TAIPEI, Taiwan - No bloqueio imaginado em Zero Day, série de TV taiwanesa que será lançada no ano que vem, mas que já está causando alvoroço, os militares chineses cercaram Taiwan, isolando a ilha democrática de 23 milhões de habitantes e a empurrando para uma crise.
Em um trailer de 17 minutos lançado na semana passada, a população reage ao bloqueio chinês com uma mistura de terror e resignação. Jovens casais passam de bicicleta por comboios de tanques em ruas vazias. Gangues criminosas provocam o caos em nome de Pequim e de suas reivindicações territoriais sobre Taiwan.
Os taiwaneses não deveriam lutar e, de todo jeito, jamais conseguiriam vencer, diz uma influenciadora a seus seguidores na série. “Aqueles que querem que entremos no campo de batalha – eles não se importam com nosso sofrimento”, diz ela.
É ficção, mas a perspectiva sombria da série sobre a prontidão dos taiwaneses para lutar toca em um problema bastante real enfrentado pelo presidente Lai Ching-te, que assumiu o cargo em maio e que Pequim considera um separatista perigoso.
A ameaça de Pequim se intensificou quando o líder chinês Xi Jinping declarou que a “reunificação” da China com Taiwan era inevitável. Ele ressaltou sua disposição de usar a força para atingir esse objetivo enviando um número crescente de aviões de guerra e navios da marinha para sondar as defesas da ilha.
O governo de Taiwan tem tentado melhorar suas defesas ampliando o serviço militar obrigatório e reformulando o treinamento de reciclagem dos reservistas como parte de uma mudança mais ampla na estratégia de defesa criada para fazer com que Xi pense duas vezes antes de apostar no uso da força.
Mas os jovens taiwaneses não estão respondendo ao chamado, e o Ministro da Defesa, Wellington Koo, recentemente reconheceu que a falta de equipamentos e instrutores retardou as tentativas de profissionalizar o treinamento dos reservistas. “Devo dizer honestamente que precisamos fortalecer [o treinamento], pois ainda há muito espaço para melhorias”, disse ele à assembleia legislativa em junho.
Essas confissões podem preocupar Donald Trump, que sinalizou uma abordagem mais transacional para o apoio americano à defesa de Taiwan, caso seja reeleito presidente em novembro.
Taipei quer criar uma força de reserva profissional para apoiar os 155 mil soldados na ativa. Todos os homens taiwaneses nascidos em 2005 ou depois são obrigados a se alistar para um ano de serviço. Cerca de 2 milhões de ex-soldados devem concluir um treinamento de atualização a cada dois anos.
Mas as autoridades reconheceram que estão atrasadas em relação aos planos de treinar reservistas e recrutas a suplementar as tropas da linha de frente em caso de guerra. Apenas 6% dos recrutas qualificados – 6.936 pessoas – participaram do recém-implementado programa de 12 meses este ano. A maioria adiou o serviço militar para fazer faculdade, o que significa que o grupo de admissão nascido em 2005 não estará totalmente treinado até 2027.
Aqueles que prestaram serviço militar este ano não estão passando pelo treinamento previsto. Um grupo seleto de recrutas com um ano de serviço deveria estar aprendendo a usar drones, foguetes antitanque Kestrel e mísseis superfície-ar Stinger, mas não havia recrutas suficientes para iniciar o treinamento este ano, de acordo com um representante do Ministério da Defesa.
O lento progresso de Taiwan na expansão do treinamento preocupa especialistas militares em Washington e Taipei, que estão pedindo às autoridades que ajam mais rapidamente para deter Xi e evitar uma guerra.
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“A última coisa que Taiwan quer é que Xi Jinping, como principal tomador de decisões na China, e os Estados Unidos, como principal aliado de Taiwan, duvidem dos compromissos de Taiwan com sua própria defesa”, disse Matt Pottinger, que foi assessor adjunto de segurança nacional dos Estados Unidos no governo Trump e agora é pesquisador visitante na Hoover Institution.
Para isso, disse Pottinger, Taiwan precisa de vontade política e visão de futuro para dedicar alguns de seus melhores oficiais militares ao recrutamento e à instrução. “Espero realmente que Taiwan faça esses sacrifícios”, disse ele.
O Exército chinês, o maior exército permanente do mundo, tem 2 milhões de soldados ativos e recruta cerca de 400 mil pessoas todos os anos. Seu orçamento de defesa de US$ 230 bilhões foi 13 vezes maior do que o de Taiwan em 2023, e suas forças armadas treinam regularmente para tomar a ilha em um ataque repentino e esmagador.
Os Estados Unidos são obrigados por lei a ajudar Taiwan a fortalecer suas próprias defesas, inclusive por meio da venda de armas, mas não estão formalmente comprometidos a intervir contra um ataque chinês, uma política conhecida como “ambiguidade estratégica”.
Embora o presidente Biden tenha dito repetidas vezes que enviaria as forças armadas americanas para defender Taiwan, Trump não fez tais promessas. Quando indagado sobre o que faria em uma entrevista no mês passado, Trump disse que Taiwan estava a “15 mil quilômetros de distância” e que deveria pagar pela defesa americana.
Taiwan “precisa se preparar mentalmente” para uma vitória de Trump em novembro, disse Mei Fu-hsing, diretor do Taiwan Security Analysis Center, um centro de pesquisa com sede em Nova York.
“Se [Trump] for reeleito, ele com certeza exigirá que Taiwan aumente significativamente seus gastos com defesa e seja mais proativa na preparação para a guerra”, disse Mei.
O aprimoramento do treinamento é fundamental para Taiwan mostrar que está levando a sério a prontidão militar, dizem os analistas. No entanto, os novos programas continuam enfrentando escassez de instrutores, equipamentos e recursos financeiros, o que gera reclamações dos participantes sobre a qualidade do ensino, de acordo com reservistas, além de declarações oficiais reconhecendo os contratempos.
“Foi uma absoluta perda de tempo”, disse Vincent Tsao, 30 anos, instrutor de mergulho que na semana passada passou a maior parte de seus cinco dias de treinamento de reservista sentado, sem fazer nada, ouvindo soldados aposentados que reconheceram abertamente que não estavam preparados para liderar o programa.
Os homens taiwaneses que concluíram o serviço obrigatório nos últimos 12 anos são, teoricamente, chamados de volta para o treinamento de atualização a cada dois anos, embora, na prática, muitos compareçam com muito menos frequência. Apenas um quinto dos reservistas que passaram pelo treinamento de reciclagem no ano passado concluiu o curso de duas semanas recentemente estendido, sendo que a maioria fez apenas cinco ou sete dias.
Preparar 2 milhões de reservistas para “prontidão imediata para o combate” como uma segunda linha de defesa é “muito importante para a defesa de Taiwan”, disse Han Gang-ming, ex-diretor do Departamento de Mobilização de Defesa Total de Taiwan, que supervisiona os reservistas.
“Mas, como a força de reserva não é a principal unidade de combate, sempre ficamos em último lugar quando se pensa no orçamento”, disse Han.
Combatendo o espírito ‘derrotista’
Desde que assumiu o cargo, em maio, Lai prometeu levar adiante as reformas de seu antecessor que vão melhorar a prontidão e alertou os militares para que se protejam contra “posturas derrotistas”, dizendo às tropas que não podem presumir que “a primeira batalha será a última” em caso de ataque chinês.
Mas o novo governo ainda não anunciou grandes mudanças no treinamento, além da eliminação dos exercícios cerimoniais de marcha e baioneta.
Lai também enfrenta uma forte resistência do Kuomintang, partido favorável a Pequim que controla o legislativo, e acusou o Partido Democrático Progressista, hoje no poder, de tentar transformar Taiwan em um “barril de pólvora”.
A China, que procura enfraquecer Lai, alegou que ele quer transformar pessoas comuns em “bucha de canhão”. Mas os analistas dizem que Taiwan deve se preparar para as novas realidades de uma China cada vez mais agressiva.
A estratégia militar de Taiwan há muito tempo se concentra em deter a China antes que suas tropas cruzem o estreito de 180 quilômetros que as separa, mas um número cada vez maior de analistas de defesa em Taipei e Washington afirmam que Taiwan deve se preparar para o pior cenário possível: uma batalha prolongada na própria ilha.
“Os reservistas de Taiwan vão se mobilizar onde e quando a luta acontecer”, disse Michael Hunzeker, fuzileiro naval aposentado que estuda reforma militar na Universidade George Mason.
A ilha claramente não está preparada para isso, de acordo com pessoas que concluíram o treinamento militar recentemente.
Cony Hsieh, 31 anos, que já havia se alistado e servido por seis anos, inscreveu-se para o treinamento de reservista assim que as mulheres foram autorizadas a se alistar no ano passado. Ela retornou para uma segunda rodada em maio.
Embora tenha havido pequenas melhorias, os militares não estão fazendo muito para ganhar a confiança da população e transformar o treinamento em algo mais do que mera formalidade, disse ela. “Eu nem sei o que devo fazer se a guerra estourar”, disse Hsieh, que agora está fazendo mestrado.
A crescente preocupação da população com um possível conflito fez com que muitas pessoas em Taiwan se perguntassem o que fariam em um cenário de Zero Day e até que ponto deveriam permitir que a ameaça de invasão chinesa interferisse na vida cotidiana.
Pesquisas mostram que a maioria dos taiwaneses apoia a decisão de prolongar o serviço obrigatório, mas isso não significa que eles achem que o treinamento seja um bom uso do tempo ou dos recursos públicos.
“Todo mundo tem sua vida, sua família. Minha esposa teria de trabalhar e cuidar da criança sozinha quando eu estivesse fora”, disse Hsieh Yu-hsiang, 30 anos, vendedor de seguros que participou de 14 dias de treinamento no início de julho.
Mesmo assim, ele apoia os planos do governo para fortalecer o treinamento dos reservistas. “À medida que a ameaça aumenta”, disse Hsieh, “é inevitável que precisemos de medidas para reagir”./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU