Em um dia claro, o apartamento no 21.º andar de Bogdan Savchenko oferece vistas panorâmicas de Kiev. Um dos marcos principais é um arranha-céu comercial que ostenta cicatrizes do ataque de um drone russo ocorrido em 10 de outubro — dia em que uma nova onda de ataques abriu um novo capítulo da guerra do Kremlin contra a Ucrânia.
No verão passado, a situação em Kiev estava calma na maior parte do tempo, a mulher e a filha de Savchenko retornaram do exílio na Áustria e na Polônia, para onde elas tinham fugido após a invasão russa, em fevereiro. Mas o ataque de outubro fez a família empreender uma segunda fuga, dessa vez para Varsóvia. (Por ser militar veterano, Savchenko não pôde deixar o país.) A família está desesperada para se reunir em Kiev. Isso colocou sua vida em passo de espera: a filha de Savchenko não está matriculada em nenhuma escola local, não tem nenhum amigo polonês e não está aprendendo a língua. Mas com ataques de mísseis ocorrendo em média a cada semana ou duas, elas não sabem quando a coisa ficará segura o suficiente para seu retorno.
Seu dilema é comum. A invasão russa provocou a maior onda de refugiados dentro da Europa desde a 2.ª Guerra. Cerca de 8 milhões de ucranianos se espalharam pelo continente. Muitos foram para a Rússia, mas nem todos voluntariamente. Em países menores, como Estônia, eles aumentaram a população marcadamente. Centenas de milhares fugiram para mais longe: Estados Unidos, Canadá, Israel e além. Outros milhões de deslocados permanecem dentro da Ucrânia.
A Europa tem lidado com esse fluxo de maneira muito melhor do que lidou com a onda de imigração similar, apesar de menor, ocorrida entre 2015 e 2016. Pela primeira vez, a União Europeia invocou a Diretiva de Proteção Temporária (DPT), que garante aos ucranianos direito de residência e trabalho por até três anos. Os cerca de 4 milhões de refugiados que se registraram sob a DPT são quase todos mulheres e crianças — que prescindem do processo de solicitação de asilo, o que colabora para aliviar sistemas sobrecarregados de concessão desse status.
Mas um ano após a invasão, os governos olham para além do imediato e começam a pensar a longo prazo. A maior questão que eles enfrentam é como administrar a integração de pessoas que podem desejar voltar para casa assim que possível mas não têm como saber quando isso ocorrerá. Uma pesquisa de setembro constatou que 81% dos refugiados ucranianos esperam retornar para a Ucrânia algum dia.
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Escolhas impossíveis
Conversar com eles, porém, com frequência revela atitudes mais complicadas. A aspiração pelo retorno convive com a aceitação de que as condições na Ucrânia tornam isso impossível. No meio-tempo, as novas vidas apresentam suas próprias demandas, como encontrar trabalho, buscar moradia e colocar os filhos na escola. Algumas pessoas decidiram recomeçar do zero nos países em que estão refugiadas. Outras ainda planejam voltar. (Milhões já o fizeram.) Muitas permanecem encurraladas entre dois mundos, sem querer contemplar um futuro em uma terra desconhecida mas incapazes de voltar para casa.
Alla Teslia é de Kharkiv, uma cidade devastada pela guerra no nordeste da Ucrânia. Agora ela vive em um hotel transformado em moradia no oeste de Berlim, juntamente com outros cerca de 200 ucranianos judeus. Depois de um jantar de Shabat, numa noite de sexta-feira, ela explicou seu dilema. Alla rasgou elogios às boas-vindas dos alemães. Ela usa bastante de seu tempo livre para aprender alemão e cuidando de seu marido deficiente. Mas a Alemanha não é seu lar, afirma ela, tentando segurar as lágrimas: “Eu não vejo um futuro aqui.” Mas, ainda assim, Alla é incapaz de conceber circunstâncias segundo as quais ela se sentiria segura ao retornar.
Outras pessoas levam vidas duplas enquanto avaliam suas opções. Aliona, de 32 anos, é ucraniana de Kiev e fugiu para uma zona rural em seu país após a invasão russa. Em maio, ela aceitou ajudas de amigos para se mudar para Berlim, depois de perceber que “minha vida tinha parado”. Como muitos outros refugiados, Aliona pensou que seu período no exterior duraria apenas poucas semanas. Mas agora ela divide sua vida entre as duas capitais, e seus movimentos são determinados por vários contratos de aluguel no errático mercado imobiliário de Berlim. Aliona aceita que não está se integrando realmente. Mas a vivaz capital alemã está começando a operar sua magia dentro dela. “Toda vez que volto para Kiev é difícil sair daqui”, afirma ela. “Mas quando fico aqui (em Berlim) mais que uma semana, eu percebo todas essas possibilidades.”
Como as pessoas decidem ficar ou retornar? Pesquisas sugerem que a situação na Ucrânia lhes importa mais do que as condições nos países em que se refugiaram. “Quando vencermos a guerra” foi a resposta mais comum quando The Economist perguntou a refugiados ucranianos a respeito de qual situação lhes permitiria considerar voltar para seu país. Mas sua definição de vitória variou desde o confinamento do conflito ao leste da Ucrânia até a deposição de Vladimir Putin, passando até pelo desmembramento da Federação Russa.
Os cálculos também mudam ao longo do tempo, à medida que as novas vidas tomam impulso próprio. Lena é apresentadora de televisão, de Mariupol, uma cidade no sudeste ucraniano atualmente ocupada pela Rússia. Em março, depois de passar duas semanas em um abrigo antibomba, ela e sua família resolveram fugir da cidade. Três dias depois, seu apartamento foi completamente destruído. A família conseguiu chegar a Varsóvia. A filha de Lena, que tinha conseguido entrar em uma universidade de Kiev, estava desesperada para começar a frequentar as aulas. Mas por fim Lena a convenceu de que não era seguro ficar, e ela iniciou seus estudos em Cracóvia. O filho mais novo, Lena matriculou em uma escola polonesa. Agora, ela acha que o futuro de sua família é na Polônia — pelo menos por algum tempo. “Não acho que voltaremos nos próximos dois anos. Nós perdemos tudo. Não temos para o que voltar.”
Muitos elementos influenciam as decisões dos refugiados. Educação é um deles. A maioria dos adultos chega com filhos. Pais e mães têm de levar em conta o cronograma escolar em relação às idades dos filhos. Muitos mandam suas crianças para escolas locais durante o dia, outros preferem educá-los em casa, à noite, seguindo o currículo ucraniano. Essa tarefa não é nada simples em lares, na maioria dos casos, chefiados por mães-solo.
E as leis variam entre os países anfitriões. Na Alemanha, as crianças são obrigadas a frequentar escolas locais. Mas na Polônia, elas podem ser colocadas em ensino à distância online, de instituições educacionais ucranianas — o que tranquiliza pais e mães que planejam retornar e preferem garantir que seus filhos não percam contato com o currículo ucraniano; assim como os líderes da Ucrânia, que temem perder uma geração para o que alguns têm qualificado como “polonização”.
Talvez eles não precisem se preocupar. Segundo uma estimativa, apenas 31% dos refugiados ucranianos na Polônia frequentam escolas locais. O governo polonês preparou-se para matricular 400 mil crianças ucranianas em setembro. Mas o número de alunos na realidade tem caído desde então. O paradeiro de aproximadamente 200 mil crianças é desconhecido, afirma Jedrzej Witkowski, analista do Centro de Educação para Cidadania, e “ninguém está interessado em saber” quantas delas estão acompanhando online a educação ucraniana. Ele teme o surgimento na Polônia uma geração de ucranianos “nem-nem” (jovens que nem estudam, nem trabalham, nem recebem treinamento).
Os mercados de trabalho locais são um segundo fator. Dados transversais internacionais confiáveis são escassos. Mas a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), um clube de países ricos, afirma que os refugiados ucranianos parecem estar encontrando trabalho mais rapidamente do que grupos anteriores. No Reino Unido, na Dinamarca e nos Países Baixos, mais da metade das mulheres ucranianas encontraram trabalho menos de um ano depois de fugir. Integrantes de grupos de refugiados típicos levam até dez anos para alcançar esse ponto.
Em parte, isso reflete os tipos de pessoas que chegaram da Ucrânia. Cerca de dois terços possuem alguma educação superior, mais do que a média tanto na UE quanto na Ucrânia. Muitos refugiados aproveitaram-se de redes já existentes de expatriados ucranianos, especialmente na Polônia. Proximidades geográficas e culturais também ajudam. E “a disposição para trabalhar com refugiados tem sido extraordinária”, afirma Henri Viswat, que dirige o escritório polonês da agência de emprego Randstad. Empregadores simpáticos em países como Polônia e Romênia têm tentado abrigar os recém-chegados com ajudas como creche gratuita.
Os refugiados também se encontraram em mercados de trabalho eficientes. O índice de desemprego na Polônia, na Alemanha e na República Checa — que receberam mais da metade dos ucranianos na UE — é menos de 3%. A rapidamente crescente economia polonesa já absorvia trabalhadores ucranianos há muito tempo. Cerca de 1,3 milhão deles, a maioria homem, estavam lá antes da guerra começar. E apesar de muitas economias na Europa diminuirem de ritmo, Viswat afirma que a demanda permanece alta em setores como manufatura e logística. Logo após a invasão russa, representantes da Tönnies, uma empresa de processamento de carne, foram flagrados tentando recrutar refugiados na fronteira entre Ucrânia em Polônia. (Após ser acusada de insensibilidade, a corporação se desculpou, afirmando que estava apenas tentando ajudar.)
Ainda assim, muitos refugiados qualificados acabam desempregados. A língua é uma barreira: quase a metade dos ucranianos que chegaram à Polônia na primavera passada não sabia nenhuma palavra em polonês. (Muitos estão aprendendo agora, e as línguas se relacionam proximamente.) Outros encontraram emprego onde a fluência importa menos, o que com frequência inclui trabalhos sem registro e pagos em dinheiro vivo. Falta de creche é um problema frequente. Graus educacionais adquiridos no exterior podem não ser validados facilmente. Alguns ofícios regulamentados, como farmácia e arquitetura, parecem tender a resistir à ideia de relaxar requerimentos de entrada no mercado para pessoas treinadas no exterior.
Mas o desemprego não é necessariamente um problema grande por agora, afirma Jean-Christophe Dumont, especialista em migração da OCDE. Refugiados podem trabalhar em funções inferiores aos seus níveis de qualificação enquanto se acertam. Veja Olena, de Marhanets, uma cidade industrial à beira do Rio Dnipro, próxima à linha de frente no sul da Ucrânia. Depois de se formar engenheira, ela encontrou emprego em uma cargo técnico em uma fábrica local. Mas depois de fugir para Varsóvia, no verão passado, ela aceitou trabalhar em um armazém de logística empacotando roupas e bolsas para exportação.
Olena é altamente superqualificada. Mas se orgulha enormemente de seu trabalho descrevendo a satisfação em embalar bem as mercadorias e o senso de camaradagem entre colegas (a maioria da Ucrânia). Varsóvia, com sua economia diversificada e alto padrão de vida, “mudou minha mentalidade”, afirma ela. Quando a guerra acabar e Olena puder voltar para casa, ela espera aplicar lições que tem aprendido na Polônia.
Uma terceira questão crucial é moradia. A chegada de refugiados fez o valor dos aluguéis explodir em cidades como Varsóvia e Breslávia. É quase impossível para pessoas sem família ou amigos já instalados encontrar lugar para morar em cidades populares, como Berlim. As cálidas boas-vindas aos ucranianos têm arrefecido em certas áreas. “Nós, inquilinos, compreendemos, mas não ficamos nada felizes”, afirma o polonês Kamil, de Varsóvia. “Esperamos que, quando a guerra acabe, (os ucranianos) vão embora e os preços caiam novamente.” Aqueles que abrigaram resolutamente refugiados em suas próprias casas no ano passado começam a imaginar quanto tempo sua boa vontade deve durar.
Buscando diluir o fardo, o governo alemão tem encorajado refugiados a se mudar para cidades pequenas ou vilarejos. Em alguns casos, a elegibilidade para os benefícios é atrelada à disposição de se mudar. Mas ainda que essa estratégia possa aliviar a pressão sobre mercados de aluguel urbano e serviços públicos, ela é menos útil na integração dos refugiados. Cidades pequenas e vilarejos tendem a ter menos serviços públicos, menos cursos de língua local e, com frequência, menos oportunidades de emprego.
Muitas regiões estão enfrentando dificuldades para acomodar os recém-chegados. Cerca de 1 milhão de migrantes entraram na Alemanha no ano passado, além de outras 220 mil pessoas que solicitaram asilo, o maior número desde 2016. A pressão começa a se fazer perceber. Algumas cidades alemãs têm se recusado a aceitar mais refugiados. Um ministro de Estado alertou que o humor do público “ameaça transbordar”. O governo polonês está prestes a começar a cobrar dinheiro dos refugiados que vivem em abrigos fornecidos pelo Estado, na esperança de fazer com que mais refugiados busquem trabalho (e moradias privadas).
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Uma dúvida é quantos homens ucranianos escolherão se juntar às suas famílias no exterior uma vez que lhes seja permitido deixar seu país. Depois de perder uma fatia considerável das mulheres em idade de trabalho para seus vizinhos europeus, a Ucrânia deve relutar também em perder seus homens. Mas qualquer comprometimento patriótico entre os ucranianos no sentido de reconstruir sua terra devastada pode ser mais do que perturbado pela atração exercida pela UE em termos financeiros e profissionais — especialmente quando isso significa se reunir com mulheres e filhos que já começaram a se integrar.
Pawel Kaczmarczyk, diretor do Centro de Pesquisa em Migração da Universidade de Varsóvia, especula que o fim da guerra poderia testemunhar uma segunda grande onda de migração, quando a extensão do dano for escancarada e a Ucrânia enfrentar dificuldades para administrar sua reconstrução. Isso poderia aprofundar ainda mais problemas demográficos da Ucrânia que já eram graves antes da guerra. Segundo uma estimativa, a população do país encolheu 16% nas três décadas posteriores a 1991.
O que o futuro reserva
Mas previsões já naufragaram antes. Vários governos da UE se prepararam para uma nova onda de refugiados quando a Rússia começou a bombardear instalações de eletricidade da Ucrânia em outubro. A onda não veio, apesar de muitos dos refugiados terem acatado o alerta de seu governo de adiar seu retorno — ou até perdido a esperança de que algum dia poderão voltar. “Começou com a segurança, depois vieram os apagões de eletricidade e a amplitude dos ataques — não existe mais nenhum lugar seguro”, afirma Tatiiana, que fugiu para Gdansk, no norte da Polônia, onde ela vive e mantém o emprego que tinha em uma empresa multinacional de tecnologia. Tatiiana nunca tinha pensado em deixar Kiev, afirma ela, mas “aquela vida acabou para mim agora”. Se os combates se intensificarem novamente na primavera, muitos outros refugiados poderão chegar a conclusões similares.
Isso complica a maneira com que os países anfitriões decidem seus planos para o futuro. “Governos nacionais e locais percebem que as pessoas vão ficar muito mais tempo do que se estimava anteriormente”, afirma Hanne Beirens, do Instituto Europa de Políticas Migratórias, em Bruxelas. Os governos deveriam investir em ensino de língua ucraniana ou obrigar as crianças a frequentar escolas locais quando não sabem nem mesmo quantas permanecerão em seu país, nem por quanto tempo? Quanto eles deveriam gastar em cursos de língua ou recapacitações para ajudar os adultos em idade de trabalho a conseguir empregos em suas áreas de atuação? Quando eles deveriam encorajar refugiados a buscar asilo — ou mesmo direitos plenos de residência? Alguns donos de imóveis relutam em alugar para inquilinos que não se comprometem em contratos longos. Empregadores poderão não querer investir em trabalhadores que não podem prometer que continuarão por perto.
Tentar ajudar com integração sem influenciar decisões sobre ficar ou partir “é uma corda-bamba”, afirma Dumont. França e Suécia têm hesitado em oferecer plena integração aos ucranianos, colocando-os no mesmo sistema de benefício-desemprego que os cidadãos alemães. A Polônia está começando a enfrentar dificuldades, em parte porque, ao contrário da maioria dos países da Europa Ocidental, seu governo não possui nenhuma política oficial de imigração para orientar decisões. Aos governos locais, escolas e ONGs resta improvisar, normalmente com orçamentos miseráveis.
Em muitos casos, a distinção entre trabalhadores migrantes e refugiados da Ucrânia se confunde. Mesmo antes da invasão, redes de ucranianos na Polônia e outros países tinham estabelecido fortes fluxos transfronteiriços de trabalho, capital e remessas de dinheiro. Quem chegou depois de fevereiro de 2022 tem recebido ajuda dessa diáspora e, por sua vez, contribuirá para ela. Muitas famílias de migrantes ucranianos incluem tanto trabalhadores (pré-invasão) quanto refugiados (pós-invasão). E à medida que a UE integrar a Ucrânia ainda mais em seu mercado único, como parece inevitável, ficará ainda mais fácil para pessoas, dinheiro e mercadorias atravessarem as fronteiras.
Mas não ainda.
Em 2014, Anna foi forçada a fugir do Donbas, no leste da Ucrânia, quando os russos iniciaram uma insurgência na região. Sua família se assentou em Dnipro, no centro do país. Mas então, em 24 de fevereiro de 2022, Anna foi tirada da cama por um foguete. Forçada a fugir pela segunda vez, ela se assentou com as filhas em Breslávia. Anna ficou impressionada com a generosidade da acolhida polonesa, mas mesmo assim, afirma ela, a vida não tem sido fácil. Ela tem enfrentado dificuldades para abrir um salão de beleza e sente saudades desesperadas de seu marido. Anna espera reunir a família algum dia. Mas não sabe onde, quando ou como. “Talvez na lua”, diz ela, dando de ombros. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO