The Economist: As mulheres podem derrubar a teocracia do Irã?


Manifestantes não exigem mais liberdades ou reformas dentro do sistema, exigem a derrubada da teocracia

Por The Economist
Atualização:

Sentado em um palanque diante de esportistas em 11 de setembro, o aiatolá Ali Khamenei, um dos líderes mundiais há mais tempo na função, soou surpreendentemente vivaz. Desmentindo rumores a respeito de sua morte, o religioso de 83 anos louvou as devotas atletas que tinham competido no exterior com as cabeças cobertas por véus. Uma delas, entusiasmou-se Khamenei, tinha se recusado a cumprimentar com aperto de mão “um homem estrangeiro”. Um lutador vitorioso havia se prostrado a Deus recitando os nomes dos imãs considerados santos pelo islamismo xiita. Os esportistas, disse o aiatolá, haviam conquistado uma “tremenda vitória” (independentemente de troféus) contra os esforços do Ocidente de “exportar sua cultura e prevalecer sobre a nossa”.

O líder supremo tinha outras razões para se sentir jovial. Atento à sua sucessão, ele havia expurgado seu regime de reformistas que ameaçavam colocar em dúvida a República Islâmica. Um ano antes, Khamenei havia substituído o ex-presidente Hassan Rouhani, doutorado em uma universidade escocesa, por Ebrahim Raisi, um adulador de visão estreita e pouco viajado. Apesar das sanções econômicas do Ocidente, os cofres do Estado iraniano estavam se enchendo novamente com o dinheiro do petróleo. E Khamenei lançava uma nova iniciativa pela castidade dedicada a restaurar a fibra moral da Revolução Islâmica.

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Dois dias depois do evento com esportistas, a polícia da moralidade de Khamenei deteve Mahsa Amini, de 22 anos, uma mulher curda em viagem a Teerã, a capital iraniana, por não usar o hijab “de maneira apropriada”. Eles a colocaram em uma van e a levaram para ser reeducada e espancada. Sua morte sob custódia fez transbordar uma década de frustrações reprimidas. Em seu funeral, as mulheres rasgaram os véus. A polícia reagiu com gás lacrimogênio, desencadeando protestos que se espalharam rapidamente. Em diversas cidades de várias províncias elas entoaram o nome de Amini, gritando “Morte ao ditador!” — o mesmo grito que derrubou o xá em 1979. Os aiatolás poderiam ter o mesmo fim?

A ira contra o regime

Protestos contra o regime já irromperam anteriormente. Grandes manifestações ocorreram aproximadamente a cada década, mas a onda mais recente se espalhou com mais rapidez e fúria — e numa escala bem diferente. Os manifestantes não exigem mais liberdades ou reformas dentro do sistema, exigem a derrubada da teocracia. A indignação está durando mais tempo desta vez e se espalhou para além da classe média.

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Manifestantes protestam nos EUA pelo direito das mulheres no Irã  Foto: STEFANI REYNOLDS / AFP

Os protestos abarcaram seitas religiosas e etnias. “De Zaedã ao Curdistão, que minha vida seja sacrificada pelo Irã”, diz um dos gritos que se espalharam pelo país, referindo-se a uma cidade próxima à fronteira oriental, com o Paquistão, e à província ocidental do Irã. Celebridades, heróis do esporte e estrelas do cinema financiados pelo governo vibraram com as manifestações. Apesar das centenas de mortes e mais de 12 mil prisões, as forças de Khamenei fracassaram em sufocar a revolta. “Não somos mais um movimento”, afirma um manifestante em Teerã. “Somos uma revolução dando à luz uma nação.”

Pela primeira vez no Oriente Médio, mulheres têm liderado protestos. Elas não aguentam mais homens de turbante controlando a maneira como elas podem se vestir, viajar e até trabalhar. Segundo a lei, elas precisam de guardiões do sexo masculino para transitar entre províncias ou se hospedar em hotéis. Se elas não possuem nenhum parente homem, um mulá local tem o direito de casá-las.

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Mas, cada vez mais, elas veem diferentes modos de vida pela internet e leem a respeito de mudanças sociais transformando até países conservadores como a Arábia Saudita. Elas ouvem as histórias de suas avós, que lhes contam a respeito do tempo anterior aos aiatolás, quando as mulheres podiam ser juízas. Seu mantra — zan, zindiqi, azadi (mulheres, vida, liberdade) — resume suas demandas.

Imagem retirada de filmagem clandestina mostra protesto contra o aiatolá Ali Khamenei no Irã  Foto: AFP

O recuo do aiatolá

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Passadas seis semanas depois, a República Islâmica está recuando. As mulheres andam sem véus pelas ruas e no metrô de Teerã. Algumas mostram o dedo para forças de segurança em patrulha. Outras oferecem abraços a homens desconhecidos. Na Universidade Sharif, em Teerã, estudantes do sexo masculino formam uma linha de defesa contra os milicianos Basij, o grupo paramilitar de vigilantes do regime, enquanto as mulheres entram no refeitório destinado aos homens.

Tanto detratores quanto apoiadores do regime falam em uma revolução sexual. “Para dançarmos nos becos, para não termos mais medo de nos beijar”, diz a letra da canção “Baraye”, que significa “por/para” e se tornou o hino dos manifestantes. “Para mudar os cérebros que apodreceram. Por sofrermos constrangimentos. Para termos uma vida normal”.

“O futuro do Irã é a mulher”, afirma Ali Karimi, astro do futebol que fugiu para os Emirados Árabes Unidos e emerge como porta-voz dos iranianos no exílio.

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Jovens na vanguarda

Os manifestantes são na maioria jovens, muitos deles, radicais. Sua vanguarda é composta por universitários e estudantes do ensino médio, que compõem um terço da população de 86 milhões de iranianos. Eles se inflamam por conceitos que trafegam nas redes sociais, incluindo khoshunat-e mashroo, ou violência legítima. Eles expulsaram as autoridades de Khamenei de suas escolas, arremessaram coquetéis Molotov contra as forças de segurança, queimaram outdoors com a imagem do líder supremo, rasgaram cartazes de delegacias da polícia da moralidade e assaltaram policiais e clérigos que circulavam sozinhos.

Alguns dos cantos zombam do discurso de ódio do regime: “Morte ao ditador!”, em vez de “Morte a Israel!”; e incendeiam hijabs simbolicamente em vez da rotineira queima de bandeiras americanas. Quando o xá foi o alvo dos protestos, o aiatolá Ruhollah Khomeini, líder daquela revolução, afirmava famosamente: “Quando o povo não quer que um servo como este sirva como governante, ele deve sair”. Agora os manifestantes ecoam essa fala com Khamenei na mira.

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Essa mensagem pode estar balançando os iranianos mais devotos que têm formado a base tradicional do regime. Alguns dos maiores protestos ocorreram em cidades sagradas conservadoras, como Mashhad e Qom, e em universidades femininas, como Al-Zahra, em Teerã, onde o regime treinava anteriormente jovens ideólogas do Islã. Poucos cidadãos atenderam ao chamado de Khamenei para se mobilizar em favor do regime. “Eles simplesmente não aparecem”, afirma um analista iraniano em Dubai. Muitos religiosos iranianos estão inconformados com a corrupção e a violência perpetrada em nome de sua fé. Eles se enfurecem ao ver os filhos dos aiatolás circulando em Ferraris ou Porsches.

Até aqui, os manifestantes se abstiveram de apontar intencionalmente programas e líderes. Sua diversidade dificulta que eles concordem nesse sentido. Eles temem confiar em um líder que possa ser assassinado ou colocado em prisão domiciliar, como ocorreu com os líderes do Movimento Verde após os protestos em massa de 2009.

Foto de Mahsa Amini, vítima da polícia da moral que deu início aos protestos no Irã  Foto: VIA REUTERS / VIA REUTERS

Astutamente sem líder

Em vez disso, sua organização é horizontal, com centenas de pequenas e dissipadas redes sociais. Eles se reúnem ao longo das vias principais, e não em cruzamentos, onde a polícia antidistúrbio fica à sua espera. A experiência lhes ensinou que manifestos ambiciosos em um país tão complexo podem ser desagregadores. Então, suas demandas, ventiladas em slogans e plataformas de redes sociais (particularmente o Telegram), tendem a se limitar a chamados pela libertação de estudantes presos, por processos judiciais contra agentes de segurança responsáveis por mortes de manifestantes e pela substituição de professores que os delataram.

As prisões do regimes poderão, contudo, se tornar fonte da revolta. “Há mais espaço por lá para falar livremente do que nos cafés”, afirma um ativista que passou cinco anos em uma cela compartilhada entre 90 dissidentes. “Você passa o tempo inteiro debatendo ideias com pessoas de todo o Irã. Vivemos juntos e ficamos muito unidos.” Os colegas de detenção incluem ateus, xiitas reformistas, místicos sufistas, adeptos da fé bahai, cristãos convertidos e até jihadistas leais ao Estado Islâmico. Como fizeram esquerdistas e islamistas na época do regime do xá, eles aperfeiçoaram suas ideias e planos de ação. Hoje, os dissidentes concordam a respeito de igualdade de direitos e em pôr fim à discriminação contra minorias religiosas e étnicas. Em seus blocos de detenção, as mulheres fizeram o mesmo. Após sua libertação, elas têm se encontrado e conspirado.

Mas a atual revolta é fruto principalmente das ações do próprio Khamenei. Em seu primeiro momento, a liderança do regime foi uma mistura entre clérigos escolhidos em seus próprios conselhos e representantes eleitos pelo povo, apesar da lealdade desses representantes ao governo islâmico ser verificada previamente. Legislaturas e presidentes foram eleitos a cada quatro anos. Mas durante seu governo de 33 anos, Khamenei tem comandado com mão de ferro. Seus homens no Conselho dos Guardiões excluíram cada vez mais candidatos. No ano passado, eles manipularam a disputa presidencial para que Raisi, um extremista obediente, vencesse. A participação eleitoral foi a menor já registrada na história da República Islâmica. A válvula de segurança de eleições controladas foi descartada. Khamenei expurgou sua teocracia de reformistas. O enrijecimento do código de moralidade e as multas cada vez mais altas por violações tolheram as poucas liberdades pessoais das quais os iranianos ainda desfrutavam.

Cada vez mais sanguinário

O regime também está cada vez mais sanguinário. Em 2009, pode ter matado 70 pessoas para suprimir os protestos contra uma eleição presidencial fraudada. Em 2019, matou mais de 1,5 mil pessoas em menos de uma semana de protestos contra cortes em subsídios, segundo grupos de defesa de direitos humanos. Desta vez, as forças de segurança têm evitado tentar apagar o incêndio com gasolina atirando em meninas em idade escolar e jovens universitárias. Mas a escala da repressão já superou a de 2009. Exauridas e sobrecarregadas, as forças de segurança por vezes têm evitado disparos de alerta. Afirma-se que o regime tem oferecido pagamento em dobro aos policiais para garantir a ordem. Um massacre poderia transformar os protestos em uma revolução em escala total.

O regime também está intensificando a vigilância. Seus capangas invadem casas de manifestantes para confiscar telefones. “Não reclamem, senão levamos vocês também”, afirmam eles garantindo conformidade. Câmeras de alta resolução recém-instaladas associam pedestres com seus documentos de identidade e números de telefone celular. Comerciantes flagrados fazendo o V da vitória para os manifestantes têm sido intimados para interrogatórios em mesquitas. As autoridades lançaram uma intranet nacional para isolar hermeticamente o Irã da internet. VPNs que eram usadas para contornar o controle online estão sendo fechadas. As autoridades reduziram a iluminação nas ruas, mergulhando bairros inteiros na escuridão.

A maior arma do regime pode ser econômica. Poucas pessoas são capazes de atender chamados por uma greve geral indefinida. A inflação, maior que 50%, está em seu nível mais elevado em uma década. O valor da moeda local despencou. Milhões de cidadãos entraram na pobreza.

Portanto, o caminho dos manifestantes é longo e incerto. As maiores manifestações reuniram dezenas de milhares, não os milhões que derrubaram o xá. Para a revolta ser bem-sucedida, mais iranianos de classe média e meia idade precisam se juntar à briga. As forças de segurança, a polícia e a Guarda Revolucionária, o organismo pretoriano do regime, até agora permanecem leais.

Não houve nenhuma deserção significativa dentro do regime. Mas em seus escalões superiores, um silêncio marcante prevalece. Apesar do chamado de Khamenei para condenações aos protestos, nenhum ex-presidente se manifestou. Críticas às vagarosas e rígidas respostas de Khamenei estão crescendo em círculos de autoridades. Seminaristas e islamistas reformadores condenaram o uso de violência por parte do regime. Um ex-presidente do Parlamento de longo mandato, Ali Larijani, pediu que o regime relaxe a exigência do uso do hijab. O ministro do Esporte recebeu uma escaladora que competiu recentemente na Coreia do Sul sem usar véu, cobrindo o cabelo, em vez disso, com o capuz de um agasalho e um boné. Os meios de comunicação estatais se indignaram.

Khamenei teme há muito abrir concessões, considerando-as sinais de fraqueza. “Ele nunca barganha”, afirmou o graduado teólogo Mohsen Kadivar, que vive atualmente nos Estados Unidos. Ele nota que regimes do Oriente Médio, como Marrocos e Jordânia, que emendaram suas Constituições rapidamente em face à Primavera Árabe, de 2011, foram menos lastimados. De Los Angeles, Reza Pahlavi, filho do último xá, pediu um referendo que decida se o Irã deve ser uma república islâmica, uma república secular ou se a monarquia deve ser restituída.

O líder supremo do Irã, Ali Khamenei, discursa em Teerã  Foto: via REUTERS / via REUTERS

Cisões internas

Discórdias a respeito da sucessão podem enfraquecer o regime por dentro. Khamenei, que segundo relatos tem câncer, pode favorecer seu filho de 53 anos, Mojtaba, que administra o gabinete do líder supremo e que recentemente — sobre precárias fundamentações religiosas — foi nomeado aiatolá. Alguns clérigos e generais são contra uma sucessão dinástica. Em junho, Khamenei demitiu Hossein Tayeb, o poderoso chefe de inteligência da Guarda Revolucionária, segundo relatos por ele se opor a Mojtaba como sucessor de Khamenei.

“A Guarda Revolucionária percebe a mudança em campo e está se contendo”, afirma o cientista político Sadegh Zibakalam, que vive em Teerã. Um ex-diplomata iraniano concorda. “Talvez alguns dos comandantes apoiem a repressão, mas os soldados simpatizam com os manifestantes”, afirma ele.

A Guarda Revolucionária não é, de nenhuma maneira, monolítica. Muitos de seus membros mais graduados são motivados mais por dinheiro do que religião. Os guardas revolucionários têm enormes interesses financeiros. Alguns analistas acreditam que a instituição poderá varrer o regime do líder supremo e impor um governo militar sob sua própria fachada de devoção.

O certo é que Khamenei e o regime islâmico estão com problemas maiores do que em qualquer momento desde que o xá foi deposto, em 1979. Ambos hesitam, indecisos a respeito da necessidade de intensificar a repressão ou ceder espaço. Os protestos podem ainda se extinguir, como ocorreu anteriormente. Mas, desta vez, a chance de persistirem ao menos existe. O início do fim do regime islâmico deve certamente estar no horizonte. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Sentado em um palanque diante de esportistas em 11 de setembro, o aiatolá Ali Khamenei, um dos líderes mundiais há mais tempo na função, soou surpreendentemente vivaz. Desmentindo rumores a respeito de sua morte, o religioso de 83 anos louvou as devotas atletas que tinham competido no exterior com as cabeças cobertas por véus. Uma delas, entusiasmou-se Khamenei, tinha se recusado a cumprimentar com aperto de mão “um homem estrangeiro”. Um lutador vitorioso havia se prostrado a Deus recitando os nomes dos imãs considerados santos pelo islamismo xiita. Os esportistas, disse o aiatolá, haviam conquistado uma “tremenda vitória” (independentemente de troféus) contra os esforços do Ocidente de “exportar sua cultura e prevalecer sobre a nossa”.

O líder supremo tinha outras razões para se sentir jovial. Atento à sua sucessão, ele havia expurgado seu regime de reformistas que ameaçavam colocar em dúvida a República Islâmica. Um ano antes, Khamenei havia substituído o ex-presidente Hassan Rouhani, doutorado em uma universidade escocesa, por Ebrahim Raisi, um adulador de visão estreita e pouco viajado. Apesar das sanções econômicas do Ocidente, os cofres do Estado iraniano estavam se enchendo novamente com o dinheiro do petróleo. E Khamenei lançava uma nova iniciativa pela castidade dedicada a restaurar a fibra moral da Revolução Islâmica.

Dois dias depois do evento com esportistas, a polícia da moralidade de Khamenei deteve Mahsa Amini, de 22 anos, uma mulher curda em viagem a Teerã, a capital iraniana, por não usar o hijab “de maneira apropriada”. Eles a colocaram em uma van e a levaram para ser reeducada e espancada. Sua morte sob custódia fez transbordar uma década de frustrações reprimidas. Em seu funeral, as mulheres rasgaram os véus. A polícia reagiu com gás lacrimogênio, desencadeando protestos que se espalharam rapidamente. Em diversas cidades de várias províncias elas entoaram o nome de Amini, gritando “Morte ao ditador!” — o mesmo grito que derrubou o xá em 1979. Os aiatolás poderiam ter o mesmo fim?

A ira contra o regime

Protestos contra o regime já irromperam anteriormente. Grandes manifestações ocorreram aproximadamente a cada década, mas a onda mais recente se espalhou com mais rapidez e fúria — e numa escala bem diferente. Os manifestantes não exigem mais liberdades ou reformas dentro do sistema, exigem a derrubada da teocracia. A indignação está durando mais tempo desta vez e se espalhou para além da classe média.

Manifestantes protestam nos EUA pelo direito das mulheres no Irã  Foto: STEFANI REYNOLDS / AFP

Os protestos abarcaram seitas religiosas e etnias. “De Zaedã ao Curdistão, que minha vida seja sacrificada pelo Irã”, diz um dos gritos que se espalharam pelo país, referindo-se a uma cidade próxima à fronteira oriental, com o Paquistão, e à província ocidental do Irã. Celebridades, heróis do esporte e estrelas do cinema financiados pelo governo vibraram com as manifestações. Apesar das centenas de mortes e mais de 12 mil prisões, as forças de Khamenei fracassaram em sufocar a revolta. “Não somos mais um movimento”, afirma um manifestante em Teerã. “Somos uma revolução dando à luz uma nação.”

Pela primeira vez no Oriente Médio, mulheres têm liderado protestos. Elas não aguentam mais homens de turbante controlando a maneira como elas podem se vestir, viajar e até trabalhar. Segundo a lei, elas precisam de guardiões do sexo masculino para transitar entre províncias ou se hospedar em hotéis. Se elas não possuem nenhum parente homem, um mulá local tem o direito de casá-las.

Mas, cada vez mais, elas veem diferentes modos de vida pela internet e leem a respeito de mudanças sociais transformando até países conservadores como a Arábia Saudita. Elas ouvem as histórias de suas avós, que lhes contam a respeito do tempo anterior aos aiatolás, quando as mulheres podiam ser juízas. Seu mantra — zan, zindiqi, azadi (mulheres, vida, liberdade) — resume suas demandas.

Imagem retirada de filmagem clandestina mostra protesto contra o aiatolá Ali Khamenei no Irã  Foto: AFP

O recuo do aiatolá

Passadas seis semanas depois, a República Islâmica está recuando. As mulheres andam sem véus pelas ruas e no metrô de Teerã. Algumas mostram o dedo para forças de segurança em patrulha. Outras oferecem abraços a homens desconhecidos. Na Universidade Sharif, em Teerã, estudantes do sexo masculino formam uma linha de defesa contra os milicianos Basij, o grupo paramilitar de vigilantes do regime, enquanto as mulheres entram no refeitório destinado aos homens.

Tanto detratores quanto apoiadores do regime falam em uma revolução sexual. “Para dançarmos nos becos, para não termos mais medo de nos beijar”, diz a letra da canção “Baraye”, que significa “por/para” e se tornou o hino dos manifestantes. “Para mudar os cérebros que apodreceram. Por sofrermos constrangimentos. Para termos uma vida normal”.

“O futuro do Irã é a mulher”, afirma Ali Karimi, astro do futebol que fugiu para os Emirados Árabes Unidos e emerge como porta-voz dos iranianos no exílio.

Jovens na vanguarda

Os manifestantes são na maioria jovens, muitos deles, radicais. Sua vanguarda é composta por universitários e estudantes do ensino médio, que compõem um terço da população de 86 milhões de iranianos. Eles se inflamam por conceitos que trafegam nas redes sociais, incluindo khoshunat-e mashroo, ou violência legítima. Eles expulsaram as autoridades de Khamenei de suas escolas, arremessaram coquetéis Molotov contra as forças de segurança, queimaram outdoors com a imagem do líder supremo, rasgaram cartazes de delegacias da polícia da moralidade e assaltaram policiais e clérigos que circulavam sozinhos.

Alguns dos cantos zombam do discurso de ódio do regime: “Morte ao ditador!”, em vez de “Morte a Israel!”; e incendeiam hijabs simbolicamente em vez da rotineira queima de bandeiras americanas. Quando o xá foi o alvo dos protestos, o aiatolá Ruhollah Khomeini, líder daquela revolução, afirmava famosamente: “Quando o povo não quer que um servo como este sirva como governante, ele deve sair”. Agora os manifestantes ecoam essa fala com Khamenei na mira.

Essa mensagem pode estar balançando os iranianos mais devotos que têm formado a base tradicional do regime. Alguns dos maiores protestos ocorreram em cidades sagradas conservadoras, como Mashhad e Qom, e em universidades femininas, como Al-Zahra, em Teerã, onde o regime treinava anteriormente jovens ideólogas do Islã. Poucos cidadãos atenderam ao chamado de Khamenei para se mobilizar em favor do regime. “Eles simplesmente não aparecem”, afirma um analista iraniano em Dubai. Muitos religiosos iranianos estão inconformados com a corrupção e a violência perpetrada em nome de sua fé. Eles se enfurecem ao ver os filhos dos aiatolás circulando em Ferraris ou Porsches.

Até aqui, os manifestantes se abstiveram de apontar intencionalmente programas e líderes. Sua diversidade dificulta que eles concordem nesse sentido. Eles temem confiar em um líder que possa ser assassinado ou colocado em prisão domiciliar, como ocorreu com os líderes do Movimento Verde após os protestos em massa de 2009.

Foto de Mahsa Amini, vítima da polícia da moral que deu início aos protestos no Irã  Foto: VIA REUTERS / VIA REUTERS

Astutamente sem líder

Em vez disso, sua organização é horizontal, com centenas de pequenas e dissipadas redes sociais. Eles se reúnem ao longo das vias principais, e não em cruzamentos, onde a polícia antidistúrbio fica à sua espera. A experiência lhes ensinou que manifestos ambiciosos em um país tão complexo podem ser desagregadores. Então, suas demandas, ventiladas em slogans e plataformas de redes sociais (particularmente o Telegram), tendem a se limitar a chamados pela libertação de estudantes presos, por processos judiciais contra agentes de segurança responsáveis por mortes de manifestantes e pela substituição de professores que os delataram.

As prisões do regimes poderão, contudo, se tornar fonte da revolta. “Há mais espaço por lá para falar livremente do que nos cafés”, afirma um ativista que passou cinco anos em uma cela compartilhada entre 90 dissidentes. “Você passa o tempo inteiro debatendo ideias com pessoas de todo o Irã. Vivemos juntos e ficamos muito unidos.” Os colegas de detenção incluem ateus, xiitas reformistas, místicos sufistas, adeptos da fé bahai, cristãos convertidos e até jihadistas leais ao Estado Islâmico. Como fizeram esquerdistas e islamistas na época do regime do xá, eles aperfeiçoaram suas ideias e planos de ação. Hoje, os dissidentes concordam a respeito de igualdade de direitos e em pôr fim à discriminação contra minorias religiosas e étnicas. Em seus blocos de detenção, as mulheres fizeram o mesmo. Após sua libertação, elas têm se encontrado e conspirado.

Mas a atual revolta é fruto principalmente das ações do próprio Khamenei. Em seu primeiro momento, a liderança do regime foi uma mistura entre clérigos escolhidos em seus próprios conselhos e representantes eleitos pelo povo, apesar da lealdade desses representantes ao governo islâmico ser verificada previamente. Legislaturas e presidentes foram eleitos a cada quatro anos. Mas durante seu governo de 33 anos, Khamenei tem comandado com mão de ferro. Seus homens no Conselho dos Guardiões excluíram cada vez mais candidatos. No ano passado, eles manipularam a disputa presidencial para que Raisi, um extremista obediente, vencesse. A participação eleitoral foi a menor já registrada na história da República Islâmica. A válvula de segurança de eleições controladas foi descartada. Khamenei expurgou sua teocracia de reformistas. O enrijecimento do código de moralidade e as multas cada vez mais altas por violações tolheram as poucas liberdades pessoais das quais os iranianos ainda desfrutavam.

Cada vez mais sanguinário

O regime também está cada vez mais sanguinário. Em 2009, pode ter matado 70 pessoas para suprimir os protestos contra uma eleição presidencial fraudada. Em 2019, matou mais de 1,5 mil pessoas em menos de uma semana de protestos contra cortes em subsídios, segundo grupos de defesa de direitos humanos. Desta vez, as forças de segurança têm evitado tentar apagar o incêndio com gasolina atirando em meninas em idade escolar e jovens universitárias. Mas a escala da repressão já superou a de 2009. Exauridas e sobrecarregadas, as forças de segurança por vezes têm evitado disparos de alerta. Afirma-se que o regime tem oferecido pagamento em dobro aos policiais para garantir a ordem. Um massacre poderia transformar os protestos em uma revolução em escala total.

O regime também está intensificando a vigilância. Seus capangas invadem casas de manifestantes para confiscar telefones. “Não reclamem, senão levamos vocês também”, afirmam eles garantindo conformidade. Câmeras de alta resolução recém-instaladas associam pedestres com seus documentos de identidade e números de telefone celular. Comerciantes flagrados fazendo o V da vitória para os manifestantes têm sido intimados para interrogatórios em mesquitas. As autoridades lançaram uma intranet nacional para isolar hermeticamente o Irã da internet. VPNs que eram usadas para contornar o controle online estão sendo fechadas. As autoridades reduziram a iluminação nas ruas, mergulhando bairros inteiros na escuridão.

A maior arma do regime pode ser econômica. Poucas pessoas são capazes de atender chamados por uma greve geral indefinida. A inflação, maior que 50%, está em seu nível mais elevado em uma década. O valor da moeda local despencou. Milhões de cidadãos entraram na pobreza.

Portanto, o caminho dos manifestantes é longo e incerto. As maiores manifestações reuniram dezenas de milhares, não os milhões que derrubaram o xá. Para a revolta ser bem-sucedida, mais iranianos de classe média e meia idade precisam se juntar à briga. As forças de segurança, a polícia e a Guarda Revolucionária, o organismo pretoriano do regime, até agora permanecem leais.

Não houve nenhuma deserção significativa dentro do regime. Mas em seus escalões superiores, um silêncio marcante prevalece. Apesar do chamado de Khamenei para condenações aos protestos, nenhum ex-presidente se manifestou. Críticas às vagarosas e rígidas respostas de Khamenei estão crescendo em círculos de autoridades. Seminaristas e islamistas reformadores condenaram o uso de violência por parte do regime. Um ex-presidente do Parlamento de longo mandato, Ali Larijani, pediu que o regime relaxe a exigência do uso do hijab. O ministro do Esporte recebeu uma escaladora que competiu recentemente na Coreia do Sul sem usar véu, cobrindo o cabelo, em vez disso, com o capuz de um agasalho e um boné. Os meios de comunicação estatais se indignaram.

Khamenei teme há muito abrir concessões, considerando-as sinais de fraqueza. “Ele nunca barganha”, afirmou o graduado teólogo Mohsen Kadivar, que vive atualmente nos Estados Unidos. Ele nota que regimes do Oriente Médio, como Marrocos e Jordânia, que emendaram suas Constituições rapidamente em face à Primavera Árabe, de 2011, foram menos lastimados. De Los Angeles, Reza Pahlavi, filho do último xá, pediu um referendo que decida se o Irã deve ser uma república islâmica, uma república secular ou se a monarquia deve ser restituída.

O líder supremo do Irã, Ali Khamenei, discursa em Teerã  Foto: via REUTERS / via REUTERS

Cisões internas

Discórdias a respeito da sucessão podem enfraquecer o regime por dentro. Khamenei, que segundo relatos tem câncer, pode favorecer seu filho de 53 anos, Mojtaba, que administra o gabinete do líder supremo e que recentemente — sobre precárias fundamentações religiosas — foi nomeado aiatolá. Alguns clérigos e generais são contra uma sucessão dinástica. Em junho, Khamenei demitiu Hossein Tayeb, o poderoso chefe de inteligência da Guarda Revolucionária, segundo relatos por ele se opor a Mojtaba como sucessor de Khamenei.

“A Guarda Revolucionária percebe a mudança em campo e está se contendo”, afirma o cientista político Sadegh Zibakalam, que vive em Teerã. Um ex-diplomata iraniano concorda. “Talvez alguns dos comandantes apoiem a repressão, mas os soldados simpatizam com os manifestantes”, afirma ele.

A Guarda Revolucionária não é, de nenhuma maneira, monolítica. Muitos de seus membros mais graduados são motivados mais por dinheiro do que religião. Os guardas revolucionários têm enormes interesses financeiros. Alguns analistas acreditam que a instituição poderá varrer o regime do líder supremo e impor um governo militar sob sua própria fachada de devoção.

O certo é que Khamenei e o regime islâmico estão com problemas maiores do que em qualquer momento desde que o xá foi deposto, em 1979. Ambos hesitam, indecisos a respeito da necessidade de intensificar a repressão ou ceder espaço. Os protestos podem ainda se extinguir, como ocorreu anteriormente. Mas, desta vez, a chance de persistirem ao menos existe. O início do fim do regime islâmico deve certamente estar no horizonte. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Sentado em um palanque diante de esportistas em 11 de setembro, o aiatolá Ali Khamenei, um dos líderes mundiais há mais tempo na função, soou surpreendentemente vivaz. Desmentindo rumores a respeito de sua morte, o religioso de 83 anos louvou as devotas atletas que tinham competido no exterior com as cabeças cobertas por véus. Uma delas, entusiasmou-se Khamenei, tinha se recusado a cumprimentar com aperto de mão “um homem estrangeiro”. Um lutador vitorioso havia se prostrado a Deus recitando os nomes dos imãs considerados santos pelo islamismo xiita. Os esportistas, disse o aiatolá, haviam conquistado uma “tremenda vitória” (independentemente de troféus) contra os esforços do Ocidente de “exportar sua cultura e prevalecer sobre a nossa”.

O líder supremo tinha outras razões para se sentir jovial. Atento à sua sucessão, ele havia expurgado seu regime de reformistas que ameaçavam colocar em dúvida a República Islâmica. Um ano antes, Khamenei havia substituído o ex-presidente Hassan Rouhani, doutorado em uma universidade escocesa, por Ebrahim Raisi, um adulador de visão estreita e pouco viajado. Apesar das sanções econômicas do Ocidente, os cofres do Estado iraniano estavam se enchendo novamente com o dinheiro do petróleo. E Khamenei lançava uma nova iniciativa pela castidade dedicada a restaurar a fibra moral da Revolução Islâmica.

Dois dias depois do evento com esportistas, a polícia da moralidade de Khamenei deteve Mahsa Amini, de 22 anos, uma mulher curda em viagem a Teerã, a capital iraniana, por não usar o hijab “de maneira apropriada”. Eles a colocaram em uma van e a levaram para ser reeducada e espancada. Sua morte sob custódia fez transbordar uma década de frustrações reprimidas. Em seu funeral, as mulheres rasgaram os véus. A polícia reagiu com gás lacrimogênio, desencadeando protestos que se espalharam rapidamente. Em diversas cidades de várias províncias elas entoaram o nome de Amini, gritando “Morte ao ditador!” — o mesmo grito que derrubou o xá em 1979. Os aiatolás poderiam ter o mesmo fim?

A ira contra o regime

Protestos contra o regime já irromperam anteriormente. Grandes manifestações ocorreram aproximadamente a cada década, mas a onda mais recente se espalhou com mais rapidez e fúria — e numa escala bem diferente. Os manifestantes não exigem mais liberdades ou reformas dentro do sistema, exigem a derrubada da teocracia. A indignação está durando mais tempo desta vez e se espalhou para além da classe média.

Manifestantes protestam nos EUA pelo direito das mulheres no Irã  Foto: STEFANI REYNOLDS / AFP

Os protestos abarcaram seitas religiosas e etnias. “De Zaedã ao Curdistão, que minha vida seja sacrificada pelo Irã”, diz um dos gritos que se espalharam pelo país, referindo-se a uma cidade próxima à fronteira oriental, com o Paquistão, e à província ocidental do Irã. Celebridades, heróis do esporte e estrelas do cinema financiados pelo governo vibraram com as manifestações. Apesar das centenas de mortes e mais de 12 mil prisões, as forças de Khamenei fracassaram em sufocar a revolta. “Não somos mais um movimento”, afirma um manifestante em Teerã. “Somos uma revolução dando à luz uma nação.”

Pela primeira vez no Oriente Médio, mulheres têm liderado protestos. Elas não aguentam mais homens de turbante controlando a maneira como elas podem se vestir, viajar e até trabalhar. Segundo a lei, elas precisam de guardiões do sexo masculino para transitar entre províncias ou se hospedar em hotéis. Se elas não possuem nenhum parente homem, um mulá local tem o direito de casá-las.

Mas, cada vez mais, elas veem diferentes modos de vida pela internet e leem a respeito de mudanças sociais transformando até países conservadores como a Arábia Saudita. Elas ouvem as histórias de suas avós, que lhes contam a respeito do tempo anterior aos aiatolás, quando as mulheres podiam ser juízas. Seu mantra — zan, zindiqi, azadi (mulheres, vida, liberdade) — resume suas demandas.

Imagem retirada de filmagem clandestina mostra protesto contra o aiatolá Ali Khamenei no Irã  Foto: AFP

O recuo do aiatolá

Passadas seis semanas depois, a República Islâmica está recuando. As mulheres andam sem véus pelas ruas e no metrô de Teerã. Algumas mostram o dedo para forças de segurança em patrulha. Outras oferecem abraços a homens desconhecidos. Na Universidade Sharif, em Teerã, estudantes do sexo masculino formam uma linha de defesa contra os milicianos Basij, o grupo paramilitar de vigilantes do regime, enquanto as mulheres entram no refeitório destinado aos homens.

Tanto detratores quanto apoiadores do regime falam em uma revolução sexual. “Para dançarmos nos becos, para não termos mais medo de nos beijar”, diz a letra da canção “Baraye”, que significa “por/para” e se tornou o hino dos manifestantes. “Para mudar os cérebros que apodreceram. Por sofrermos constrangimentos. Para termos uma vida normal”.

“O futuro do Irã é a mulher”, afirma Ali Karimi, astro do futebol que fugiu para os Emirados Árabes Unidos e emerge como porta-voz dos iranianos no exílio.

Jovens na vanguarda

Os manifestantes são na maioria jovens, muitos deles, radicais. Sua vanguarda é composta por universitários e estudantes do ensino médio, que compõem um terço da população de 86 milhões de iranianos. Eles se inflamam por conceitos que trafegam nas redes sociais, incluindo khoshunat-e mashroo, ou violência legítima. Eles expulsaram as autoridades de Khamenei de suas escolas, arremessaram coquetéis Molotov contra as forças de segurança, queimaram outdoors com a imagem do líder supremo, rasgaram cartazes de delegacias da polícia da moralidade e assaltaram policiais e clérigos que circulavam sozinhos.

Alguns dos cantos zombam do discurso de ódio do regime: “Morte ao ditador!”, em vez de “Morte a Israel!”; e incendeiam hijabs simbolicamente em vez da rotineira queima de bandeiras americanas. Quando o xá foi o alvo dos protestos, o aiatolá Ruhollah Khomeini, líder daquela revolução, afirmava famosamente: “Quando o povo não quer que um servo como este sirva como governante, ele deve sair”. Agora os manifestantes ecoam essa fala com Khamenei na mira.

Essa mensagem pode estar balançando os iranianos mais devotos que têm formado a base tradicional do regime. Alguns dos maiores protestos ocorreram em cidades sagradas conservadoras, como Mashhad e Qom, e em universidades femininas, como Al-Zahra, em Teerã, onde o regime treinava anteriormente jovens ideólogas do Islã. Poucos cidadãos atenderam ao chamado de Khamenei para se mobilizar em favor do regime. “Eles simplesmente não aparecem”, afirma um analista iraniano em Dubai. Muitos religiosos iranianos estão inconformados com a corrupção e a violência perpetrada em nome de sua fé. Eles se enfurecem ao ver os filhos dos aiatolás circulando em Ferraris ou Porsches.

Até aqui, os manifestantes se abstiveram de apontar intencionalmente programas e líderes. Sua diversidade dificulta que eles concordem nesse sentido. Eles temem confiar em um líder que possa ser assassinado ou colocado em prisão domiciliar, como ocorreu com os líderes do Movimento Verde após os protestos em massa de 2009.

Foto de Mahsa Amini, vítima da polícia da moral que deu início aos protestos no Irã  Foto: VIA REUTERS / VIA REUTERS

Astutamente sem líder

Em vez disso, sua organização é horizontal, com centenas de pequenas e dissipadas redes sociais. Eles se reúnem ao longo das vias principais, e não em cruzamentos, onde a polícia antidistúrbio fica à sua espera. A experiência lhes ensinou que manifestos ambiciosos em um país tão complexo podem ser desagregadores. Então, suas demandas, ventiladas em slogans e plataformas de redes sociais (particularmente o Telegram), tendem a se limitar a chamados pela libertação de estudantes presos, por processos judiciais contra agentes de segurança responsáveis por mortes de manifestantes e pela substituição de professores que os delataram.

As prisões do regimes poderão, contudo, se tornar fonte da revolta. “Há mais espaço por lá para falar livremente do que nos cafés”, afirma um ativista que passou cinco anos em uma cela compartilhada entre 90 dissidentes. “Você passa o tempo inteiro debatendo ideias com pessoas de todo o Irã. Vivemos juntos e ficamos muito unidos.” Os colegas de detenção incluem ateus, xiitas reformistas, místicos sufistas, adeptos da fé bahai, cristãos convertidos e até jihadistas leais ao Estado Islâmico. Como fizeram esquerdistas e islamistas na época do regime do xá, eles aperfeiçoaram suas ideias e planos de ação. Hoje, os dissidentes concordam a respeito de igualdade de direitos e em pôr fim à discriminação contra minorias religiosas e étnicas. Em seus blocos de detenção, as mulheres fizeram o mesmo. Após sua libertação, elas têm se encontrado e conspirado.

Mas a atual revolta é fruto principalmente das ações do próprio Khamenei. Em seu primeiro momento, a liderança do regime foi uma mistura entre clérigos escolhidos em seus próprios conselhos e representantes eleitos pelo povo, apesar da lealdade desses representantes ao governo islâmico ser verificada previamente. Legislaturas e presidentes foram eleitos a cada quatro anos. Mas durante seu governo de 33 anos, Khamenei tem comandado com mão de ferro. Seus homens no Conselho dos Guardiões excluíram cada vez mais candidatos. No ano passado, eles manipularam a disputa presidencial para que Raisi, um extremista obediente, vencesse. A participação eleitoral foi a menor já registrada na história da República Islâmica. A válvula de segurança de eleições controladas foi descartada. Khamenei expurgou sua teocracia de reformistas. O enrijecimento do código de moralidade e as multas cada vez mais altas por violações tolheram as poucas liberdades pessoais das quais os iranianos ainda desfrutavam.

Cada vez mais sanguinário

O regime também está cada vez mais sanguinário. Em 2009, pode ter matado 70 pessoas para suprimir os protestos contra uma eleição presidencial fraudada. Em 2019, matou mais de 1,5 mil pessoas em menos de uma semana de protestos contra cortes em subsídios, segundo grupos de defesa de direitos humanos. Desta vez, as forças de segurança têm evitado tentar apagar o incêndio com gasolina atirando em meninas em idade escolar e jovens universitárias. Mas a escala da repressão já superou a de 2009. Exauridas e sobrecarregadas, as forças de segurança por vezes têm evitado disparos de alerta. Afirma-se que o regime tem oferecido pagamento em dobro aos policiais para garantir a ordem. Um massacre poderia transformar os protestos em uma revolução em escala total.

O regime também está intensificando a vigilância. Seus capangas invadem casas de manifestantes para confiscar telefones. “Não reclamem, senão levamos vocês também”, afirmam eles garantindo conformidade. Câmeras de alta resolução recém-instaladas associam pedestres com seus documentos de identidade e números de telefone celular. Comerciantes flagrados fazendo o V da vitória para os manifestantes têm sido intimados para interrogatórios em mesquitas. As autoridades lançaram uma intranet nacional para isolar hermeticamente o Irã da internet. VPNs que eram usadas para contornar o controle online estão sendo fechadas. As autoridades reduziram a iluminação nas ruas, mergulhando bairros inteiros na escuridão.

A maior arma do regime pode ser econômica. Poucas pessoas são capazes de atender chamados por uma greve geral indefinida. A inflação, maior que 50%, está em seu nível mais elevado em uma década. O valor da moeda local despencou. Milhões de cidadãos entraram na pobreza.

Portanto, o caminho dos manifestantes é longo e incerto. As maiores manifestações reuniram dezenas de milhares, não os milhões que derrubaram o xá. Para a revolta ser bem-sucedida, mais iranianos de classe média e meia idade precisam se juntar à briga. As forças de segurança, a polícia e a Guarda Revolucionária, o organismo pretoriano do regime, até agora permanecem leais.

Não houve nenhuma deserção significativa dentro do regime. Mas em seus escalões superiores, um silêncio marcante prevalece. Apesar do chamado de Khamenei para condenações aos protestos, nenhum ex-presidente se manifestou. Críticas às vagarosas e rígidas respostas de Khamenei estão crescendo em círculos de autoridades. Seminaristas e islamistas reformadores condenaram o uso de violência por parte do regime. Um ex-presidente do Parlamento de longo mandato, Ali Larijani, pediu que o regime relaxe a exigência do uso do hijab. O ministro do Esporte recebeu uma escaladora que competiu recentemente na Coreia do Sul sem usar véu, cobrindo o cabelo, em vez disso, com o capuz de um agasalho e um boné. Os meios de comunicação estatais se indignaram.

Khamenei teme há muito abrir concessões, considerando-as sinais de fraqueza. “Ele nunca barganha”, afirmou o graduado teólogo Mohsen Kadivar, que vive atualmente nos Estados Unidos. Ele nota que regimes do Oriente Médio, como Marrocos e Jordânia, que emendaram suas Constituições rapidamente em face à Primavera Árabe, de 2011, foram menos lastimados. De Los Angeles, Reza Pahlavi, filho do último xá, pediu um referendo que decida se o Irã deve ser uma república islâmica, uma república secular ou se a monarquia deve ser restituída.

O líder supremo do Irã, Ali Khamenei, discursa em Teerã  Foto: via REUTERS / via REUTERS

Cisões internas

Discórdias a respeito da sucessão podem enfraquecer o regime por dentro. Khamenei, que segundo relatos tem câncer, pode favorecer seu filho de 53 anos, Mojtaba, que administra o gabinete do líder supremo e que recentemente — sobre precárias fundamentações religiosas — foi nomeado aiatolá. Alguns clérigos e generais são contra uma sucessão dinástica. Em junho, Khamenei demitiu Hossein Tayeb, o poderoso chefe de inteligência da Guarda Revolucionária, segundo relatos por ele se opor a Mojtaba como sucessor de Khamenei.

“A Guarda Revolucionária percebe a mudança em campo e está se contendo”, afirma o cientista político Sadegh Zibakalam, que vive em Teerã. Um ex-diplomata iraniano concorda. “Talvez alguns dos comandantes apoiem a repressão, mas os soldados simpatizam com os manifestantes”, afirma ele.

A Guarda Revolucionária não é, de nenhuma maneira, monolítica. Muitos de seus membros mais graduados são motivados mais por dinheiro do que religião. Os guardas revolucionários têm enormes interesses financeiros. Alguns analistas acreditam que a instituição poderá varrer o regime do líder supremo e impor um governo militar sob sua própria fachada de devoção.

O certo é que Khamenei e o regime islâmico estão com problemas maiores do que em qualquer momento desde que o xá foi deposto, em 1979. Ambos hesitam, indecisos a respeito da necessidade de intensificar a repressão ou ceder espaço. Os protestos podem ainda se extinguir, como ocorreu anteriormente. Mas, desta vez, a chance de persistirem ao menos existe. O início do fim do regime islâmico deve certamente estar no horizonte. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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