.

“É um conceito que têm sido usado hoje em dia para englobar não só os países que estão em desenvolvimento, mas também aqueles de chamados de low income (renda baixa). É uma forma de tentar trazer todos esses países e se referir a eles de uma maneira mais coordenada”, afirma Valentina Sader, vice-diretora do Centro para América Latina do Atlantic Council, think tank com sede em Washington.

Ela reconhece que são países muito diferentes entre si, mas pondera que podem ter ambições parecidas. Exemplo disso é o pleito por maior representatividade no âmbito das Nações Unidas e até questões mais objetivas, como o financiamento de medidas contra as mudanças climáticas.

A presença da China

Ao contrário do G77+China - a coalizão dos países em desenvolvimento -, o Sul Global não é um grupo constituído e organizado, observa Ricupero. “É uma expressão retórica, não tem ninguém que possa dizer quem pertence ou não”, afirma o diplomata.

A China, por exemplo, faz parte do mapa desenhado por Willy Brandt, mas já ascendeu ao status de superpotência e passou a rivalizar com os Estados Unidos, colocando o mundo à beira de uma nova Guerra Fria.

Para Ricupero, a ideia de ter a China como parte desse Sul Global é duvidosa e até arriscada considerando que uma das grandes questões na geopolítica hoje é justamente a divisão entre Pequim e Washington. “O Sul Global, para de certa formar se firmar, teria que ser independente tanto dos Estados Unidos como da China”, afirma.

Em um eixo tão heterogêneo é difícil encontrar uma unidade, argumenta. E com a China por perto, esses países correm o risco de passar a ideia de alinhamento na disputa entre as potências, avalia Ricupero. Risco esse que fica ainda mais evidente do caso específico do Brics - bloco de emergentes que também contempla a Rússia e foi ampliado por pressão de Pequim.

“O Brasil terá que tomar muito cuidado para não ser visto como parcial, já começou a ser visto, mas mostra isenção em alguns aspectos, não aderiu à rota da seda, por exemplo. Agora, o risco de ser visto como caudatário da China é grande e vai ser preciso ver caso a caso”, pondera o diplomata.

Crise das democracias

Em todo mundo, a população que vive em democracias plenas caiu para o menor nível em quatro décadas. Mas nesse eixo Sul, a crise fica mais evidente, como mostra o mapa baseado no relatório anual sobre democracia feito pelo instituto sueco V-Dem, ligado à Universidade de Gotemburgo.

A China, a superpotência do Sul Global, por exemplo, aparece no campo das ditaduras, diz o levantamento. Enquanto países como Brasil e África do Sul estão entre as democracias falhas.

Na África, a Rússia avança, por meio do grupo Wagner para substituir outros países do Norte Global, como a França, especialmente na região do Sahel. Nessa campanha por influência, Moscou usa mercenários e campanhas de desinformação, que podem ser diretamente relacionados à crise das democracias africanas. Quanto mais intensa a ação desestabilizadora russa, menor a pontuação na escalada de países livres, mostrou Centro de Estudos Estratégicos da África, no ano passado.

“A ideia de promoção da democracia é mais associada ao ideário dos EUA e da Europa, não é uma plataforma do Sul porque muitos desses países claramente não se enquadram como países democráticos. Esse não é um tema que serve como ponto de união. O que sempre caracterizou as tentativas de pronunciamento dos países do Sul foi a visão comum sobre economia, ajuda externa, combate à fome”, aponta Rubens Ricupero.

O diplomata pondera que, o caso da América do Sul é diferente - o que é possível perceber também no mapa. “O Mercosul, por exemplo, tem uma cláusula democrática. Mesmo que alguns países não sigam, pode se dizer que a democracia faz parte dos princípios do nosso continente”, conclui.

Essas diferenças foram observadas por Stewart Patrick, pesquisador do Programa de Ordem Global e Instituições em artigo publicado no Carnegie Endowment for International Peace, think-tank com sede em Washington.

“O rótulo abrangente também ignora a diversidade dos regimes políticos e a qualidade dos governos entre os seus supostos membros”, afirma ao citar outro índice de referência para medir o status das democracias, o relatório anual produzido pela ONG Freedom House.

‘No critério do “acesso das pessoas aos direitos políticos e às liberdades civis”, as pontuações dos países do Sul Global variam, desde o menor valor 1 (“não livre”) no caso do Sudão do Sul e da Síria até 96 (“livre”) no caso do Uruguai’, exemplifica no artigo intitulado ‘O termo “Sul Global” está surgindo. Deveria ser aposentado’.

A conclusão do pesquisador, que fala do ponto de vista do Ocidente, é que a ideia de Sul Global deveria ser usada com moderação por pesquisadores, analistas e políticos para evitar cair nas generalizações da Guerra Fria.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva defende com frequência o protagonismo do “Sul Global”. Essa tentativa de dividir o mundo tem ganhado tração no contexto de uma nova Guerra Fria, mas é considerada por analistas imprecisa e até mesmo contraditória em alguns aspectos. Isso porque o eixo que Lula se propõe a liderar contempla países com diferentes posições políticas, econômicas e culturais.

Essas diferenças incluem a promoção do sistema democrático que, segundo analistas, não é necessariamente um valor associado ao Sul Global. A exemplo da China, a superpotência do eixo, que pode ser enquadrada como uma ditadura, assim como Nicarágua e Venezuela, que fogem à regra nas Américas. Enquanto na África, o avanço da Rússia, no meio da disputa do Norte por influência, tem contribuído para a amplificar, no Sul, a crise no sistema democrático.

Dentro desse eixo, podem haver ambições similares, mas são países tão diversos que é difícil estabelecer uma identidade do chamado Sul Global, afirmam especialistas. “É difícil caracterizar com precisão, mas se pode dizer que é um conceito mais político que econômico”, afirma o diplomata Rubens Ricupero, que considera um “equívoco” o governo insistir na ideia de ser um porta-voz do Sul Global.

“O Brasil tem um peso próprio, pode falar por si. Deveria decidir que princípios quer defender e tomar uma posição. É inexato querer falar em nome de uma entidade que não existe propriamente no mundo”, afirma Ricupero, lembrando que o Sul Global é um conceito, não um grupo estabelecido de países.

Embora a noção de Sul Global seja vaga, Lula disse este mês que o eixo está se constituindo em “parte incontornável da solução para as principais crises que afligem o planeta”. E não é só ele que tem evocado a expressão.

Às margens da Cúpula do Brics, o diplomata Anil Sooklal, da África do Sul, país sede do encontro, negou a intenção de rivalizar com o G-7 ou com o Norte. “O que nós queremos é avançar com a agenda do Sul Global”. Na mesma linha, o primeiro-ministro Narendra Modi apresentou a Índia como “voz do Sul Global”, antes de receber o G-20, no ano passado.

Até mesmo no Ocidente - ou no Norte - o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, já declarou que o “Sul Global está realmente com problemas” ao criticar a Rússia pela guerra na Ucrânia, destacando o impacto na cadeia global de alimentos.

Mas, afinal, o que é o Sul Global?

A ideia Sul Global surge a partir da década de 1980, quando o ex-chanceler alemão Willy Brandt, à frente de uma comissão internacional para o desenvolvimento, publicou o “Norte-Sul: um programa pela sobrevivência”, que ficou conhecido como “Relatório Brandt” e traçava uma linha de mesmo nome. A ideia era mostrar as divisões do mundo na correlação PIB-população.

Os países mais pobres, frequentemente ex-colônias, estavam concentrados no Hemisfério Sul, salvo algumas exceções, como a Austrália e a Nova Zelândia que, mesmo estando abaixo da Linha do Equador, não fazem parte do Sul Global. Esse eixo compreende as Américas Central e do Sul, a África, parte da Ásia e Oceania, mas contorna os países que não se encaixam na divisão.

Do terceiro mundo ao Sul Global

Foi só mais recentemente que o termo se popularizou, como sugere o interesse acadêmico. O artigo The ‘Global South’ in the study of world politics: examining a meta category (ou “Sul Global no estudo da política mundial: examinando a meta categoria”), publicado em 2021, mostrou que, em 15 anos, houve um aumento exponencial da expressão em pesquisas científicas que tentam explicá-la.

Aos poucos, o Sul Global foi virando sinônimo de termos como “países em desenvolvimento” ou “terceiro mundo”. Esse último, caiu em desuso por dois motivos: a divisão primeiro mundo (EUA e aliados do Ocidente), segundo mundo (bloco Soviético) e terceiro mundo (países que estavam atrás no desenvolvimento econômico e muitas vezes estavam entre os não-alinhados) deixou de fazer sentido com o colapso da União Soviética e fim da Guerra Fria. Além disso, era considerada uma expressão pejorativa.

“É um conceito que têm sido usado hoje em dia para englobar não só os países que estão em desenvolvimento, mas também aqueles de chamados de low income (renda baixa). É uma forma de tentar trazer todos esses países e se referir a eles de uma maneira mais coordenada”, afirma Valentina Sader, vice-diretora do Centro para América Latina do Atlantic Council, think tank com sede em Washington.

Ela reconhece que são países muito diferentes entre si, mas pondera que podem ter ambições parecidas. Exemplo disso é o pleito por maior representatividade no âmbito das Nações Unidas e até questões mais objetivas, como o financiamento de medidas contra as mudanças climáticas.

A presença da China

Ao contrário do G77+China - a coalizão dos países em desenvolvimento -, o Sul Global não é um grupo constituído e organizado, observa Ricupero. “É uma expressão retórica, não tem ninguém que possa dizer quem pertence ou não”, afirma o diplomata.

A China, por exemplo, faz parte do mapa desenhado por Willy Brandt, mas já ascendeu ao status de superpotência e passou a rivalizar com os Estados Unidos, colocando o mundo à beira de uma nova Guerra Fria.

Para Ricupero, a ideia de ter a China como parte desse Sul Global é duvidosa e até arriscada considerando que uma das grandes questões na geopolítica hoje é justamente a divisão entre Pequim e Washington. “O Sul Global, para de certa formar se firmar, teria que ser independente tanto dos Estados Unidos como da China”, afirma.

Em um eixo tão heterogêneo é difícil encontrar uma unidade, argumenta. E com a China por perto, esses países correm o risco de passar a ideia de alinhamento na disputa entre as potências, avalia Ricupero. Risco esse que fica ainda mais evidente do caso específico do Brics - bloco de emergentes que também contempla a Rússia e foi ampliado por pressão de Pequim.

“O Brasil terá que tomar muito cuidado para não ser visto como parcial, já começou a ser visto, mas mostra isenção em alguns aspectos, não aderiu à rota da seda, por exemplo. Agora, o risco de ser visto como caudatário da China é grande e vai ser preciso ver caso a caso”, pondera o diplomata.

Crise das democracias

Em todo mundo, a população que vive em democracias plenas caiu para o menor nível em quatro décadas. Mas nesse eixo Sul, a crise fica mais evidente, como mostra o mapa baseado no relatório anual sobre democracia feito pelo instituto sueco V-Dem, ligado à Universidade de Gotemburgo.

A China, a superpotência do Sul Global, por exemplo, aparece no campo das ditaduras, diz o levantamento. Enquanto países como Brasil e África do Sul estão entre as democracias falhas.

Na África, a Rússia avança, por meio do grupo Wagner para substituir outros países do Norte Global, como a França, especialmente na região do Sahel. Nessa campanha por influência, Moscou usa mercenários e campanhas de desinformação, que podem ser diretamente relacionados à crise das democracias africanas. Quanto mais intensa a ação desestabilizadora russa, menor a pontuação na escalada de países livres, mostrou Centro de Estudos Estratégicos da África, no ano passado.

“A ideia de promoção da democracia é mais associada ao ideário dos EUA e da Europa, não é uma plataforma do Sul porque muitos desses países claramente não se enquadram como países democráticos. Esse não é um tema que serve como ponto de união. O que sempre caracterizou as tentativas de pronunciamento dos países do Sul foi a visão comum sobre economia, ajuda externa, combate à fome”, aponta Rubens Ricupero.

O diplomata pondera que, o caso da América do Sul é diferente - o que é possível perceber também no mapa. “O Mercosul, por exemplo, tem uma cláusula democrática. Mesmo que alguns países não sigam, pode se dizer que a democracia faz parte dos princípios do nosso continente”, conclui.

Essas diferenças foram observadas por Stewart Patrick, pesquisador do Programa de Ordem Global e Instituições em artigo publicado no Carnegie Endowment for International Peace, think-tank com sede em Washington.

“O rótulo abrangente também ignora a diversidade dos regimes políticos e a qualidade dos governos entre os seus supostos membros”, afirma ao citar outro índice de referência para medir o status das democracias, o relatório anual produzido pela ONG Freedom House.

‘No critério do “acesso das pessoas aos direitos políticos e às liberdades civis”, as pontuações dos países do Sul Global variam, desde o menor valor 1 (“não livre”) no caso do Sudão do Sul e da Síria até 96 (“livre”) no caso do Uruguai’, exemplifica no artigo intitulado ‘O termo “Sul Global” está surgindo. Deveria ser aposentado’.

A conclusão do pesquisador, que fala do ponto de vista do Ocidente, é que a ideia de Sul Global deveria ser usada com moderação por pesquisadores, analistas e políticos para evitar cair nas generalizações da Guerra Fria.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.